A cidade de Wuhan: o centro da estratégia atemporal para a construção da Nova China

Vista da cidade de Wuhan, mistura antiguidade e modernidade. Crédito: CGTN.

Uma das coisas mais importantes existentes na concepção de história na China é o entendimento do processo em formação de ciclos, onde o fim de um não apresenta necessariamente uma ruptura radical com o passado, ou a petrificação do mesmo. É apenas o início de um novo período histórico. Nele, os eventos e ações continuam como “passados” vivos, ainda que modificados com o tempo, não perdem seus moldes gerais. Talvez, o exemplo mais didático e explícito disso seja o jargão utilizado pelo líder chinês Deng Xiaoping para justificar as reformas do período pós 1978: “Não importa a cor do gato, contanto que ele cace o rato”.

Em termos gerais, a concepção linear da história existente no ocidente, uma herança judaico-cristã, não faz sentido algum dentro da sociedade chinesa. Isso não tem haver com um sentido idealista de história ou com uma estagnação temporal, como durante muito tempo as teorias sinológicas e orientalistas desenvolveram para explicar a decadência da Dinastia Qing (1644-1912) entre o século XIX e início do XX. Esta concepção faz parte de algo muito mais profundo. Trata-se de um princípio angular de toda a sociedade chinesa: a indivisibilidade dos diferentes, que sempre são partes de um todo. A famosa coexistência do ying yang.

Apenas partindo disso, é possível compreender o que é e simboliza a cidade de Wuhan para a China e sua história. Algo que devido a toda confusão gerada por informações e desinformações sobre a pandemia da Covid-19, aliada ao desconhecimento sobre o país asiático desta parte do mundo, gerou a difusão de afirmações tão problemáticas, a ponto dessa histórica cidade ser comparada ao desastre de Chernobyl ocorrido na União Soviética em 1986. Este é o fator que motivou as presentes linhas escritas, após aproximadamente um ano do triunfo da cidade e da China sobre a atual pandemia que atinge o mundo.

No momento em que Wuhan registra os primeiros focos de transmissão de Covid-19, esta cidade era nada menos que a 7º mais populosa do país mais povoado do planeta, cujo posicionamento central geográfico e econômico a torna não apenas um modelo, mas sobretudo um dos ’’pilotos’’ para a política chinesa da Reforma e Abertura, adotada após 1978. Ela foi a primeira cidade da província de Hubei a ser incluída na Zona Econômica Especial do Vale do Rio Yangze em 1990, e rapidamente se tornou um centro de desenvolvimento e inovação muito importante no país e no continente asiático, a ponto de, no período entre 2009 e 2019, seu Produto Interno Bruto tenha praticamente quadruplicado, atingindo a sétima posição entre as cidades de todo o país.

A capacidade de mobilidade e inovação da cidade de Wuhan deve-se a um fator pouco conhecido no ocidente: a concentração de um considerável número de instituições públicas de educação técnica e superior, junto com um parque industrial direcionado para áreas estratégicas como transporte, telecomunicações e eletrônica. Ela é um destino anual de diversos estudantes chineses e estrangeiros, que compartilham conhecimento e experiência nas mais diversas áreas. Wuhan perde apenas para Pequim e Xangai em número de jovens pesquisadores estrangeiros dentro da China. É notável que durante a crise inicial da Covid-19 na cidade, tão poucos tenham atentado a quantidade de estrangeiros presentes, ocidentais ou não. Por isso, a referência desta região como uma mera metrópole provincial do interior da China por alguns dos setores midiáticos ocidentais é um equívoco grosseiro.

O fato citado favorece não apenas a um transito de pessoas consideravelmente alto trazendo aspectos cosmopolitas à cidade, mas, sobretudo, a uma permanente vitalidade e rejuvenescimento da província de Hubei. Desde o período da Guerra dos Três Reinos no século III D. C. (220-280 D. C.), Wuhan passou por uma diminuição de sua importância, sendo foco constante de disputas políticas e militares, ainda que seu simbolismo tenha permanecido devido à condição de ser um dos berços natalícios da sociedade chinesa.

Campus da Universidade Hubei. Complexo de prédios do programa de letras e literatura. Crédito: https://upload-china-admissions.imgix.net/

As atuais características cosmopolitas, são impulsionadas a partir do século XVIII e intensificam-se no século XIX, a partir da criação de instituições de educação regional para os habitantes das províncias próximas, tornando esta localidade um importante polo central de pensamento e desenvolvimento histórico da China. A Revolução Xinhai (1911-1912), responsável por estabelecer a República da China, teve seu pontapé inicial na ainda chamada cidade de Wuchang, hoje parte da metrópole de Wuhan. As guarnições militares da região, no início do século XX, eram as mais modernas da época, e foram as incitadoras de uma insurreição contra o governo local, onde após tomar conta da província, instiga posteriormente outras do país a insurgirem-se contra a Dinastia Qing.

