A guerra na China: a repercussão do conflito sino-japonês na imprensa brasileira

Crédito: Amazon.

Por séculos a civilização chinesa floresceu e foi uma das mais proeminente em assuntos tecnológicos. Sua economia, apoiada em um vasto território e grande população, foi a maior do mundo por muito tempo. Então, a partir do século XIX a era do neocolonialismo desenrolou-se e a China viu suas terras serem divididas entre potências estrangeiras e a sua população submetida a um regime de exploração brutal. Ao longo dos últimos 70 anos, no entanto, os chineses têm lutado contra esse histórico perverso.

No limiar do século XXI, ficou claro que o “Império do Meio” estava a passos largos afastando-se da herança da exploração colonial, com o alargamento de sua soberania e demonstrações de pujança econômica e social. Entretanto, ao falarmos da reascensão da China como grande potência é válido perguntar se esse é o melhor conceito para definir sua trajetória recente. Ao olharmos em perspectiva, percebemos que o período compreendido entre o século XIX e meados do século XX seria mais uma pequena mancha na trajetória chinesa do que a regra.

Em seus mais de três mil anos de história, esta civilização esteve a maior parte do tempo entre as grandes potências mundiais. O Brasil, que também sofreu com as consequências do colonialismo, teve poucos contatos com a China se comparado com outras antigas colônias. Embora partilhasse do destino de exploração por parte de Portugal, que dominava Cantão quando ainda era metrópole do Brasil, a visão que tivemos da China quase sempre foi de um estranhamento distante, beirando a admiração pelo exotismo.

“China no Brasil”, de José Teixeira Leite – Pontos de encontro entre a cultura chinesa e a brasileira

Um relativo esforço de aproximação estratégica do Brasil com a China ocorreu durante os primeiros anos do século XXI, quando na esteira do desenvolvimento econômico chinês, forças econômicas brasileiras passaram a dialogar em uma frequênciamaior com o gigante asiático. Essa aproximação teve seu período áureo com o esforço de criação do Banco dos BRICS, onde através de aportes milionários de todos os membros, a instituição pretendia tornar-se uma financiadora de projetos de integração e de infraestrutura de longo prazo. Projetos como uma ferrovia que ligasse os oceanos Atlântico e Pacífico, cortando o território da América do Sul, deixaram de ser apenas divagações e passaram a ganhar corpo e viabilidade política e econômica.

Entretanto, este esforço foi brutalmente atacado após o golpe de Estado ocorrido no Brasil em 2016, quando um impeachment foi arquitetado por forças políticas conservadoras, com o financiamento do governo dos EUA para derrubar a presidenta Dilma Rousseff. A partir dali o movimento de articulação dos BRICS foi aos poucos desmontado, com o Brasil perdendo cada vez mais margem de negociação e aproximando-se perigosamente de uma política externa subserviente aos interesses estadunidenses, tendo como ponta-de-lança desse processo a Operação Lava Jato e o juiz Sérgio Moro, figura central neste provesso que destruiu economicamente o Brasil na tentativa de torná-lo ainda mais fragilizado no concerto internacional.

Em 2018, a tragédia completa-se. Com a eleição de um governo fascista, inepto e corrupto, com o único propósito de entrega da soberania nacional, Bolsonaro e sua administração ajoelharam-se totalmente aos ditames de Washington e, de forma melancólica, colocaram os BRICS em segundo plano, fazendo ataques racistas e xenofóbicos contra a comunidade chinesa na figura deprimente do chanceler Ernesto Araújo, ainda que o Brasil tivesse na China um parceiro comercial, econômico e estratégico de suma importância.

Esta pequena trajetória parece demonstrar um sonho de aproximação e o despertar para a eterna realidade de dependência econômica e política que nossa classe dominante insiste em promover em relação aos EUA desde os tempos imperiais. Assim, é fundamental entendermos como essa mesma classe dominante, detentora dos meios de comunicação desde sempre no Brasil, enxergava e reproduzia as notícias relacionadas à Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945) e seus antecedentes. Afinal, para a construção de uma nova oportunidade de libertação da tutela estadunidense, é fundamental compreendermos o histórico das relações entre o Brasil e seus potenciais parceiros comerciais.

