Mianmar: a nova guerra das sombras

General Min Aung Hlaing, Chefe do Estado Maior do Tatmadaw (Forças Armadas do Mianmar) e Presidente do Conselho de Administração do Estado, líder de facto da Ditadura Militar. Crédito: https://asianews.press/

Durante o governo de Barack Obama, para além das guerras convencionais no Iraque e Afeganistão, vários conflitos com nomes pouco conhecidos também se desenvolveram com participação dos EUA: Líbia, Somália, Iêmen, Síria e outros. Neles não apenas os Estados Unidos tinham participação pontual com tropas mercenárias e bloqueios econômicos, mas também uma espécie de política de caos coordenado, como definido com exatidão por Andrew Korybko. Uma dessas novas guerras chegou ao Mianmar.

Entre os ocidentais, em especial nos EUA, talvez a única vaga lembrança de algo próximo do Mianmar, é a figura do general M. Bison, interpretando o ditador birmanês Than Shwe no filme “Street Fighter” (1995). Entre os adeptos do budismo, talvez haja uma visão menos vaga, pois o país é conhecido por ser um centro cultural budista. Entretanto, a visão de um país hegemonizado pelo budismo também não é tão próximo do que é o Mianmar. O presente conhecimento do país é profundamente distorcido pelo orientalismo.

Um pouco de história em primeiro lugar

Histórica e geograficamente, o Mianmar é um Estado de transição entre o sul e sudeste asiático e pressionado há milênios por essa posição. Duas grandes civilizações emergem ao lado dos birmaneses, no sudeste asiático, a antiga cultura tailandesa das comunidades Suvarnabhumi, e na atual Índia, a Civilização do Vale do Hindu. Desde então, os embates culturais e sociais do Mianmar refletem estas relações. Por exemplo, historiadores discutem ainda hoje o papel de algumas das Cidades Estado de Pyu (Séc. II a. c. ao Séc. XI d. c.) na difusão do budismo pelo sudeste asiático no período do imperador indiano Ashoka.

Pintura de uma mulher Bengali na região de Bengala na Índia do século XVIII. Autoria de Francesco Renaldi. 1789. Crédito: https://commons.wikimedia.org

No auge do poder da Dinastia Tangoo (1510-1752), por 18 anos, sob o reinado de Baynnaung (1551-1581), este Estado predecessor ao Mianmar, estava entre os principais do mundo. Os Tangoo dominavam o Bangladesh, parte da província de Yunnan no sul da China, Tailândia e Laos, rivalizando território com o Império Moghol, no norte da atual Índia, e a Dinastia Ming na China. As pressões culturais da diáspora chinesa e dos missionários muçulmanos indianos não foram suficientes para uma influência cultural mais maciça. O budismo manteve-se como principal religião da região, a despeito do próprio violento processo colonizador ocidental.

É marcante destacar que o golfo de Bengala já foi um grande centro da economia mundial, à exemplo do que foi Londres, Manchester, Chicago e a atual baía de Guandong na China. Segundo André Gunder Frank notou em ReOrient: Global Economy in the Asian Age, a Índia e o Mianmar pré-britânicos, eram ao lado de China e Japão, três das áreas mais industrializadas do mundo. Calcutá- ou Kolkata-, era um grande centro manufatureiro que dava coesão entre o sudeste asiático e a Índia. Tudo isso foi destruído com a expansão econômica britânica pela Ásia e suas ações militares na região, a partir do século XIX.

A conquista britânica do Mianmar estabeleceu desde o início uma economia baseada na extração de recursos minerais, produção e distribuição de drogas para o sul da China- e que levaria as Guerras do Ópio-, desarticulando completamente os centros econômicos e políticos da região. O Reino de Sião (Tailândia depois de 1932), único Estado independente no sudeste asiático, cedeu parte de sua soberania para franceses, britânicos e japoneses. Consequentemente, estes passaram a exercer uma influência profunda sobre os birmaneses, transformando as antigas relações de poder na região.

Pintura de Birmaneses praticando um esporte equestre durante o período da Dinastia Konbaung (1752-1885). Crédito: https://upload.wikimedia.org

As drogas e a violência física destruíram as bases da sociedade birmanesa de até então com as imposições westfalianas/kantianas transplantadas desde o ocidente. A perda da centralidade social dos monastérios budistas, responsáveis por uma educação de características milenares para parte da população, bem como a própria generalização do inglês e birmanês como idiomas oficiais, criaram problemas étnicos ainda hoje não solucionados plenamente. Esta situação durou cerca de um século.

