
A Cúpula pela Democracia, reunião de líderes de países considerados democráticos pelos Estados Unidos ocorre nos presentes dias, e levanta um profundo debate sobre a ideia de democracia. Compreender isso é importante, pois desde o fim da Guerra Fria, ideias como ’’ameaça à democracia’’ ou ’’subversão dos valores democráticos’’, nunca estiveram tanto em pauta como hoje. Avaliar as implicações políticas, ideológicas e geoestratégicas por detrás desta discussão e cúpula é ainda mais importante.
O que os Estados Unidos e a Grã-Bretanha, líderes desta cúpula, possuem em comum, para além de saquearem e destruírem por duas décadas o Afeganistão e o Iraque; apropriarem-se via “roubo legalizado” de recursos financeiros de países como Irã e Venezuela; e serem os dois dos maiores patrocinadores de grupos terroristas como Daesh (Estado Islâmico do Iraque e do Levante) e Al-Qaeda? Mutios dirão, quase como um slogan de propaganda, Democracia!
Porém, o Super-Trunfo da Democracia funcionava com dificuldades e limites durante a Guerra Fria. Os Estados Unidos viveram um apartheid racial até a década de 1960, e a Grã-Bretanha mantinha um dos maiores impérios coloniais do mundo. No entanto, com a Crise Soviética e a sua destruição como Estado socialista em 1991, no triunfo ideológico do liberalismo, a ideia de vitória democrática, foi associada ao neoliberalismo- sendo, na realidade, um retorno aos clássicos liberais do século XIX. Essa ideia de democracia era universal, transnacional, extraterritorial e funcionava como uma espécie de eterna cruzada civilizatória.
Aliás, Estados Unidos e Grã-bretanha compartilham o nascimento da discussão sobre democracia contemporânea junto com outros países imperialistas europeus nos séculos XVIII e XIX. Clássicos do liberalismo ocidental, como Thomas Hobbes, John Locke e outros, viam no antipapismo inglês o caminho para impor uma sociedade escravista legal e funcional para garantir a liberdade dos “Homens Livres“. Isso nunca foi sinônimo de democracia, ou a ’’democracia de massas’’ que se conheceu desde o século XX. O Estado não era um instrumento para servir os interesses da população, mas um meio de equilíbrio da vontade e poder dos “Homens Livres’’, afinal “O homem é o lobo do homem“.
Nestes termos, a ideia de uma Democracia ampla no ocidente foi mal vista até o século XX e, mesmo quando desenvolvida, teve um fator muito mais enfático no equilíbrio social do que no protagonismo político popular, cuja visão permanecia como uma massa de lobos disputando a hegemonia da alcateia. O centro desta ideia de Democracia são as ditas ’’instituições democráticas’’- imprensa livre, voto e por aí vai-, o resto é consequência do “jogo democrático”. A ideia de defesa das instituições democráticas não nasceu ontem com Luís Roberto Barroso, e muito menos com Adam Schiff.


Entretanto, como nos tempos da Guerra Fria, revitalizados parcialmente com a Competição Estratégica dos Estados Unidos contra China, a ideia de democracia aparece no centro da discussão política e ideológica para esboçar alguma reação do envelhecido e apodrecido sistema estadunidense. O seu líder quase octogenário, Joe biden, é a evidência encarnada da falta de vitalidade e força de coesão política internacional, mesmo no próprio campo do chamado “Mundo Livre“. A expulsão das tropas estadunidenses do Afeganistão são apenas uma parte sintomática deste problema, pois tanto ali como no Iraque, cedo ou tarde, as forças políticas nacionais retomaram a liderança política destes países sem Estados soberanos. Entretanto, a chaga maior reside dentro do próprio coração dos Estados Unidos.
