
O medo às vezes provoca um efeito curioso: o da reverência. É o que acontece com as cobras na Índia, que há milênios são reverenciadas nas suas religiões, como o Hinduismo, o Budismo e o Jainismo. Há vários templos em homenagem a esses répteis na Índia. Em outros países da Ásia as cobras são adoradas também.
As najas frequentaram o noticiário brasileiro em julho de 2020, após uma delas ter picado um estudante de veterinária em Brasília. A cobra ficou tão famosa que ganhou memes e várias páginas no Instagram, como o @najaofcial. O fato acabou desvendando um esquema de tráfico internacional de animais silvestres, já que a polícia achou 16 cobras no criadouro do rapaz, mantidas de forma inadequada.
Em uma experiência em um retiro de meditação nos pés dos Himalaias, em 2017, pude perceber o respeito a esses animais. Uma pessoa que trabalhava na administração do mosteiro budista deu as explicações do primeiro dia ao grupo de cerca de 15 mulheres [era um retiro liderado por monjas budistas]: onde ficava a cozinha, como era a divisão das tarefas, regras etc. No finalzinho, ele lembrou: “Ah, quero pedir para vocês tomarem cuidado com….as cobras”. E deu uma pausa, enquanto boa parte do grupo, a maioria da Europa e Estados Unidos, arregalava os olhos.

“…Tomem cuidado para não machucá-las, caso se deparem com elas no caminho entre seus quartos e a Gompa [o templo onde meditávamos o dia todo]”, observou. O caminho era um terreno com vegetação e estreitas trilhas. A preocupação do homem era 100% voltada para o réptil. E como o retiro de meditação presupõe o voto de silêncio, não daria nem pra gritar se a gente topasse com uma cobra. Ele destacou que era comum achar cobras no local, mas em geral elas não eram venenosas.
Há milhares de anos já havia comunidades de adoradores de cobras na Índia: arqueólogos acharam imagens de cobras em amuletos da época da civilização do Vale do Indo, há 3 mil anos. Que outro animal exerce tanto fascínio, medo e respeito como a cobra? Na cultura indiana, há sugestões de sua origem divina e muitas lendas relacionadas aos mistérios da vida desses bichos debaixo da terra. Em Sâsncrito elas são chamadas de nagas e na mitologia hinduísta, seres semi-divinos que às vezes assumem a forma humana: Kadru é a mãe de todas as cobras.
Na Índia rural o culto às cobras é bastante comum, já que a crença é de que se você as reverencia, não será atacado. Muitas divindades em algum momento aparecem associadas com cobras na iconografia hinduísta. Mas Shiva é o deus que aparece mais associado a esses répteis: a divindade é capaz de neutralizar o veneno das cobras. Daí esse deus hindu ser venerado como um curador de picadas desses animais.

cobras. Crédito: Facebook de Vava Suresh.
Um dos mais famosos centros de peregrinação de adoradores de cobras é o Templo Mannarasala Sree Nagaraja, no estado de Kerala (Sul da Índia). Muitas mulheres em busca de fertilidade frequentam o templo, relacionado a uma divindade chamada Parashurama, encarnação de Vishnu, o deus da Preservação no Hinduismo.
Os famosos encantadores de cobras indianos – os saperas – atraem os turistas até hoje, mas oficialmente estão proibidos por lei de as manterem. Pela tradição, eles as guardam em cestas, após tirarem seu veneno, e as exibem ao público em troca de dinheiro, enquanto tocam flautas. As cobras são protegidas por uma lei indiana de 1972, mas mesmo assim elas são alvo de caçadores, em busca de seu veneno e pele, valiosos no mercado internacional.
Em fevereiro de 2020, causou comoção na Índia a notícia de que o mais famoso resgatador de cobras do estado de Kerala havia sido picado e lutava pela vida. Vava Suresh atende apelos de pessoas que o chamam quando encontram cobras nas áreas urbanas. Ele as captura para soltá-las na natureza. Suresh já resgatou 30 mil cobras em 30 anos. Dizem por lá que ele conta com a proteção de todos os deuses indianos. Afinal, Suresh já sobreviveu a 250 picadas.
Fonte: Texto originalmente publicado no Beco da Índia.
Link direto: http://becodaindia.com/najas-como-elas-sao-veneradas-na-india-onde-ha-templos-em-sua-homenagem/
Florência Costa
Jornalista freelancer, especializada em cobertura internacional e política, foi correspondente na Rússia pelo Jornal do Brasil e serviço brasileiro da rádio BBC. Em 2006 mudou-se para a Índia para ser correspondente do jornal O Globo É autora do livro “Os Indianos”. E editora do site Beco da Índia
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