No período anterior a 1949,  nos tempos da Primeira Frente Unida (1924-1927) entre o Partido Comunista Chinês e o Partido Nacionalista (Guomintang), Wuhan era uma importante base política urbana dos comunistas, que se tornou central após o massacre em Xangai, em abril de 1927, perpetrado pelo general Chiang Kai-shek. Ela era a principal base das expedições dos nacionalistas para o interior, durante a Guerra Civil contra os comunistas e outras frações dos ’’Senhores da Guerra’’, opositores à liderança Generalíssimo Chiang. Wuhan tornou-se tão importante, a ponto de ser a primeira capital provisória após a invasão japonesa em 1937. Enquanto foi ocupada pelo Exército Imperial Japonês, foi uma importante base para os ataques japoneses as províncias mais a oeste, a partir de 1938, incluindo a segunda capital da resistência, Chongqing.

Neste sentido, não há exagero algum em dizer que Wuhan é uma cidade simbólica para a sociedade chinesa. Em suas ruas, além de todas estas histórias, coexistem não apenas o passado e o presente, mas, sobretudo, o futuro. O parque tecnológico desta cidade é responsável por boa parte das inovações industriais do país e do planeta. Um deles, o Vale Óptico Guanggu abriga as principais indústrias de fibra óptica, semicondutores e equipamentos eletrônicos de telecomunicação de toda a China, cuja existência é o triunfo de um projeto de longa data de investimentos do governo, que tem início na década de 1970. Wuhan foi a primeira cidade do país a conseguir fabricar uma fibra ótica e elevar a sua condutividade aos padrões mais altos da época, desenvolvidos na Alemanha Oriental, Estados Unidos e Japão.

Wuhan, bem como sua província, Hubei, berços da industrialização chinesa junto com Xangai, Pequim, Nanquim e outras cidades, seguiu um caminho inverso ao tomado pelos centros urbanos do ocidente nas últimas quatro décadas. Frente à importância de atingir os objetivos de desenvolvimento propostos pela Reforma e Abertura, e tendo a disposição pesquisadores e estudantes, somaram-se vultuosos investimentos financeiros em pesquisa e inovação combinados com o histórico parque industrial. Este ainda permanece como o principal movimento do novo período temporal do país e da cidade, articulando investimento em pesquisa e inovação, em conjunto com a produção de produtos e serviços.

Possivelmente, o melhor exemplo dessa nova era é a indústria automobilística existente na cidade, que passa por uma significativa inovação nos dias atuais, com a introdução das baterias elétricas nos veículos, adaptando-os às metas de redução da emissão Dióxido de Carbono (CO2). Uma história que de certa maneira chega a confundir-se com a própria evolução da industrialização e do desenvolvimento econômico do país.

Em 1969, o governo chinês fundou em Wuhan a empresa Estatal de veículos Dongfeng Motor Corporation, tornando-se a segunda baseada na região central da China. A instalação desta empresa na área era parte do projeto de interiorização da indústria no país, com a criação de complexos estratégicos. Durante o período da Reforma e Abertura, esta empresa, a semelhança de boa parte das demais no país, estabelece uma série de joint-ventures com empresas estrangeiras, objetivando conseguir conhecimento de produção e inovação. A primeira delas ocorreria já em 1992, com a empresa francesa Peugeot S. A.  que abriu portas para outras parcerias na Europa, Coreia e Japão.

Praça do Vale Óptico. Localizado na Nova Zona de Desenvolvimento Tecnológico de Donghu (Guanggu), distrito de Hongshan, Wuhan. Crédito: Wikipedia.

A Dongfeng Motor Corporation, ainda baseada em Wuhan, é nada menos que parte das quatro maiores montadoras de automóveis chinesas, perdendo apenas para a SAIC Motor, sediada em Xangai, e igualmente Estatal. Cerca de 10% de todos os veículos construídos no país saem de Wuhan, com o agravante de que ali também se exporta para boa parte do mundo, que a exemplo das máscaras de proteção, apenas descobriu-se o monopólio produtivo, durante o período da pandemia. Não por acaso, a mesma empresa foi uma das primeiras no mundo a desenvolver carros à bateria, a partir de 2016, ao apresentar o seu veículo passageiro, modelo ER-30. Da mesma forma, Hubei será a primeira província chinesa, já a partir do ano de 2021 a banir o uso de combustível fóssil. E como se não bastasse, Wuhan também é uma das primeiras cidades do mundo, assim como na China, a ter cobertura móvel da Rede de Conexão 5G. Será uma das primeiras a testar a próxima geração da tecnologia, ainda em desenvolvimento, chamada 6G.