A China hoje, apesar de toda a projeção internacional que possui, ainda apresenta uma série de dificuldades geoestratégicas que dificilmente podem ser superadas a curto prazo, fazendo com que seu posicionamento global necessite de muita criatividade política. No que diz respeito à Índia, existem projetos de parceria, com os BRICS sendo o principal exemplo, mas também permanece uma forte tensão em relação às fronteiras, com recentes episódios de conflitos entre tropas estacionadas na região próxima ao Nepal e ao Butão. Além disso, a presença de um arsenal atômico indiano tão perto de suas cidades é sempre motivo de preocupação, ainda mais com a aproximação progressiva entre os governos de Nova Délhi e Washington.

No que diz respeito à Rússia, sua relação tornou-se muito mais amistosa nos últimos anos, principalmente com a ascensão de Vladimir Putin e o Partido Nova Rússia ao poder. Depois de anos de tensão latente com a extinta União Soviética (URSS), no período pós Stalin, e uma dubiedade em relação à Comunidade dos Estados Independentes (CEI), Moscou hoje se apresenta como o maior parceiro geopolítico da Pequim, garantido um cinturão nuclear de proteção à Eurásia. Do ponto de vista marítimo, os chineses sofrem enorme pressão das frotas estadunidenses estacionadas na região através de aliados frágeis que se submetem a ser marionetes dos EUA em troca de financiamento de projetos de infraestrutura militar, ou simplesmente devido à enorme corrupção existente entre alguns de seus dirigentes. Assim, pelo mar, a China não está em condições de avançar tão livremente quanto gostaria.

Parte específica da análise deve ter seu lado leste, com a presença de seu maior rival histórico, o Japão. Durante muitos anos os nipônicos adotaram medidas de contenção de tensões na região, sendo esses esforços exemplificados pela manutenção de um exército de autodefesa, sem quaisquer pretensões de expansão militar. Entretanto, conforme o avanço econômico e militar chinês concretizavam-se e a República Popular Democrática da Coreia conseguia acesso ao seu sonhado e justo arsenal nuclear de defesa, os japoneses abandonaram seu projeto pacifista e passaram a investir em tecnologia de ataque e adquiriram significativo arsenal de combate junto aos EUA.

Tudo isso sem falarmos das disputas envolvendo o território de Taiwan, que mereceriam um texto próprio devido à sua complexidade e histórico próprios, mas que de qualquer maneira deixam clara a dificuldade chinesa em conseguir uma relativa estabilidade em suas fronteiras, necessitando cada vez mais de contatos para além de seus vizinhos, onde a Rota da Seda talvez seja o maior exemplo desse esforço. Com uma população abundante e passando ainda por um período de êxodo rural intenso, sob o comando do Partido Comunista Chinês (PCC), o país apresenta níveis de crescimento acelerados, principalmente se comparados com os outros concorrentes, com uma economia já madura e uma população envelhecida.

Esse crescimento chamou muita atenção nos últimos anos do século XX, mas não se pode negligenciar que este processo iniciou logo após a chegada do PCC ao poder. Isso indica que o crescimento chinês não é fruto de condições históricas específicas ou de um acesso maior ao mercado mundial, mas sim de um planejamento de longo prazo, combinado ao reestabelecimento de um sentimento de orgulho nacional que incentiva a competição entre as empresas, sejam estatais ou privadas.

Com uma parte substancial de sua população ainda vivendo em zonas rurais, e com perspectivas de crescimento na produtividade para as próximas décadas, é impossível imaginar um mundo no futuro sem a presença maciça dos chineses no cenário econômico. Obviamente são inúmeros os motivos que levam a essa vantagem chinesa, como uma população relativamente bem instruída, mesmo em áreas mais afastadas dos grandes centros, e uma rede de transportes de significativa solidez. A maior questão não parece ser mais se a China será uma grande potência em todos os aspectos que o conceito agrega, mas quando.

