
A União Soviética deu ao mundo criações artísticas únicas, que uniram análise política e inovações da técnica. Entre elas está a sua produção cinematográfica que se tornou referência para muitas escolas da área ao redor do globo. Com o desmantelamento da URSS, os países que antes pertenciam à União, a Rússia sendo um deles, tiveram de seguir novos rumos e repensar suas indústrias culturais. Após o período conturbado político, econômico e social da Era Iéltsin, o mercado cinematográfico russo conquistou uma certa estabilidade na Era Putin, podendo retornar à ativa e repensar o seu futuro. Ao mesmo tempo que ainda continua reproduzindo muitos estilos provenientes do passado soviético, o cinema realizado na Rússia hoje começa também a absorver novas influências artísticas, especialmente no que diz respeito ao audiovisual de caráter mais comercial.
Os fãs do cinema de arte tendem a considerar que tais filmes são puro entretenimento. O que, na maioria das vezes, é verdade. Porém, é totalmente possível unir análise política, crítica social e talento artístico ao entretenimento. Muitos títulos cinematográficos russos servem de exemplo para tanto. “Major Grom contra o Dr. Peste” (Майор Гром: Чумной Доктор, 2021), dirigido por Oleg Trofim, apresenta algumas referências do cinema estadunidense Hollywoodiano: James Bond, Batman e Sherlock Holmes. Contudo, o âmago do seu enredo está totalmente vinculado à vida real, onde não há vilões, nem super-heróis com superpoderes, um toque característico da forma russa de fazer cinema.
Somado a isso, a trama tem como base as contradições do contexto social, econômico e político do passado e do presente da atual Rússia capitalista, refletindo em si elementos da crise sistêmica internacional deste início de século XXI. Esta obra será debatida neste sábado, 11 de dezembro, às 15h, na Sessão Rússia do II Festival de Cinema dos BRICS (clique aqui), organizado pelo Observatório dos BRICS e das Relações Sul-Sul, ambos vinculados ao Núcleo de Estudos Estratégicos, Geopolítica e Integração Regional (NEEGI) da Universidade Federal da Integração Regional (UNILA).

Nesta história, a cidade de São Petersburgo, a segunda maior da Rússia depois de Moscou, vive um período de convulsão social, com o aumento da criminalidade e da desigualdade entre pobres e ricos. Em um cenário um pouco distópico, a força da tecnologia e das redes sociais promoveram transformações profundas no tecido político social. Ao mesmo tempo que possibilitaram a mais grupos exporem suas opiniões e realizarem seus protestos, criaram um cenário anárquico que também auxilia a propagação da imagem de indivíduos com interesses escusos. Ainda neste contexto, o filme ressalta a existência de uma classe dominante abastada que com o seu poder econômico influencia o aparato burocrático Estatal, ficando livre para impôr seus interesses à população geral.
A morosidade da polícia expõe a vulnerabilidade do cidadão comum, vítima dos crimes cometidos pelos ricos intocáveis e protegidos por uma justiça comprada, ou que tende a não ser tão rígida com indivíduos poderosos. Por sinal, um cenário bastante conhecido pelos brasileiros… Desta forma, a esperança recai na atuação individual de alguns servidores públicos, policiais como Igor Grom (Tikhon Zhiznevskii), que, apesar de enfrentarem todo dia dificuldades, ainda persistem na ideia de que a lei deve valer para todos. No entanto, ele é uma autoridade atípica. Não respeita normas de conduta e suas escolhas, um tanto fora dos padrões, em diversas vezes trazem problemas para a polícia.
Grom sabe da realidade complexa que enfrenta diariamente e entende que para algumas pessoas e situações o protocolo não pode ser aplicado, caso contrário a justiça jamais será feita. Outra questão que vale destacar no personagem Grom é a sua ética. Ele carrega consigo ainda a ideia de que desistir em face às adversidades, não importa o quão duras, não é uma opção. Sua figura é a representação que o fortalecimento do aparato Estatal voltado a atender as demandas da população é o caminho para sair do processo de constante decadência, perpetuado pela assimetria do poder entre as classes, impulsionada pelo capitalismo.

O contrário de Grom é o Dr. Peste, uma personificação do falso profeta. O tão conhecido justiceiro, personagem bastante retratado pelo cinema estadunidense. Porém, para o contexto russo, ele pode ter uma representação um tanto diferente. Ao apelar para a sede de justiça dos que foram lesados pelo sistema e do público em geral, tais personagens da vida real e da arte podem guardar secretamente objetivos hediondos. Na justificativa de fazer justiça com as próprias mãos, os futuros facínoras e ditadores, sedentos pelo controle e por criarem seu próprio código de regras e moral, chegam ao poder. Os livros de história estão repletos deles. São os também chamados fundamentalistas, resultado da ausência do Estado e do desequilíbrio de poder entre os diferentes estamentos sociais.
