
Pode parecer estranho para alguns indivíduos de gerações anteriores, mas para muitos da minha geração, o K-POP faz e continuará parte integrante da juventude. Posso dizer inclusive que fazer parte de um fandom (comunidades de fãs de grupos de K-POP) é um elemento também importante. Isso contribuiu muito para a formação da minha identidade, do amadurecimento, do descobrir o amor, a amizade e as paixões em geral. Porém, nem tudo são flores.
Há um lado pouco conhecido e que gostaria de compartilhar aqui. Trata-se de uma experiência minha com alguns fãs de K-POP, que cheguei até a considerar amigos anteriormente. Contudo, por motivos de puro fanatismo, pela cultura do ódio que está em voga, assim como a intolerância para acolher pessoas com opiniões divergentes, estes tornaram-se fonte de triteza para mim e suas ações expõe a característica autoritária que é possível encontrar nestas comunidades. Essas atitudes, por vezes, culminam no chamado cancelamento de um fã, onde você literalmente pode ser expulso de um simples grupo de WhatsApp por expressar uma opinião que alguns não concordam. Sem mais, segue aqui um resumo do que ocorreu comigo há algum tempo.
O caso em questão iniciou com o lançamento da música “Butter” do grupo masculino BTS, atualmente um dos maiores da indústria de K-POP no mundo. Na época, fãs como eu, tinham a expectativa de que o BTS finalmente voltasse a lançar músicas em coreano, após um período em que o grupo passou a compôr praticamente apenas em inglês, em razão de sua motivação em conquistar o mercado estadunidense. Lembro que eu e uma amiga chegamos a realizar uma aposta e lembramos que a última produção em coreano havia sido o álbum “Map of the Soul: 7”. Depois deste ocorrido, lançaram a que viria a ser a primeira música em inglês, “Dynamite”, em 2020.
Contudo, quando iniciaram as promoções para o lançamento de “Butter”, essa mesma amiga mandou um áudio em um grupo de ARMYs no WhatsApp, nome dados aos grupos de fãs do BTS, em que fazíamos parte desde dezembro de 2017. No áudio, ouvia-se o seguinte: “É Helmer, não foi dessa vez que ganhamos uma música em coreano”. Podem não ser essas exatas palavras, mas o sentido foi este. De pronto, retornei em áudio também, dizendo que também estava triste com essa notícia e afirmei: “não ouvirei a música, verei o videoclipe uma única vez, porque não gosto desta situação onde o BTS quer fazer de tudo para ganhar um reconhecimento de ‘mijo’ estadunidense com músicas em inglês”.
Depois desse áudio meu, a harmonia e paz no grupo de Whatsapp foi só ladeira abaixo. Não me lembro de uma única vez em que deixei de expressar minha opinião livremente no grupo, a menos que eu soubesse que machucaria os sentimentos de algum dos participantes. Apesar de o foco ser o BTS, o grupo tem pessoas diversas, com experiências diferentes, em que cada fã, teoricamente, pode trazer suas dúvidas e os participantes tentam ajudar a sanar, na medida de suas possibilidades.
Houveram outras pessoas que disseram que ouviriam a música, independente do idioma, porque era do Bangtan (Parte do nome coreano do BTS). Por mim, essas pessoas poderiam fazer o que quisessem, eu não iria recriminá-las por isso. Foi então que uma pessoa enviou um longo áudio, cujo teor da mensagem continha um tom um tanto agressivo e impositivo. Na perspectiva dessa pessoa, eu deveria, na condição de fã, “apoiar qualquer coisa que o BTS faça, independente se for em coreano, ou em japonês ou em inglês”.
Ela afirmou ainda que eu não poderia ser classificado como um fã real, mas apenas um ouvinte casual que “não deve ouvir nem as músicas em japonês dos meninos” e que se eu não fosse apoiá-los sempre, não poderia fazer parte do grupo. Para alguns isso pode não ser nada, mas para mim foi um senhor baque. Porque além de considerar a pessoa em questão uma conhecida amigável, eu jamais pensei que expôr meu pensamento em um espaço que considerava livre e aceitável para debater sobre uma diversidade de assuntos, tivesse a possibilidade de encontrar sensores de plantão/fiscais de fã.