Sabendo da necessidade de tornar a economia sólida e menos propensa a recessões por fatores externos, nos últimos anos o PCC tem investido na melhoria das condições de vida da população mais pobre, gerando um ciclo virtuoso de investimento e aumento de consumo, algo já experimentado em outras economias, principalmente após a Segunda Guerra Mundial. Ou seja, a elite dirigente chinesa tem conhecimento de que um crescimento sustentável a longo prazo precisa necessariamente passar pela inclusão dos mais pobres no orçamento público.

Deixemos, entretanto, as projeções para o futuro nas mãos daqueles que se dedicam a tal e passemos a analisar a história. Como a imprensa brasileira repercutiu o último grande conflito em que a China se envolveu? O anticomunismo relegado pela Guerra Fria ainda deixa como tabu determinados assuntos relativos aos países que adotaram o modelo socialista em sua sociedade, mas é preciso avançar na pesquisa sobre um parceiro tão distante, mas, ao mesmo, tão importante.

O tema da Segunda Guerra Sino-Japonesa (1937-1945) é árido para um pesquisador brasileiro, na medida em que raros são os trabalhos que se dedicaram ao tema, e a barreira do idioma não é tão facilmente transponível como em países do Ocidente. Vista como um conflito menor dentro do contexto da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) é, por vezes, confundida com apenas um desdobramento do conflito global. Entretanto, as tensões envolvendo esses vizinhos são mais antigas até do que a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), remontando ao fim do século XIX.

Como já dito, a China dominava geopoliticamente a região conhecida como Extremo Oriente durante alguns séculos, mas após a chegada da industrialização e do capitalismo na Europa, seu protagonismo foi sendo ameaçado e colocado em xeque totalmente após a restauração Meiji, movimento liderado pela classe dominante japonesa que visava adequar o país aos modelos capitalistas da Europa e dos EUA. Assim, a China, que já estava em processo de decadência, viu seu vizinho tornar-se uma referência para o desenvolvimento industrial em poucas décadas.

O Japão não tinha apenas pretensões econômicas de dominação. Baseado em uma ideologia que pregava a superioridade étnica e civilizacional dos japoneses sobre seus vizinhos orientais, os nipônicos empreenderam uma série de invasões militares que sacudiram as estruturas daquela região, indo desde a ocupação da península coreana – com reflexos até hoje – até a invasão do território chinês, redundando no maior conflito envolvendo os dois países.

Iniciando seus esforços de ser a ponta de lança do imperialismo no Oriente, o Japão organizou uma parte do seu exército com o fim único e exclusivo de tratar da questão chinesa, o “Exército de Kwantung”. Famosa pela sua autonomia em relação ao governo central, esta divisão notabilizou-se pela extrema crueldade nas batalhas contra os chineses e pelo alto investimento que recebiam. Dessa forma, o Japão pôde iniciar uma ousada manobra de invasão à Manchúria e ataques constantes às cidades costeiras da China, provocando uma retirada massiva de pessoal, infraestrutura e provisões para dentro do continente, inaugurando uma tática que seria utilizada com maestria pelos soviéticos alguns anos depois. Vejamos como as notícias desses eventos chegaram no Brasil.

Pouco mais de uma semana depois do início do conflito, começam a chegar as primeiras notícias aos leitores brasileiros. Ainda na forma de reproduções de agências estrangeiras e em inglês, o Diário de Notícias do Rio de Janeiro informa o início das hostilidades em 16 de julho de 1937. Interessante notar que o mesmo periódico já havia reproduzido anteriormente informações com o mesmo formato, com a tese de Harold Harmsworth, que defendia o reconhecimento da Manchúria como parte do território japonês, em 10 de outubro de 1936. Notório filofascista, Harmsworth ficou famoso pela fundação dos jornais ingleses Daily Mail e Daily Mirror. Entretanto, menções às disputas sino-japonesas já ocorriam em 1932, quando foi noticiada a denúncia soviética das intenções imperialistas japonesas sobre a região, além do domínio de península coreana, em 7 de janeiro de 1932.

