
Ao assistir “O Túnel” (2016) do diretor Kim Seong-hun, foi difícil não lembrar do clássico de Hollywood “A Montanha dos Sete Abutres” (1951), de Billy Wilder. Apesar das diferenças de contexto da história e de personagens, ambos os enredos, em ambas as produções, questionam os valores e a conduta humana, ao aproveitarem-se do sofrimento alheio para “lucrar” de todas as formas possíveis.
No filme estadunidense, estrelado por Kirk Douglas, temos a figura do jornalista que acompanha a luta de um cidadão comum para salvar a própria vida, colocada em risco por um acidente quase fatal. Já na produção sul-coreana há outros vilões, além dos jornalistas, a exemplo do poder público, personificado na figura da governadora local, e os empresários. Tanto um, quanto outro, hoje em dia, conhecem e sabem o poder de influência da mídia e assim também buscam a sua fatia de atenção, no intuito de propagar a imagem de boas autoridades, ou empresários arrependidos, que fizeram parte do esforço heroico para salvar uma vida.
Com relação à mídia, certamente, nos dois casos, os profissionais da imprensa não estão nem um pouco preocupados com o indivíduo em si, mas com a força sensacionalista que tal acontecimento promove, em uma espécie de reality show da vida real que incita o crescimento dos índices de audiência e, proporcionalmente, impulsiona suas carreiras. Há diferenças interessantes também nos personagens do acidente. Em “A Montanha dos Sete Abutres” a vítima acaba falecendo, mas em “O Túnel” ela consegue sobreviver e ter momentos preciosos, podendo, inclusive, por segundos que seja, revidar a violência e o abuso da mídia, empresários e autoridades públicas. Aliás, os diversos momentos de puro sarcasmo e ironia de situações pelas quais passa o personagem, promovem situações de descontração para o público.

Como no caso real dos 33 mineiros chilenos presos em uma mina, é possível transportar-se para junto de Lee Jung Soo (Ha Jung-Woo) facilmente. Ele, um simples pai de família, está indo do trabalho para casa, comemorar o aniversário da filha. Para tanto, ele precisa atravessar um túnel, que passa por uma montanha. No caminho, o impensável acontece: a construção colapsa. Quando Lee Jung Soo recupera a consciência, ele encontra-se preso dentro de seu carro, sob milhares de toneladas de concreto e detritos.
Tudo o que ele tem consigo é o celular dele, duas garrafas de água e o bolo de aniversário da filha. O contato com entes queridos, no caso a esposa Se Hyun (Bae Doo Na), e com um funcionário da equipe de resgate Capitão Kang (Shin Jung Keung), o único que realmente almeja salvar Lee Jung Soo, custe o que custar, são as fontes de apoio psicológico a um cidadão que se encontra em uma situação extrema.
Contudo, ele ainda resguarda a capacidade de ser atencioso e solidário com os que estão na mesma situação que ele, a exemplo de uma outra vítima que está imóvel sob os escombros e seu cachorro. Há um ditado que diz ser possível realmente conhecer a índole de alguém quando a pessoa em questão encontra-se em situações capazes de pôr em rico a sua vida. Lee Jung Soo é um indivíduo muito bom, incapaz de qualquer violência, nem mesmo com o cachorro que devora a última parte do bolo e a água que ele tinha guardado. Afinal, aquele animal é seu único companheiro real e estará com ele até o final.

Pode-se pensar aqui numa analogia daquele ser humano de boa índole que é vítima de constantes abusos, mas que pela força interna pode ultrapassar todos os obstáculos. Trata-se de uma ideia um tanto ingênua e romântica, mas que, no fundo, todos gostaríamos que fosse verdade. Ou seria o psicológico e o mecanismo inconsciente da vítima que luta por sobrevivência que a fazem agir desta forma?
De qualquer forma, é possível perceber que a solidariedade e empatia podem ser elementos de alento e que enobrecem o humano, em um contexto onde só há o pior dele: os empresários que não usaram o material adequado para a construção, visando apenas o lucro; as autoridades que desejam apenas sair bem da situação; a mídia que deseja audiência e os funcionários de resgate que encaram aquela situação como mais um dia de trabalho, um caso, como muitos outros. A exemplo de um médico que trata os pacientes como coisas quaisquer. Morrer, ou não, já não faz diferença para eles.

Por assim dizer, a interpretação dos atores, com ondulações que vão do drama, do trágico ao hilariante, também é um ponto a mais do filme. Ha Jung Woo é um sobrevivente perfeito, que transmite com facilidade a ansiedade e claustrofobia do contexto. Da mesma forma, auxiliam este toque de “cinema provocador de sensações”, com os efeitos especiais bem construídos, assim como a fotografia, nebulosa no confinamento da vítima e bem clara na superfície onde está toda a equipe de resgate. Portanto, não seria de espantar se você, espectador, sentir, um pouquinho que seja, de falta de ar, ao acompanhar a jornada de Lee Jung Soo de volta à superfície, com oxigênio em imensas quantidades.
A vontade de puxá-lo daquele buraco instantaneamente, assim como a de mandar bem longe imprensa, empresários e autoridades é praticamente irresistível. Pode-se exemplificar esta mistura de drama com comédia com uma cena fantástica, em que os drones de cada emissora de TV são acionados para acompanhar os agentes de resgate túnel a dentro. Eles parecem moscas voando descontroladamente, importunando quem está ao redor, mas são rapidamente liquidados por um novo desabamento. Esta e outras passagens do filme valem algumas horas para entreter-se e também fazer refletir, um pouco que seja, dos abusos que somos submetidos diariamente.
Fonte: Texto originalmente publicado no site do Koreapost
Link direto: https://www.koreapost.com.br/colunas/cine-coreia/o-tunel-expoe-abusos-pelos-quais-o-cidadao-comum-passa-no-dia-dia/
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