Após vencer os britânicos e japoneses durante a Segunda Guerra Mundial, e ter reconhecida sua independência em 1947, mas existente de facto em 1945, obrigou os britânicos a reconhecer a perda deste importante bastião de seu império. Contudo, a história independente da Birmânia não é pacífica e fácil. Influências nacionalistas ufanistas desde a Índia (Budistas e Hindus), além dos militares da Tailândia, buscam estabelecer uma hegemonia política sobre a região. Desde então, o Mianmar enveredou pelo espírito dos não-alinhados em Bandung, passou pelo Caminho da Birmânia ao Socialismo, com fortes influências soviéticas, viveu longas ditaduras militares, e chegou a possuir também um modelo de democracia liberal que prevaleceu entre 2008 a 2021.

A irreconciliável relação de Aung San Suu Kyi e os militares

Essa história é antiga, e precede a existência da Liga Nacional pela Democracia (NLD)– partido político de Aung San Suu Kyi-, pois o pai de Suu Kyi, Aung San, assassinado em julho de 1947, foi um dos líderes do movimento de independência do Mianmar. Khin Kyi, mãe de Suu Kyi, era uma personalidade política importante no país já nas décadas de 1950 e 1960, quando foi embaixatriz na Índia e no Nepal. A família de Suu Kyi passou a viver no exterior devido a instabilidade política no país, seguida da dissolução da Liga da Liberdade Popular Antifascista (LLPA)– organização que lutou contra a ocupação japonesa na segunda guerra- e a formação do Partido do Programa Socialista Birmanês (PPSB).

Fotografia de Aung San Suu Kyi, Chefe do Conselho de Estado Mianmar, atualmente presa. Crédito: https://www.poder360.com.br/

Apesar de simpática pelo socialismo no período pós-guerra, a família de Aung San Suu Kyi afastou-se do mesmo, a medida em que os militares (única instituição nacional do país) buscaram impor a construção do mesmo com o general Ne Win, a partir de 1962, como uma saída da hegemonia indiana, ocidental, tailandesa e chinesa. Na década de 1980, a política de retirada de subsídios aos aliados por parte do governo soviético de Mikhail Gorbatchiov jogou o governo socialista birmanês em uma violenta crise econômica. Ne Win foi incapaz de manter a ordem no país que recebia estímulos do crescente radicalismo budista, irradiado desde a Índia e do Tibet na China. Aung San Su Kyi foi peça central neste tabuleiro.

Um dos aprendizados retirados pelos militares do Mianmar, ao longo das primeiras décadas de existência como instituição nacional, é que os birmaneses, apesar de majoritários como etnia, não devem ter condições de impor sua visão de mundo- afinal, o budismo therevada é uma das frações mais conservadoras. Durante os primeiros anos de independência, a hegemonia birmanesa (quase 3/4 da população do país) fazia-se sentir e o socialismo foi visto como uma ferramenta de superação do problema, já que, até então, a URSS era um modelo no trato do tema da questão nacional. Entretanto, Aung San Suu Kyi, reconhecida pelos seus notáveis estudos acerca da literatura birmanesa, era a grande referência política do budismo e sua estadia na Grã Bretanha garantiu o pouco conhecido suporte do Serviço Secreto de Inteligência da Grã Bretanha (MI6) para articular a oposição ao governo socialista.

Uma vez que o governo socialista cai após um golpe militar e semanas de protestos em Yangon (também chamada de Rangum) e em Mandalay (A Revolta 8888– uma das primeiras revoluções coloridas), Suu Kyi negou-se a participar da nova junta militar e criou o seu próprio partido, a NLD. O objetivo da NLD ia além de derrubar o governo socialista, Suu Kyi e o MI6 desejavam desmantelar as estruturas de poder do Tatmadaw (Forças Armadas do Myanmar). O fracasso do movimento foi notável, pois durante a década de 1990 e 2000, Aung San Suu Kyi permaneceu presa, e a ditadura militar do Mianmar (novo nome assumido pós-1991) conseguiu construir novas estruturas autossustentáveis de poder econômico e político, apenas flexibilizados- não derrubados-, depois da Revolução de Açafrão (2007).