A Invasão do Capitólio- tema praticamente banido do Brasil, apesar do requentamento de performance do Capitão sem Companhia-, em 6 de janeiro de 2021, foi a maior evidência desta crise interna. Uma parte considerável da população não apenas desconfia do sistema eleitoral (O Santo Instrumento da Democracia), como não reconhece o presidente eleito pelos 306 representantes dos colégios eleitorais escolhidos em 2020. Este grupo de insatisfeitos possui um amplo espectro, indo desde operários desempregados a até os militares que retornaram de mãos abanando para a vida civil. Para todos eles, democracia era acima de tudo ter a casa própria e poder de consumo para manter o American way of life que nunca viram ou viveram, exceto nas telas de Hollywood. Portanto, a perda de confiança começa em casa.
Acertadamente, o novo presidente do Irã, Ebrahim Raisi, disse que os Estados Unidos substituíram o American way of Life pelo American way of War, e que não importava mais as cores, os nomes que ocupavam a Casa Branca, o mundo inteiro não vê mudança real. Isso não é exagero algum, pois pelo menos desde o fim da Guerra Fria, todas as guerras dos diferentes governos dos Estados Unidos são cruzadas pela democracia. Porém, mesmo depois de tantas cruzadas, o descrédito político interno e externo nunca esteve tão alto. Alguns chamam isso de crise das democracias, através de uma comparação mecânica da atual conjuntura com a crise liberal do período Entre-Guerras, e que se posicionava entre o fascismo e o socialismo.
O grande problema desta leitura, presente hoje na Casa Branca e em boa parte dos complexos militares, midiáticos, tecnológicos e terceiro-setores, é a naturalização da ideia de uma cruzada universal pela democracia. Neste caso, o conceito de democracia não é, apenas, aquele já dado em si e por si, presente nas ideias de Locke sobre a liberdade entre “Homens Livres“, embora tenha passado por leves gravitações até chegarem em um espectro social mais amplo no período presente. Democracia torna-se também uma ideia padrão de moderação, consenso multipartidário e ideológico, transformando a política em uma questão de técnica e gerência eficiente na liderança do Estado (Daí nascem os Macrons e Moros).
Esta perigosa operação filosófico-ideológica torna ainda a idéia de democracia o caminho de consumação de uma grande Cruzada Civilizacional, cuja missão estadunidense é liderar o mundo ocidental contra as “barbáries retrógradas e autoritárias”, capitaneadas hoje pelo Partido Comunista Chinês (PCCh), unido ao resquício da “elite burocrática soviética” de Putin. O próprio Lloyd Austin, secretário de defesa dos Estados Unidos, acidentalmente- ou não- expõe esta ideia ao chamar a Rússia de União Soviética há alguns dias atrás.
Um fato relevante sobre a Cúpula da Cruzada pela Democracia é observar que cerca de um terço da população mundial não foi convidada para as discussões. Não se trata apenas da exclusão dos “hooligans” do sistema internacional, Rússia e China- parafraseando o vice presidente militar brasileiro Hamilton Mourão-, mas também de alguns parceiros históricos vitais para geopolítica de Washington: a Família Saud, a Turquia, com ou sem Erdogan no governo, o governo militar tailandês e outros. Tornaram-se esses velhos aliados inimigos da democracia? Em outras palavras, adversários da cruzada pela democracia como os russos, chineses, iranianos, norte-coreanos e venezuelanos?
Os propagandistas do slogan Democracia dirão que sim. Mas sofrerão um choque com a realidade de vários convidados ao perceberem que o convite ao governo Bolsonaro e, inclusive ao governo da Ucrânia- modelo de Estado que o candidato a presidente Sérgio Moro deseja construir no Brasil- expõem os princípios geopolíticos intrínsecos da ideia de democracia enlatada que é vendida para o mundo.
Chineses e russos já compreendem claramente do que se trata, assim como vários outros países do sul global. A tentativa de dividir o mundo entre Estados democráticos e autoritários não convence nem mais o tolo dos iludidos, com a ideia de que os Estados Unidos são a maior democracia do mundo. Os princípios geopolíticos por detrás da Cúpula da Cruzada pela Democracia são ainda mais claros para os antigos aliados excluídos e que hoje, em desgraça, são boicotados. O caso mais exemplar disso é o da Turquia, cuja posição com vários outros países, possui uma difícil escolha: submeter-se aos princípios econômicos, geopolíticos e ideológicos da cruzada pela democracia, ou ser excluído do clube de Washington. Não há meio termo!