Este fato direciona a uma questão de grande importância: o pioneirismo de Wuhan na história chinesa. Por motivos históricos e geográficos, Wuhan tornou-se uma das ’’cidades pilotos’’ da China, após o triunfo da Revolução de 1949. O movimento de revitalização da sociedade chinesa, existente desde o fim do século XIX, passou pelas cidades milenares do berço civilizacional do país- e como se sabe Wuhan é uma delas. Os motivos também são geográficos por sua posição central, possibilitando a conexão com todas as regiões e o afastamento das áreas fronteiriças ameaçadas permanentemente pela invasão e ocupação das potências estrangeiras.

Isto também representa um significativo giro histórico para o interior- de onde também nasceu a Revolução Chinesa-, pois o modelo econômico centralizado nas regiões costeiras do leste e sul do país foi substituído por uma radical descentralização, com a criação de polos no interior, já durante a Guerra Civil. O Grande Salto Adiante solidificou boa parte destas condições em Wuhan, uma cidade modelo neste aspecto. Aliás, é importante lembrar das presenças e passagens históricas da vida do líder revolucionário chinês Mao Tsé-Tung pela cidade, responsável inclusive por popularizar uma tradição de travessia a nado do Rio Yangze, a fim de impulsionar a prática esportiva. Fatos pouco conhecidos fora da China.

Mao Zedong, um dos líderes da Revolução Chinesa, em uma das suas travessias a nado pelo Rio Yang-Ze. Crédito: https://miro.medium.com

Wuhan e a província de Hubei não são apenas pioneiras nos projetos e soluções ao longo da história, mas também de alguns problemas. Durante o período mais violento das lutas políticas na Revolução Cultural, Wuhan presenciou um confronto aberto entre frações partidárias pela liderança do distrito militar da localidade. No século XIX, foi uma das primeiras cidades do Rio Yangze forçadas a abrir as portas para o mundo ocidental, após as suas derrotas nas guerras com os europeus, além de ter sido uma das cidades chinesas onde vigoravam as leis extraterritoriais e racistas impostas pelas potências imperialistas. Hoje uma das questões que mais chamam a atenção é o problema ambiental dessa e diversas outras cidades chinesas.

Wuhan e a província de Hubei possuem graves problemas em aspectos ambientais. Seus lagos e rios possuíam, no período mais crítico, uma poluição respectiva de 89% e 56% de suas superfícies, cujo uso como exemplo ruim da experiência chinesa de industrialização no ocidente foi bastante usual. Durante o ano de 2000, era comum que, em determinadas épocas, atividades fossem canceladas na cidade em razão da poluição do ar, trazendo transtornos a população. Apesar das medidas legislativas aplicadas, que nunca foram poucas, as dificuldades em lidar com o meio ambiente permanecem nesta cidade, junto com outras no país- ainda que a situação já tenha sido pior. A solução para isso tem sido buscada em um novo modelo de desenvolvimento, cujos princípios baseiem-se em novos pressupostos que abrangem a harmonia com a natureza.

Apenas em 2007, o Partido Comunista Chinês incluiu entre os seus princípios a ideia de ’’Visão Científica de Desenvolvimento’’, onde o então líder Hu Jintao propôs repensar o conceito de desenvolvimento, visando abranger a ideia de construção de uma ’’Sociedade Harmoniosa’’ que incluísse uma nova abordagem para políticas ambientais. Embora isso pareça completamente fora do tema em foco, é um ponto importantíssimo, pois o que se conhece no ocidente por desenvolvimento, e que foi difundido pelo resto do planeta como uma ’’verdade absoluta’’ é baseado nos princípios de uma sociedade extrativista, consumista e exploradora dos recursos humanos e ambientais. Wuhan é uma das primeiras cidades mundiais na busca da solução destes problemas e da construção de uma ’’sociedade harmoniosa’’.