Monges budistas protestando em Yangon durante a Revolução Açafrão (2007). Crédito: https://www.rfa.org

Uma vez derrubado o governo socialista, áreas com a presença de metais raros com a presença de minorias nacionais como os Shan, Karen e outros podiam ser exploradas sem inconvenientes ideológicos. Desnecessário dizer os tipos de violações de direitos humanos cometidos nessas áreas, uma vez que os militares do Mianmar são mundialmente conhecidos pela violência. Inclusive, o próprio atual chefe de Estado, Min Aung Hlaing ficou conhecido por essa abordagem violenta, quando esteve a frente do combate à guerrilhas das minorias étnicas no país. Aung Hlaing, segundo o jornalista Pepe Escobar, descreve a operação contra os Rohingyas como ’’um trabalho não finalizado da Questão Bengali’’. As etnias de orientação religiosa muçulmana no país são generalizadas como Bengali.

Entretanto, esta situação criou um grande problema político para os militares, que a partir de pressões internacionais, em especial da Associação dos Estados do Sudeste Asiático (ASEAN)– a Tailândia é uma ponte de diálogo-, são forçados a flexibilizar o sistema político com a legalização de outras organizações políticas, e a pactuação de um acordo com a NLD, firmado na Constituição de 2008. Um pacto que dura pouco tempo e é tensionado de ambos os lados, já que o Mianmar permanece com dois governos. Um era liderado pela Aung San Suu Kyi e civis que buscam expandir a presença econômica ocidental e indiana no país, tentando criar estruturas de poder para a NLD, porém incapazes de reverter o quadro institucional. O outro governo, o de facto, era liderado pelos militares que tinham os intocáveis 25% de representantes no parlamento e que defendiam compartilhar o poder com os civis apenas como forma de integrar o país aos fóruns e às organizações internacionais, como a ASEAN.

Corporativistas, autoritários e defensores de um projeto econômico extrativista violento com as minorias nacionais, os militares birmaneses colocam-se na condição de nacionalista na região, e buscam vínculos profundos com a Tailândia (país nunca colonizado), uma aliada histórica do anticomunismo e do autoritarismo no Mianmar. Por outro lado, Suu Kyi, enquanto líder civil, passou a operar pelo interesse de construir por meio da NLD um sistema similar e paralelo ao dos militares em favor do ocidente.

Mahn Win Khaing Than, primeiro-ministro do parlamento eleito em novembro de 2020, e atual líder da NLD. Crédito: YouTube.

Entretanto, no aspecto internacional, foi cedendo ao longo dos anos, a ponto de aceitar conversas para que o país passasse a integrar o acordo da Parceria Regional Econômica Abrangente (RCEP)– o que foi inaceitável para o ocidente. A direção política de Aung San Suu Kyi na diminuição da intensidade de parceria com os países ocidentais- neste período já adotando uma política de contenção da China- junto com a violência contra os povos rohingyas, trouxe uma rápida mudança na imagem da líder da Revolta 8888, nos círculos midiáticos ocidentais.

No fim, isolada e enfraquecida internamente na NLD, e sem o apoio do MI6, Suu Kyi fracassa na tentativa desesperada de ganhar as violentas eleições de novembro de 2020 e repactuar o acordo constitucional de 2008. Entretanto, a queda de Suu Kyi não acabou com a NLD, apenas fez o favor aos anglo-estadunidenses de tirar do poder uma figura que se tornou útil apenas como mártir político.

O governo Fantasma da NLD- Governo de Unidade Nacional (GUD)

A ação rápida e sangrenta da Tatmadaw desarticulou rapidamente qualquer resposta inicial por parte da NLD. Excetuando as reações da comunidade diaspórica birmanesa pelo mundo que publicizaram os acontecimentos do Mianmar, os protestos internos no país não geraram resultados efetivos. Os líderes públicos da NLD, Suu Kyi e o chefe do Conselho de Estado de Yangon (uma espécie de prefeito), Phyo Min Thein, permanecem presos, e o próprio partido passou por uma mudanças na chefia. Membros obscuros que operavam nas sombras, desconhecidos do público ocidental, emergiram como líderes da organização/governo ’’guarda-chuva’’ da oposição, o Governo de Unidade Nacional (GUD).

Duwa Lashi La, atual presidente do Governo de Unidade Nacional (GUD). Crédito: https://upload.wikimedia.org

Mahn Win Khaing Than, chefe do governo fantasma era um importante articulador parlamentar da NLD, tendo sido chefe da Câmara Alta do Mianmar e da Assembleia da União, órgão que reúne as duas câmaras legislativas do país. Khaing Than foi um dos poucos líderes da NLD que escapou das prisões efetuadas pelos militares em fevereiro, tornando-o o cabeça do partido. Duwa Lashi La é o braço direito de Khaing Than e a nova figura pública nacional e internacional da organização. Até 2019, quando se tornou conselheiro de Estado da região de Shan do Norte, Lashi La era um advogado completamente desconhecido que havia trabalhado em ONGs ocidentais e em operações antidrogas no país (Leia-se Agência Antidrogas dos EUA-DEA).