Já a Gazeta de Notícias, jornal carioca, assim como o Diário de Notícias, tem um suplemento especial do correspondente Brice Muller, onde o mesmo envia com exclusividade – pelo menos é dessa forma que o periódico anuncia suas matérias – notícias da Ásia. A postura do dito repórter é extremamente defensora dos interesses japoneses, mesmo quando das disputas com os Estados Unidos, como no caso da polêmica ao redor da navegação de navios pesados na região próxima da ilha em 23 de maio de 1937.

Amizade libertadora: a aliança entre chineses e soviéticos na Segunda Guerra Mundial

Cinco dias depois, Muller faz uma comparação da reação da Liga das Nações em relação a casos que ele considerava parecidos: o avanço do imperialismo italiano na Etiópia e o caso da Manchúria chinesa. Para o articulista, a Liga das Nações demonstrou parcialidade ao praticamente ignorar o destino dos etíopes e posicionar-se contra a dominação da região chinesa. Além disso, faz uma defesa apaixonada do suposto progresso trazido pelos japoneses ao território, com a construção de edifícios e pavimentação de ruas. Ao estilo do “fardo do homem branco” – no caso específico, asiático -, tenta demonstrar as vantagens para o povo da região em ser dominado. E como não poderia faltar, a sempre presente justificativa anticomunista, onde a ocupação teria ocorrido em razaão da suposta aproximação dos soviéticos. O título do artigo já ilustrara o teor da defesa: “Imperialismo ou cooperação?”, publicado em 28 de maio de 1937.

É possível perceber um padrão bem definido, na forma como parte da imprensa trata de relações complexas como as daquela região específica do mundo. Em maior ou menor grau, a culpa é dos comunistas. Apesar de toda a notória expansão japonesa, da fragilidade do Estado nacional chinês e toda uma série de processos diplomáticos e bélicos que se arrastam desde o século XIX, para a imprensa conservadora, a “grande imprensa”, praticamente todos os problemas testemunhados na fronteira sino-japonesa explicam-se como provocações de Moscou em atentar contra a paz na localidade, como a matéria de capa da Gazeta de Notícias explicita, publicação que data de 22 de julho de 1937.

Segunda Guerra Sino-Japonesa: uma guerra dentro de outra

O estacionamento de tropas chinesas na região norte do país, assim como a divulgação de um pedido de crédito extraordinário para o exército japonês transportar trinta mil soldados para o mesmo local parecem ser fatos menores, tendo o telegrama de correspondentes estrangeiros anticomunistas ganhando mais notoriedade do que estes fatos. Este é um padrão que se repete em outras publicações, como no Jornal do Commércio, importante diário da capital, que trazia informações telegráficas com relativa consistência sobre o conflito. Curioso notar como estas informações ocupavam a capa do jornal.

Embora a maioria dos dados limitasse-se ao movimento de tropas em direções a cidades e regiões longínquas do público brasileiro, o reforço de que as “hordas vermelhas” provocam vítimas com suas práticas “terroristas” (25/11/1931, p.1) já se dava antes mesmo do início do conflito em si. Entretanto, a leitura da conjuntura torna-se mais aprofundada do que seus congêneres, Gazeta de Notícias e Diário de Notícias, com o questionamento do envolvimento dos EUA no conflito sino-japonês, o que seria explicado pela tentativa de enfraquecer dois rivais em potencial: Japão e União Soviética. No caso da segunda, com a ideia fixa de conseguir seu envolvimento no conflito.

Obviamente existe um vasto material a ser pesquisado na imprensa brasileira, onde o conflito do Extremo Oriente recebeu atenção significativa, dadas as distâncias consideráveis entre as realidades brasileira e chinesa. Entretanto, esperamos despertar o interesse de pesquisa em um tema tão rico e que seus desdobramentos tem influência e mostra-se fundamental nas novas relações internacionais do século XXI.

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por Anders Noren

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