
Casamentos arranjados, conflitos amorosos, religiosos, políticos, castas, choques entre modernidade e tradição e reforma agrária em uma jovem Índia. Uma Índia independente, que emerge do período colonial, olha para o futuro, tenta esquecer o trauma da sangrenta Partição do país (que resultou na criação do Paquistão), e luta para deixar o passado de exploração para trás.
Esses são os ingrediente de “Um Rapaz Adequado”, dirigida pela aclamada diretora indiana Mira Nair, disponível no Netflix. Mas essa série traz apenas um cheiro do romance que serviu de inspiração, de mesmo nome, escrito por Vikram Seth e lançado em 1993 com grande sucesso. Para quem quiser ler o livro, há uma tradução no Brasil oferecida pela Editora Record em dois volumes, já que a obra tem quase 1500 páginas.
Quando Vikram Seth lançou o livro, Mira Nair – que então já era uma cineasta consolidada – começou a acalentar o projeto, sensibilizada pela caracterização que o escritor fez do idealismo, do pluralismo, do secularismo e do romantismo na Índia Nehruviana, ou seja, o país recém-independente, governado por Jawaharlal Nehru, um dos grandes líderes políticos do século 20.
O livro descreve o relacionamento entre quatro famílias durante quase dois anos: os Kapoors, os Mehras, os Khans e os Chatterjis. A trama passa na cidade ficcional de Brahmpur, no Norte da Índia. Uma obra que influenciou Vikram Seth foi “O Sonho da Câmara Vermelha”, do chinês Cao Xueqin (século 18), sobre triângulos amorosos tendo como um pano de fundo a decadência de uma família.
Em “Um Rapaz Adequado”, há muitos personagens e subtramas, seguindo a tradição épica-mitológica indiana, com suas longas histórias sem fim, contadas em milhares de camadas, como o milenar Mahabhárata. No livro de Seth, por exemplo, ele segue o exemplo de várias edições desse épico e publica uma árvore genealógica dos personagens para que o leitor não se perca e consulte quando tiver dúvidas de quem é quem.
A personagem principal é a inteligente e sensível Lata, de 19 anos. Estudante de literatura inglesa, Lata precisa driblar sua típica mãe indiana, Rupa Mehra, obcecada por arranjar seu casamento. A moça, de uma família hindu de casta alta, tem três pretendentes. Mas de cara um parece impossível: o muçulmano Kabir Durrani, que ela conheceu na faculdade.
O conflito religioso, que até hoje pega fogo na Índia, permeia toda a história, inclusive com violentos choques de rua. Os outros dois pretendentes são hindus: o poeta Amit Chatterji e o aprendiz de empresário Haresh Kapoor. O romance inter-religioso de Lata e Kabir recontado pela série de Mira Nair causou uma reação negativa de grupos fundamentalistas hindus da vida real. Eles defenderam o boicote à série e até mesmo pediram para a polícia abrir inquérito contra a Netflix.
Enquanto Lata vive o dilema da escolha de seu futuro, a Índia encontrava com o seu destino, como dizia o então primeiro-ministro Jawaharlal Nehru, em seu famoso discurso da independência: o país preparava-se para o seu primeiro experimento democrático após a colonização britânica. A história passa durante as eleições gerais que ocorreram entre 25 de outubro de 1951 e 21 de Fevereiro de 1952 (as eleições parlamentares indianas são um processo bem mais longo do que o nosso).
A série, com apenas seis episódios de uma hora de duração cada, apenas resvala na imensa obra de Vikram Seth. Mas essa superficialidade é mais percebida para quem leu o livro e conhece a fundo a cultura indiana. Além do mais, a série tem uma estética recompensadora e recria com delicadeza uma Índia dos anos 50 em todos os seus detalhes. O repertório musical foi escolhido a dedo por Mira Nair, inclusive com a participação da sitarista Anoushkar Shankar (filha de Pandit Ravi Shankar). Referências literárias de excelência também são fartas na série, com personagens recitando as ghazals (poemas) de Ghalib, poeta indiano do século 18-19, e representando versões indianas de Shaskespeare no teatro da faculdade de Lata.
Mira Nair é por si só um carimbo de qualidade: ela foi a diretora de “Salaam Bombay” (1988), que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, sobre a vida dos garotos de rua de Mumbai. Em “Um Casamento à Indiana” (2011), Mira Nair soube retratar a grande família indiana, expressão batida no país para referir-se a essa instituição fundamental daquela sociedade, principalmente às famílias de classe média.
A diretora já adaptou para o cinema obras de fôlego, como “O Xará” (The Namesake, em inglês, da premiada escritora Jhumpa Lahiri), em 2006. Outro filme dela que bebeu na fonte literária foi o “Relutante Fundamentalista” (2012), do escritor paquistanês Mohsin Hamid. Essa foi a primeira série produzida pela BBC sem nenhum ator branco. Por isso mesmo, Mira Nair a apelidou de “The Crown in Brown”, ou seja, a versão marrom da série da Netflix “The Crown”.
Destaca-se a grande atriz indiana Tabu, que já trabalhou com Mira Nair em “O Xará” (The Namesake). Em “Um Rapaz Adequado”, Tabu faz o papel de Saeeda Bai, uma bela e sensual cortesã muçulmana. Seu jovem amante, Maan Kapoor é muito bem interpretado pelo ator Ishaan Khatter. No papel de Lata, está a jovem atriz Tanya Maniktala. “Um Rapaz Adequado” foi transmitido pela primeira vez em julho de 2020 pela TV e depois migrou para o serviço da Netflix em vários países.
A adaptação foi feita por outro craque: o galês Andrew Davies, mais conhecido pelo roteiro que ele escreveu para a TV britânica a partir do livro “House of Cards”, de Michael Dobbs (1989). A escolha de um não-indiano para escrever os diálogos foi alvo de algumas críticas, mas o próprio Vikram Seth defendeu Davies dizendo que “cor não tem nada a ver com isso”. Vale a pena assistir “Um Rapaz Adequado”. É como degustar um aperitivo bem leve nesse 2021 que está sendo tão pesado.
Fonte: Texto originalmente publicado no Beco da Índia.
Link direto: http://becodaindia.com/por-que-assistir-a-serie-um-rapaz-adequado/
Florência Costa
Jornalista freelancer, especializada em cobertura internacional e política, foi correspondente na Rússia pelo Jornal do Brasil e serviço brasileiro da rádio BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia para ser correspondente do jornal O Globo É autora do livro “Os Indianos”. E editora do site Beco da Índia
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