A região de Shan, onde se localiza a etnia Shan, é parte do histórico berço da produção de ópio no sudeste asiático, o famoso Triângulo Dourado. A própria região em que Lashi La era conselheiro de Estado é sede da maior produção de ópio do Mianmar- e também de drogas sintéticas-, que paulatinamente vem sendo substituído por drogas sintéticas como a metanfetamina. Existe a tendência de uma expansão ainda maior, após a saída dos EUA do Afeganistão em agosto de 2021- principal rival da produção birmanesa- e a proibição de cultivo de ópio e tráfico de heroína pelos Talibãs. Um estímulo de reforço vem ainda do colapso econômico do país, que já possui um dos maiores índices de pobreza do continente asiático. O relatório do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC) sobre o Mianmar revela que:

“Apesar da mudança contínua para as drogas sintéticas, os grupos do crime organizado que traficam heroína no sudeste da Ásia geram lucros substanciais com o negócio. As últimas descobertas de 2020 mostram que o consumo doméstico de heroína de 6 toneladas foi avaliado em U$ 144-315 milhões, enquanto a exportação de heroína de Mianmar para os países vizinhos valia entre US $ 0,5 e 1,6 bilhão localmente (UNODC, 2021)”.

De acordo com o correspondente do veículo de notícias NPR na Tailândia, Micheal Sullivan, o Estado de Shan pode ser definido como o ’’leste selvagem’’. Grupos paramilitares, traficantes de drogas, mineradoras ilegais, o modelo ’’Serra Pelada de Economia’’. Em uma entrevista com o chefe da UNODC de Bangkok, Jeremy Douglas, é reportado que: ’’Vimos o crime organizado consolidar os negócios e aumentar a produção em algo que nunca vimos de fato em nenhum lugar do mundo’’. As apreensões de drogas, em especial sintéticas por parte do governo tailandês em 2021, cresceram de forma inédita, mesmo após a prisão do chamado El Chapo da Ásia, o hongkonger, Tse Chi Lop.

Uma vez estabelecida esta correlação de forças entre a oposição fantasma da NLD e o governo militar, as negociações tornaram-se impossíveis. As tentativas infrutíferas da ASEAN de trazer de volta para o cenário Aung San Suu Kyi fracassaram não apenas em razão da posição da junta militar, mas também porque para Mahn Win Khaing Than e Duwa Lashi La isso não interessaria diretamente, uma vez que a ’’máquina da NLD mudou de dono’’. Isso ocorre também porque o Governo de Unidade Nacional tem forte apoio dos Estados Unidos, Grã Bretanha e países europeus, porém conta também com um apoio velado da Índia.

Aung San Suu Kyi perdeu tal apoio, pois seu único propósito é ser uma mártir a partir de agora. Curiosamente, a primeira atitude deste governo paralelo, apenas reconhecido por Estados Unidos, Grã Bretanha e um punhado de outros países, foi construir um braço armado chamado ’’Força de Defesa Popular’’. Seu comandante, U Yee Mon, também é uma figura desconhecida que rapidamente ganhou apoio de parte dos militares no leste do país (Estado de Shan), local onde este exército paramilitar tem maior força política. O próprio Jake Sullivan, Conselheiro de Segurança da Casa Branca, os EUA tem reunido-se com frequência e cooperado com o governo fantasma.

Projeto do Corredor Econômico China-Mianmar. Crédito: https://i1.wp.com/www.silkroadbriefing.com

A colisão de interesses Delhi-Bangkok e as Novas Rotas da Seda

A posição histórica e geográfica de transição entre sul e sudeste asiático, situada entre três potências asiáticas (Índia, Sudeste Asiático e China), confere ao Mianmar um importante papel na integração do continente. Desde a década de 1990, capitaneado pelos militares birmaneses, este projeto de integração continental tem dado-se na direção da ASEAN por motivos históricos e econômicos. As conexões entre os militares birmaneses e tailandeses é uma motivação fundamental para este processo.

