
A série “Missa da Meia Noite”, da Netflix, é a nova peça do universo antológico do criador Mike Flanagan, que utiliza o gênero do horror para discutir as cada vez mais complexas e dolorosas relações humanas da nossa contemporaneidade. Somos quase 8 bilhões de pessoas que se acotovelam nas ruas e nos bites, cada vez mais divididos nas cores políticas, nas estratificações das classes sociais, na crescente fome por consumo de bens, apavorados pelos limites da vida moderna e envoltos na vastidão perigosa das redes sociais. Algo como o mundo líquido de Bauman, progressivamente instável e inseguro.
Diferentes das mini séries anteriores, “Maldição da Residência Hill” (2018) e “Maldição da Mansão Bly” (2020), “Missa…” não é ambientada numa típica mansão assombrada, mas numa ilha isolada, a 50 km da costa, lar de uma empobrecida comunidade de pescadores, paralisada no tempo e em franca decadência. A sensação de confinamento persiste, já que a vida insular daquelas pessoas não oferece muitas possibilidades, paisagens e perspectivas, tal qual os quartos e ambientes das casas mal-assombradas e seus segredos e maldições aprisionadas ali.
A ambientação claustrofobia, que aprisiona os personagens em verdadeiras ratoeiras psíquicas e existenciais, presentes nas séries anteriores da antologia, está obviamente presente aqui também, ainda que numa escala maior. Já no primeiro capítulo, nos minutos iniciais, o diretor apresenta um belo e estranhamente ameaçador plano aberto da ilha, onde a enxergamos pequena, estreita e cercada de água. Uma verdadeira prisão, que assim se revela ao acompanharmos o triste Riley Flynn (Zach Gilford), recém saído da cadeia onde cumpriu pena de 4 anos por dirigir embriagado e causar a morte de uma jovem (que o assombra, numa típica intervenção dos mortos – e da culpa – nos roteiros da antologia de Flanagan).

A volta para ilha da infância, onde mora sua família é o retorno do homem quebrado, angustiado, devorado pela culpa. Logo, a fatalidade de uma vida sem perspectivas dá-se na rima narrativa, que desloca o personagem de uma prisão para outra. A ilha, assolada pela decadência econômica – a direção de arte é competente ao acentuar a decadência daquele ambiente por meio de casas envelhecidas, eletrodomésticos antigos e barcos enferrujados, empilhados nas poucas ruas da comunidade – por conta de um acidente ambiental do passado, sofre com o abandono de moradores e o esquecimento.
Assim, vai-se construindo, desde o primeiro capitulo, a ideia de decadência e morte do lugar, como se aqueles personagens fossem progressivamente devorados e enterrados naquele lugar sem perspectivas. É na igreja de St. Patrick, católica, que a vida respira naquela ilha. Onde o centro social e espiritual daquele comunidade ganha força e faz aquelas vidas esquecidas ganharem sentido e propósito. O ambiente insular ressalta o ensimesmamento daquelas pessoas, envoltas numa religiosidade onipresente e conservadora.
Nesse ambiente de sufocante paralisia, onde o tempo arrasta-se, de tensões contidas, mas aparentes, a personagem Bev Keane (extraordinariamente interpretada por Samantha Sloyan) impõe ao grupo social sua dura religiosidade e seu moralismo opressivo. Desde a sua primeira aparição, sabemos da sua imposição pelo temor que desperta nos outros, da ameaça de alguma acusação moral, combinada com declamações bíblicas em tom de ameaça e repreensão. Obviamente, por meio da personagem Bev, o roteiro aponta suas críticas para o fundamentalismo religioso (que é muito presente no país dos produtores, assim como nosso triste país).

O personagem do fundamentalista religioso não é novo em tramas do gênero. Nos lembremos do extraordinário “O Nevoeiro” (2007), de Frank Darabont, adaptando um conto de Stephen King. E existe o Padre Paul, misterioso e jovem religioso que chega à comunidade, substituindo o veterano padre do lugar, já velho e doente, enviando pelos fiéis locais por meio de uma vaquinha para a Terra Santa, atendendo um antigo desejo do religioso. A construção do personagem Paul, obra de Hamish Linklater, é primoroso. Ele compõe um Padre Paul que inspira e intriga, com sua voz calma e baixa, tímida, que cresce e assusta no altar. Suas intenções são aparentemente redentoras, e ele traz na bagagem a capacidade de operar milagres.
Velho estereótipo do cinema, o personagem do estranho redentor apresenta-se de pronto…mas nunca o compramos de fato, já que, através de pequenas pistas que o engenhoso roteiro e a direção paciente de Flanagan, vamos entendendo que aquele personagem traz consigo segredos e contradições, que não se prestam no encaixe preguiçoso de outras produções do gênero. O Padre Paul não é ruim, no sentido das suas intenções. Ele só enxerga o mundo através do seu sistema de crenças e dos códigos da fé cristã. Não consegue, inclusive, entender o mal – o demônio? – que se aproxima, estabelecendo um inusitado e monstruoso pacto com ele.