Então, o Dr. Peste surge para punir os ricos e poderosos. É quase um Robin Hood. Ele não propõe nada, além de combater as “pragas” que controlam São Petesburgo e fazer com que o poder volte à população local. Para propagar seus feitos e sua imagem, ele faz uso da rede social Vmeste, criada por um gênio precoce e programador Sergei Razumovskii (Sergei Goroshko). Aqui temos a alusão a duas personalidades da sociedade russa: o ativista, ultranacionalista e de visões xenófobas Aleksêi Naválni, que além de usar a internet para impulsionar suas ideias contra o Kremlin, criou a imagem do justiceiro anticorrupção; já a construção para o personagem Sergei tem por base a vida de Pável Durov, fundador do Vkontakte (o Facebook russo) e do Telegram (equivalente ao Whatsapp na Rússia).
Em um discurso no filme, Sergei afirma que sua rede social promove a liberdade total a seus usuários e impede que seus dados sejam obtidos por governos ou grandes empresas. Aparentemente parece uma iniciativa positiva, mas não para uma sociedade pouco igualitária e ainda inclinada a projetar sua natureza mais cruel. Assim, o Vmeste passa, na realidade, a ser uma plataforma para o Dr. Peste noticiar seus crimes e incitar a violência e a total desordem. A barreira que vai impedir esta catástrofe de ser alastrada está com o Major Grom e seus amigos, indivíduos com o propósito de promover justiça dentro da lei e segundo os preceitos morais de que não deves eleger a morte como solução para problemas sociais, caso contrário o caos instaura-se. “Leu Dostoiévski?”, pergunta Grom ao Dr. Peste… Como é possível perceber, esta é uma produção cinematográfica que fomenta diversos debates, ao mesmo tempo que entretém.
Afinal, a narrativa é auxiliada por uma fotografia que utiliza de planos bastante criativos. Além disso, as falas e reviravoltas de enredo (os chamados plot twist) são repletos de ironia, irreverência, sarcasmo, momentos jocosos com os ideais clichês de heroísmo que o ocidente tanto adora, assim como de vilania. A atuação conta com nomes jovens promissores e que já participaram de grandes produções russas, Zhiznevskii e Goroshko, e atores veteranos como Aleksei Maklakov, que vive Fiodor Prokopenko, chefe da polícia. O grande ator Konstantin Khabenski faz uma ponta no final. Todavia, entre todas as figuras fictícias, é interessante ressaltar a importância do personagem Sergei, pois ele representa a dualidade existente no mundo e na sociedade russa, uma espécie de bem e mal vivendo no mesmo corpo e que será elemento central para o desenvolver dos acontecimentos e da crítica social desta obra.
Outra questão que pode ser salientada é o cenário. A cidade de São Petesburgo, com toda a sua majestade, torna-se um fator importante e é possível contemplá-la de forma satisfatória ao longo do filme, assim como alguns hábitos de seus moradores, demonstrando a convergência de culturas em uma metrópole cosmopolita. Por fim, mas não menos significativo, está a trilha sonora composta por músicos russos em suas línguas nativas e é necessário destacar a música de abertura criada pela ex-banda soviética Kino, e de autoria de Viktor Tsoi, uma lenda do rock soviético e cujas letras carregam críticas políticas e sociais profundas. No refrão de sua canção em russo, que acompanha a vinheta de abertura do filme, onde imagens de estátuas que representam a justiça de olhos vendados e sangrando, diz-se o seguinte: “Nossos corações exigem mudanças“.
É bastante claro que “Major Grom contra o Dr. Peste” é uma crítica à sociedade russa capitalista. É um tanto irônico realizar tal afirmação em um país que viveu no passado o socialismo e o defendeu do nazismo e de outros detratores e invasores. Contudo, ao final, os russos resolveram abandoná-lo para aderir a um sistema econômico global que, como a maioria dos outros povos no mundo são testemunhas, é intrinsecamente desigual e caótico.
As mensagens do filme são até explícitas. Em uma cena que Sergei vai à inauguração de um cassino denominado de Dragão Dourado e conversa com o oligarca, dono do estabelecimento, ele comenta que naquele local antes estavam monumentos históricos da cidade que foram destruídos para dar lugar a construção do cassino. Conforme o controverso personagem afirma, a documentação para a liberação foi conseguida, certamente, via pagamento de propina. Assim, Sergei dispara: “Este local resistiu à Revolução, à Guerra Civil e ao Cerco a Leningrado, mas não resistiu a vocês…”.
O Cerco a Leningrado ocorreu durante a Segunda Guerra Mundial, quando os alemães invadiram a União Soviética com 80% de suas forças, provocando uma carnificina que resultou no mínimo em 20 milhões de mortos. Ao cercar a cidade de São Petersburgo, antes denominada Leningrado em homenagem à Lenin, as tropas nazistas tinham o objetivo de fazer com que a população local perecesse aos poucos com a falta de suprimentos. As palavras de Sergei são fortes e direcionadas a classe oligárquia capitalista e endinheirada russa. E seu significado, ainda que esteja em contexto russo, certamente ecoa fácil no coração desesperado de muitos outros cidadãos ao redor do mundo. “Major Grom contra o Dr. Peste” pode ser assistido através da plataforma Netflix.
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