A Tailândia permanecia até a década de 2010 como importante aliada do ocidente, e com o fim da Guerra Fria no sudeste asiático, desde a década de 1980 têm estreitado laços econômicos e políticos com a China, independente do tipo de governo- ditaduras militares ou períodos democráticos. Entretanto, após o início da política de contenção da China em 2011, os tailandeses não recuam do suporte na ASEAN para formar um bloco econômico entre os principais países do extremo oriente, integrando-os nas Novas Rotas da Seda. O Mianmar é peça fundamental para a integração tailandesa às Rotas da Seda Marítimas devido a posição fronteiriça com o sul da China e o Oceano Índico, desviando o Estreito de Málaca.

O Estreito de Málaca, localizado entre a Indonésia e a Malásia, praticamente divide o Oceano Índico do Pacífico. Ambos os países são aliados de longa data dos Estados Unidos na região e, em caso de pressão política, poderiam vir a bloquear a via máritima da Rota do Mar do Sul da China. O acesso ao Índico é importante por ser um caminho direto para a África Oriental e o Oriente Médio para a ASEAN e a China. O Mianmar e a Tailândia são peças chaves para isso, e esta é a visão de como a Tailândia e a ASEAN serão integradas à Eurásia.

Manifestantes no Myanmar em protesto contra o governo militar de Min Aung Hlaing. Crédito: https://i0.wp.com/asiatimes.com

A saída indiana das conversas do acordo RCEP deu-se por esta posição oficializada e radicalizada do governo do atual primeiro-ministro, Narendra Modhi. Desde então, o governo indiano, não apenas deu suporte as políticas violentas do governo de Aung San Suu Kyi, que levaram a migração forçada dos rohingyas, como também realizou conversas em variados níveis com o governo do Mianmar para afastá-lo da ASEAN. Após o golpe militar de fevereiro, o governo Modhi tem agido de forma cautelosa, buscando conversar com ambas as partes, porém, como sede das principais agências de inteligências ocidentais, inclusive o MI6, a Índia fornece suporte indireto para as ações da oposição armada.

Entretanto, a Índia, adversária histórica dos tailandeses e chineses, tem interesses diferentes. Por meio da reivindicação de uma política nacional ufanista hindu desde a saída de Indira Gandhi do governo, na década de 1980, a elite indiana busca uma esfera de influência que abranja desde o Tibet até o sudeste asiático, áreas onde o hinduísmo e o budismo são cultural e politicamente muito presentes. Porém, dois grandes atores geopolíticos estão nestas áreas, a China e a Tailândia- esta última nunca submetida por longo período a potências mundiais-, cuja oposição a este projeto por motivos óbvios enfraquece a possibilidade de consecução do projeto da elite indiana.

Entretanto, para a Índia, diferente do que se possa pensar, não interessa a existência de um conflito de longo termo no Mianmar, pois não só cria uma instabilidade política geral na região, como também inviabiliza a estratégia de inserção indiana no sudeste asiático. Por esta razão, os indianos, junto com os atores pró-ocidente na ASEAN, como a Malásia e Indonésia, têm buscado fórmulas de cessar fogo. A esperança de Nova Delhi é que com o fracasso das negociações com a ASEAN e a suspensão do Mianmar do bloco, os militares birmaneses busquem nos indianos um caminho de reinserção internacional.

Evidentemente que este cenário é muito ruim para os tailandeses e a China, porque aceitar o inaceitável- isto é, um governo militar carniceiro- na comunidade internacional é impossível. Ao mesmo tempo, não é possível reconhecer uma oposição, cujos laços com o departamento de Estado e o submundo do tráfico de drogas a tornam um ator muito perigoso para Pequim e Bangkok. Entretanto, o mais grave desta conjuntura é a impossibilidade dos chineses de posicionarem-se, o que é extremamente decisivo, não somente para o desastre humanitário, mas, sobretudo, para o prosseguimento do impasse geopolítico. Devido a isso, é provável que os indianos, respaldados pelos russos após a recente visita de Putin– que por sua vez realiza tudo em coordenação com Xi Jinping-, venham a cumprir um papel importante através de um canal indireto com o governo militar.

Cui Bono no Mianmar?

Se indianos, tailandeses, chineses e a ASEAN perdem com o atual conflito do Mianmar, independente dos lados que assumam- oposição ou governo-, fica a pergunta. Cui Bono? Perceptivelmente, o Mianmar é um entroncamento fundamental para a integração asiática, o projeto das Novas Rotas da Seda e a estabilidade regional. A proximidade com três das mais importantes regiões econômicas do mundo (Índia, Sudeste Asiático e China), confere-lhe um papel estratégico muito importante, usado em um passado não muito distante para desestabilizar a China e conquistar a Índia. Portanto, a sua desestabilização política, e transformação em algo semelhante a Líbia, beneficiaria apenas atores externos à região.