Soma-se a isso, os sentimentos de desfeita para com a minha pessoa e o desdém da quase “amiga” em questão, e são quase indescritíveis. Contudo, aqui me encontro efetuando esse relato, em razão da pessoa que me “cancelou” ser um indivíduo ativo de uma Fanbase do BTS, responsável por esquematizar linhas de denúncia no Twitter. Estas são esquemas de denúncias massivas, com ajuda de pessoas do fandom para deter outras que de alguma maneira “apagam”, “deletam”, “cancelam”, ou para a falta de melhor palavra, censuram, excluem algum ou alguns membros do grupo, conforme acham conveniente.

Além disso, teoricamente, essa mesma Fanbase serve como um ponto de apoio contra essas práticas de “apagamento”, que muitas vezes parecem chegar a afetar a saúde mental de determinados indivíduos no ARMY. Assim, chega a ser irônico o ato que ela praticou, mas já sei de outros casos de fãs que se afastaram do fandom, em razão de pessoas como ela que atuam desta forma agressiva/passiva ou até pior.
Dado o ocorrido, conversei com uma terceira pessoa, que carinhosamente chamo de ” 누나” (nuna, palavra em coreano que significa irmã mais velha e que é usada apenas pelos meninos para se referirem a uma irmã mais velha mesmo, ou uma amiga, ou pessoa do sexo feminino próxima e que seja mais velha que eles). Ela também participa daquele grupo de ARMYs no WhatsApp e disse que não continuaria a participar tão ativamente como antes. Confessei estar ferido pelo que o que havia ocorrido e que me preocupava com esta reação radical e bastante emocional da fã em questão. Observo que ela parece usar o BTS como uma espécie de “pilar fundamental” para a vida, o que acredito ser um problema.
Nesse mesmo sentido do cancelamento, houve um segundo momento em que eu estava lendo mensagens no Twitter e deparo-me com o seguinte mensagem: “Se for ONLY Army nem precisa me seguir, tudo chato”. Sem pensar muito, dei um retweet, uma repostagem automática da mensagem. A princípio não pensei nas “consequências” disso, até que, em outro grupo de ARMYs no WhatsApp, deparo-me com uma foto do twitter com a tal mensagem e a reclamação de uma amiga que afirmou querer apenas como seguidores do seu perfil no Twitter: fãs do BTS, ou os chamados Only Army. O termo ‘Only’ é usado no K-POP para designar pessoas que apoiam somente um determinado grupo e recusam-se a ouvir outros da mesma indústria. Seria uma incitação dela para tal prática? Não sei. No caso em questão, o termo refere-se àqueles que se identificam somente como ARMYs e são ouvintes casuais de qualquer outro artista no K-POP, ou nem isso.
É verdade que por esta ser uma grande amiga minha, que diferente da pessoa que me cancelou, eu conheço pessoalmente e tenho muita estima há anos, eu relevei mais. Afinal, também estava “vacinado” com a experiência anterior. Todavia, ficou visível que aquilo era uma atitude exagerada, infantil e nada saudável. Exemplo disso foi quando percebi que, após o ocorrido descrito acima, ao tentar trazer algum assunto fora do “campo BTS” no grupo de Whatsapp, esta amiga foi a primeira a jogar qualquer outro assunto para ninguém interagir. Comprovei essa hipótese ao conversar com outra nuna por telefone, em que ela afirmou que essa amiga minha tinha a mesma reação em outros grupos que ambas participam.
Enfim, este é um simples relato que tenta alertar que tais questões ultrapassam o âmbito individual. Estas reações que aparentemente parecem inocentes, ou típicas de pessoas jovens, demonstram um radicalismo preocupante e uma intolerância que devem ser observadas mais de perto. Não se trata apenas de considerar a saúde mental dos jovens, o bullying/assédio moral, isolamento de pessoas consideradas indesejadas pelas suas opiniões e pelo que são também, o que leva muitos à depressão profunda, ou até, em casos particulares, ao suicídio. Esta reação extrema é a ponta do ice berg e deixa claro que continuamos a aceitar atitudes autoritárias de indivíduos tóxicos e que vão minando o convívio social no dia-a-dia. Quais seriam as origens deste forma radical de atuação e como evitá-las, são pontos para futuros estudos e debates necessários.
Helmer Marra (texto original)
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais (PPGCPRI) no Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes (CCHLA) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Pesquisador vinculado ao Grupo de Pesquisa em Mídia e Cultura Asiática Contemporânea (MidiÁsia) da Universidade Federal Fluminense (UFF). Bacharel em Direito pelo Centro Universitário de Anápolis, UniEvangélica – Campus Ceres. Revisor, legendador e tradutor autônomo.
Edição, adaptação e colaboração textual – Alessandra Scangarelli Brites – Editora da Intertelas
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