E que ensaio sobre o nosso mundo. Somos socialmente encerrados pelos fantasmas da vida moderna. Isolados nos nossos bolsões sociais e profissionais. Vivemos em ilhas psíquicas, afogados em nossas crenças, desiludidos e perdidos em nossas ideias, concretas ou subjetivas. A Ilha Crocket é um pequeno simulacro do nosso ordenamento social. E o mal que nos assola, travestido das promessas da pós-modernidade, que vai do empreendedorismo messiânico à religião fundamentalista, propagada por radicais e espertalhões mundo afora. Vamos empobrecendo, adoecendo e cada vez mais afogando num mundo sem alívio.

E sobre a religião, a sensibilidade do cineasta trata com inteligência e respeito. Se o roteiro retrata Bev (e toda sua loucura fundamentalista) com a criticidade necessária, em nenhum momento a obra desrespeita a fé dos personagens, reconhecendo, inclusive, a força moral de vários deles. Numa cena particularmente tocante – e de um texto inspiradíssimo – o personagem Riley pergunta para sua amiga Erin Greene (Kate Siegel) o que ela imagina acontecer conosco após a nossa morte. E o que Erin diz, num cuidadoso monólogo, é uma fala adulta, poética e sensível de alguém que se inspira na fé para entender e conceber o triunfo do espírito sobre a morte.
O Roteiro trabalha essa dualidade da fé, que destrói e constrói coisas belas. O cineasta, cuja educação católica certamente o inspirou na concepção da trama, mas hoje se reconhece ateu, passa longe da tentação de promover um proselitismo ateu mal acabado. Outro personagem interessante, que também aponta para uma certa riqueza étnica da ilha – referência ao caldeirão étnico dos Estados Unidos contemporâneo – é o delegado Sheriff Hassan (Rahul Kohli), o homem mais cosmopolita da ilha, ex-agente do FBI, muçulmano recrutado durante os anos seguintes ao 9/11, que gradativamente vai percebendo o racismo repulsivo contra si e sua comunidade, ainda que seu conhecimento linguístico e cultural fosse de muita relevância para os serviços de inteligência.

É no personagem Hassan que a racionalidade refugia-se, em meio ao horror e o sobrenatural. Ele é o homem atormentado pela loucura da Guerra ao Terror e pela morte da sua companheira, que escolhe a ilha Crocket para refugiar-se dos ódios e cuidar da educação do seu filho, enxergando naquela comunidade alguma segurança. A falta desta é o resultado do medo atualíssimo do nosso mundo torcido pela incerteza. Outra mensagem do roteiro: não estamos seguros, mesmo em nossas “ilhas”, em nossos condomínios, em nossas cidades do interior ou na imigração para algum santuário europeu. Não estamos seguros! Porque a loucura é palpável, e espalha-se por todos os lugares.
A obra de Flanagan é permeada de monstros e fantasmas, mas eles são melancólicos, de uma tristeza romântica, deslocada do nosso tempo. Não são pérfidos, mas sim vítimas do esquecimento, da culpa e da solidão. A tristeza das nossas existências impulsionam nosso sofrimento pelo eterno. Acima de tudo, os fantasmas de Flanagan sofrem a maldição de um dia terem respirado, de terem sido Homens. Falhos. O roteiro não se preocupa em explicar o mal. Ele o entende como um dado natural, uma lado da natureza sempre em busca de equilíbrio.
Uma eventualidade fortuita, ainda que grotesca. E, por mais ameaçadora, a ameaça fantástica não chega perto da natureza humana e sua extraordinária capacidade de amar e destruir. E de como esses elementos contraditórios, que pulsam de nossa natureza humana, acabam encaminhando o destino daquelas pessoas, naquela ilha perdida na costa oeste estadunidense. Mas é na força da redenção, a grande fonte de inspiração da obra. O seu manifesto mais contundente. E da onde tiramos as passagens mais memoráveis da trama. Não esperava ficar tão comovido com “Missa da Meia Noite”, projeto que Flanagam desenhou e lutou para realizar durante muitos anos. Nela, enxerguei todo o meu desespero…
Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema.
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2021/10/21/a-serie-missa-da-meia-noite-como-parabola-de-um-mundo-sombrio-e-sem-esperancas/
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