A expulsão dos EUA do Afeganistão foi um poderoso golpe sobre duas importantes bases na Competição Estratégica com a China e a Rússia: o financiamento de operações encobertas a partir das drogas e a proximidade geográfica com os dois gigantes. Entretanto, a saída deu condições para a criação de um novo pivô estratégico na Eurásia, especificamente no sudeste asiático, onde o Mianmar será o canalizador de caos- caos nas fronteiras populosas do sul da China e sudeste asiático. O próprio fim da produção de ópio e heroína no Afeganistão favorece diretamente a produção birmanesa, ao mesmo tempo que se torna uma ferramenta terceirizada, ainda que não tão lucrativa como antes, de financiar conflitos armados na região, sem a presença e controle direto da CIA ou do MI6.

Portanto, os Estados Unidos e a Grã Bretanha são os únicos e maiores vencedores no momento, pois nos cenários possíveis que foram listados na disputa entre Tailândia e Índia, não há um triunfo amplo de algum dos lados. Aliás, não interessa para os Estados Unidos e a Grã Bretanha que haja um vencedor no conflito entre governo e oposição. Apenas a própria guerra é o objetivo. As tensões e batalhas regionais oriundas disso, estimuladas de forma artificial, é que criariam as condições para uma presença maciça ocidental na região, a partir da exploração de contradições (ONGs, DEA e por ai vai).

É fundamental ressaltar que foi exatamente assim que os Estados Unidos criaram condições para invadir e ocupar o Afeganistão, durante duas décadas. As guerras das sombras são mecanismos geopolíticos muito efetivos para exploração das chamadas vulnerabilidades periféricas, conceito desenvolvido por Brzezinski na estratégia estadunidense usada contra a União Soviética no leste europeu e Ásia Central, durante a década de 1980.

O foco dos Estados Unidos na Estratégia Indo-Pacífica apenas tem esta opção como saída no presente momento, pois não existem canais de cooperação firmes na ASEAN, e a Índia, com as suas duplas posições (está no Diálogo Quadrilateral de Segurança- Quad, e não no AUKUS, por exemplo), não se prova como um ator plenamente confiável. Por fim, a Guerra das Sombras- Shadow War– no Mianmar é um ponto nevrálgico na Competição Estratégica contra a China, pois cria obstáculos para o processo de integração asiático, desestabiliza a ASEAN e possibilita a militarização desta região. Portanto, a guerra das sombras no Mianmar é parte integral e central da Estratégia Indo-Pacífica.

Referências

BHADRAKUMAR, M. K. India will be front-line state in Myanmar civil war. In: Counter Currents.org. 2021. Disponível em: https://countercurrents.org/2021/05/india-will-be-front-line-state-in-myanmar-civil-war/.

ESCOBAR, Pepe. Burmese days, Revisited. In: Strategic Culture. 2021. Disponível em: https://www.strategic-culture.org/news/2021/02/05/burmese-days-revisited/.

GUNDER FRANK, Andre. ReOrient: Global Economy in the Asian Age. Editado por University of California Press, São Francisco-California, 1998.

LUONG, Hai Thanh. The Southeast Asia Drug Scourge: Opium And Heroin Are The Old Challenges, While Methamphetamine And Fentanyl Are Contemporary Concerns. In: Institute for Asian Crime and Security. 2021. Disponível em: https://theiacs.org/the-southeast-asia-drug-scourge-opium-and-heroin-are-the-old-challenges-while-methamphetamine-and-fentanyl-are-contemporary-concerns/.

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UNODC. UNODC report: opium production drops again in Myanmar as the synthetic drug market expands. 2021. Disponível em: https://www.unodc.org/southeastasiaandpacific/en/2021/02/myanmar-opium-survey-report-launch/story.html.

ZARNI, Maung. Myanmar’s Suu Kyi is turning far-right. In: Anadolu Agency. 2019. Disponível em: https://www.aa.com.tr/en/analysis/opinion-myanmars-suu-kyi-is-turning-far-right/1499186.

Vídeos

CNA. Southeast Asia could become global hub for synthetic drug production: UN. 2021

THE GRAYZONE. Does US meddling in Myanmar risk Syria/Libya-style war?. 2021

 

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por Anders Noren

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