Em 2016, a partir da parceria entre o governo de Wuhan e o Banco Asiático de Desenvolvimento, foi aprovado um ambicioso projeto de revitalização ambiental que custará nada menos que 3.572,7 milhões de yuans. Um plano pioneiro que tende a estender-se como modelo para outras áreas urbanas do país, e que já contém os princípios desenvolvidos da proposta de Hu Jintao, que culminaram na inclusão do princípio de construção de uma Civilização Ecológica para os planos quinquenais, a partir de 2012.

As quatro metas do plano citado são: 1) Coleta e tratamento de todo o lixo, dejeto industrial e orgânico lançado sobre a superfície terrena, ou aquífera da cidade; 2) Desenvolvimento de uma Zona de Reabilitação de lagos e canais de Wuhan; 3) Reabilitação do Lago Yangchun no centro urbano, assim como o seu canal; e 4) Fortalecimento da capacidade de continuidade da implementação das medidas de harmonia com o meio ambiente. Aliado a isso, Wuhan já é uma das cidades chinesas que deixou de usar plásticos, assim como tem trabalhado ativamente para diminuir a poluição do ar pelas indústrias residentes dentro do plano de zerar a emissão de CO2 até 2060.

Embora seja muito cedo para afirmar algo, ou observar os resultados deste projeto de médio e longo prazo, algumas transformações já são visíveis, onde a realização na cidade dos Jogos Mundiais Militares em 2019 é um exemplo. Em 2017, a cidade passou a fazer parte do programa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) Rede de Cidades Criativas, que aglomeram cidades do mundo inteiro, cujos planejamentos incluem a relação com o ambiente e acessibilidade para os habitantes que trabalham, estudam e vivem no centro urbano. Uma realidade de poucas cidades no planeta, porém cada vez mais presente nas principais metrópoles chinesas.

Ainda que a tragédia representada pela pandemia da Covid-19 tenha sido uma espécie de trampolim para propaganda contra a China, curiosamente também se tornou uma ’’vitrine do sucesso’’ devido a capacidade de alocar espaço para a construção de 2 hospitais de campanha em um prazo histórico recorde, bem como a própria visibilidade ecológica que tem melhorado desde 2010. É inevitável perguntar, qual grande metrópole no mundo é capaz de fazer tamanha façanha, em tão pouco tempo, sem gerar problemas significativos para a cidade ou seus residentes?

Aqui vemos mais uma vez do pioneirismo de Wuhan: o passado que aponta em direção ao futuro, ainda no presente. O que há de vir não é radicalmente oposto do que já foi, ou está sendo construído, apenas diferencia-se em razão das necessidades humanas e ambientais. Portanto, não há, por exemplo, necessidade de derrubar parte da cidade, prédios históricos ou locais já estabelecidos e prontos para depois reconstruí-los de forma radicalmente diferente, como é muito comum nos modelos de reforma urbana existentes no ocidente, levando a um desperdício de recursos financeiros, materiais, sem contar com a forma violenta que frequentemente tais medidas são realizadas.

Wuhan não é a única cidade chinesa construída que, ao longo dos tempos, transforma-se dentro dessas formulações. Contudo, dada sua histórica condição milenar e simbólica, inclusive para o atual processo de rejuvenescimento da sociedade chinesa dentro da ideia de uma Nova China que completará seu centenário em 2049, tornou-se um do modelo de renovação. Não é por acaso que o lema desta cidade seja: ’’Wuhan, diferente a cada dia!’’.

Referências:

CHINA DAYLY. Wuchang Uprising Tourism regions for 1911 Revolution. 2012. Disponível em: https://www.chinadaily.com.cn/m/hubei/gov/2011-11/29/content_14583317.htm.

CGTN. Wuhan’s efforts to protect its lakes. 2019. Disponível em: https://news.cgtn.com/news/3d3d674e794d544d35457a6333566d54/index.html.

CREATIVE CITIES NETWORK. Wuhan. 2017. Disponível em: https://en.unesco.org/creative-cities/wuhan.

JABBOUR, Elias Marco Khalil. Projeto Nacional, Desenvolvimento e Socialismo de Mercado na China de Hoje. Tese de Doutoramento no Programa de Pós-Graduação em Geografia Humana do Departamento de Geografia, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2010.

NATIONAL DATA. National Bureau of Statistics of China. Disponível em: https://data.stats.gov.cn/english/easyquery.htm?cn=E0105.

WUHAN MUNICIPAL GOVERNMENT. PRC: Wuhan Urban Environmental Project. 2016. Disponível em:  https://www.adb.org/sites/default/files/project-document/189440/42011-013-seia-03.pdf.

 

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por Anders Noren

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