É muito cedo para dizer quais serão as consequências desta cúpula, porém uma possibilidade, já visualizada no presente momento, é que com a paulatina perda da hegemonia econômica, científica e ideológica do sistema internacional, os Estados Unidos isolem-se cada vez mais. Não se trata de um isolamento no estilo “fechar portas”, como foi falsa e equivocadamente associado à presidência de Donald Trump. É um auto-isolamento por equívocos políticos cometidos em ações unilaterais que desrespeitam vontades de seus próprios aliados/vassalos. Um exemplo atual é o Afeganistão, abandonado unilateralmente pelos Estados Unidos, sem informar e planejar a saída com os países da própria OTAN. Ao longo da história existem outros casos iguais que poderiam ser citados em ordem cronológica ou alfabética.
Dito isso, é inevitável perguntar quem são Biden, Kamala Harris, Anthony Blinken, Lloyd Austin, Nancy Pelosi, burocratas de Washington, Pentágono e Silicon Valley para decidirem que país/governo é ou não democrático? Se a decisão é unilateral, hoje é uma, amanhã pode ser outra. Afinal, a própria “democracia estadunidense” não passou incólume pela tendência autoritária mundial, e busca hoje criar uma sofisticada doutrina de contra-insurgência interna. Doutrina que possui forte conteúdo mccarthista, a parte não pública da cúpula, mas igualmente fundamental na concepção de Competição Estratégica. É possível ler em OTAN 2030:
“Ataques híbridos e cibernéticos não são eles próprios ameaças, são ferramentas empregadas por atores hostis, tanto Estatais como não Estatais, e que são ameaças. No entanto, é difícil detectar quem está por trás deles, pois os Estados por vezes usam proxies. Por trás desses ataques existe um objetivo estratégico, que é minar a ordem internacional, enfraquecer a OTAN e minar os sistemas democráticos nacionais dos países membros. Esses métodos são frequentemente direcionados ao ‘Elo mais fraco’ ou nações aliadas com uma vulnerabilidade específica” (NATO, 2020, p. 45).
E como solução para isso, a proposta presente no próprio documento é a criação de um Centro de Excelência para a Resiliência Democrática. Este centro deve funcionar para: ’’…fortalecer a resiliência da sociedade para resistir à interferência de atores externos hostis no funcionamento de suas instituições e processos democráticos, em complementaridade com as organizações internacionais relevantes.’’ (NATO, 2020, p. 52). Qualquer semelhança entre a estratégia e a prática será mera coincidência?
Como na Guerra ao Terror, é possível falar hoje na emergência de uma nova doutrina militar, política e ideológica da OTAN após a Invasão do Capitólio. Trata-se da Doutrina de Contenção à Insurreição contra as Instituições Democráticas, seja ela de espectro político (partidos e organizações políticas), ou de caráter nacional e mundial (organizações internacionais e Estados soberanos). A Cúpula pela Democracia apenas oficializa esta nova doutrina de guerra presente na ideia de Competição Estratégica solidificada no Plano OTAN 2030. Em suma, a Cruzada pela Democracia terá múltiplas esferas e será de espectro total.

Referências
KITFIELD, James. Attack on Capitol was the beginning of an American insurgency, counterterrorism experts warn. In: Yahoo news. Disponível em: https://news.yahoo.com/attack-on-us-capitol-was-the-beginning-of-an-american-insurgency-counterterrorism-experts-warn-100000381.html.
NATO. NATO 2030- United for a New Era. 2020. Disponível em: https://www.nato.int/nato_static_fl2014/assets/pdf/2020/12/pdf/201201-Reflection-Group-Final-Report-Uni.pdf.
QINGQING, Chen; XIN, Liu; WENWEN, Wang. Summit for democracy an ‘anti-China ideological clique’; US definition of ‘authoritarianism’ outdated. In: Global Times. 2021. Disponível em: https://www.globaltimes.cn/page/202111/1239863.shtml.
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