
A notícia do leilão do acervo da TV Manchete e o incêndio de um dos depósitos da Cinemateca Brasileira são dois episódios recentes que mostram como o patrimônio audiovisual do país está ao deus-dará. Mais ainda: mostram como estamos impotentes para reverter essa situação de descaso, em parte deliberada, em parte consequência da falta de uma cultura de preservação da nossa memória, nossa história, nossas obras. Para além de irmos à porta da Cinemateca, em São Paulo, e de nos manifestarmos pelas redes sociais, o que está a nosso alcance fazer? É preciso pensar em alternativas.
Estamos sem interlocutores – neste e em outros assuntos. O debate no Brasil está interditado, desde que as jornadas de junho de 2013 foram usurpadas pelas elites e pela extrema direita. Lavajatismo, golpe de 2016 e a eleição do inominável à Presidência da República consolidaram a hegemonia do obscurantismo. Toda e qualquer pauta em defesa do coletivo, do social, da cultura, das artes, da ciência, da pesquisa, do serviço público é tachada de vermelha, de forma pejorativa.

Parte da estrutura de poder – político e econômico – está tomada pelo reacionarismo, que fecha as portas a qualquer possibilidade de diálogo. Lideranças e instituições, quando não acuadas, estão sem forças e sem voz. Os direitos mais elementares, as causas mais óbvias, basilares do processo civilizatório e do humanismo não conseguem reverberar. Recebem rótulos que inviabilizam a comunicação com o público. Com uma sociedade enfrentando desemprego, fome, miséria, violência de todas as ordens, a disseminação de medos e ódio encontra terreno fértil.
Mas, voltando ao tema central desta conversa, o do nosso patrimônio audiovisual sendo destruído, como conseguir salvar o que ainda resta? Como escapar desse labirinto? É preciso unir forças e encontrar soluções práticas e urgentes. Não é possível que vamos deixar as mais de 25 mil fitas da Manchete, de produções emblemáticas da história da televisão brasileira, ficarem à mercê da lógica de mercado – quem der mais, leva.
Porque as novelas “Pantanal”, “A História de Ana Raio” e “Zé Trovão”, “Kananga do Japão” e “Dona Beija”; minisséries como “Marquesa de Santos” e “O Canto das Sereias”; as transmissões de desfiles das escolas de samba, reportagens do “Documento Especial”, o humor do “Cabaré do Barata”, só para citar alguns exemplos, são bens culturais nacionais, de interesse público. Expressam concepções estéticas e artísticas; enredos e conteúdos que são obras de seus realizadores, mas são igualmente a síntese de uma sociedade. Da nossa sociedade.
As toneladas de papeis e fitas queimadas pelo fogo no galpão da Cinemateca na Vila Leopoldina não são apenas escritos e filmagens feitas por pessoas, grupos e instituições. São documentos, que materializam o que fizemos, pensamos, difundimos, criamos… O acervo da TV Manchete, os arquivos da Cinemateca Brasileira são uma parte da gente. Destruí-los é um processo de automutilação.
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Em tempo 1: segundo a Revista Piauí, o leilão do acervo da TV Manchete, que deveria ter ocorrido entre os dias 3 e 19 de maio, não teve interessados. Terá de ser remarcado. Temos chance de pensar em uma saída que assegure a preservação e a democratização do acesso a esse bem de valor de imensurável.
Em tempo 2: o incêndio do galpão da Vila Leopoldina (zona leste da capital paulista) da Cinemateca Brasileira ocorreu em 29 de julho. Em 7 de agosto, atos em várias cidades do país foram realizados em protesto contra o descaso do governo federal para com o órgão.
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