
Este texto foi publicado pela Revista The Funambulist 41, em sua edição de maio-junho de 2022, cujo editor Léopold Lambert, gentilmente autorizou a Revista Intertelas a traduzir e compartilhar o emocionante relato da história de uma família que viveu e vive a luta pelo fim da injustiça, desigualdade e opressão imperialista e colonizadora. Confira abaixo.
Em 28 de maio de 2022, Fusako Shigenobu será libertada da prisão japonesa onde foi forçada a passar por 21 anos e meio. Queríamos celebrar seu compromisso com a libertação da Palestina em nossa edição atual, encomendando um texto de sua filha, Mei Shigenobu. Um mês antes da libertação de Fusako Shigenobu, depois que ela passou os últimos 21 anos e meio em uma prisão japonesa, pedimos a Mei Shigenobu que fizesse um retrato político de sua mãe como uma homenagem ao exemplo encarnado de solidariedade internacionalista. Ela descreve o primeiro ano de ativismo de Fusako, levando-a a assumir altas responsabilidades no Exército Vermelho Japonês antes de se mudar para Beirute, a fim de desempenhar um papel ativo na luta de libertação palestina.
A manhã de 8 de novembro de 2000 estava fria, mas ensolarada. Eu estava conversando com meus amigos na universidade em Beirute, preparando-me para assistir à minha primeira aula do dia, quando meu telefone tocou. “Sua família está bem?”, o interlocutor – uma voz familiar – perguntou de forma codificada. De repente, percebi que algo havia acontecido com alguém da minha comunidade japonesa secreta, minha família. Não estava mais focado nas conversas dos meus amigos, nem nas minhas aulas, por mais que tentasse. Finalmente, cedi à minha ansiedade e voltei para casa para ver se conseguia alguma informação nas notícias sobre o que aconteceu.
“Fiquei grudada na TV, indo de canal de notícia via satélite e a outro por mais de uma hora até ver a imagem que mais temia: a de minha mãe, a líder do Exército Vermelho Japonês, sendo presa.”
No espaço de menos de um mês, enquanto minha mãe estava sendo detida e interrogada pelo governo japonês, ela escreveu um relatório de 200 páginas descrevendo nossa vida clandestina como mãe e filha, no chão de sua cela de detenção. Graças a isso, finalmente obtive minha cidadania japonesa após 27 anos vivendo sem documentos e apátrida. O relatório foi posteriormente publicado como um livro, intitulado “I Gave Birth to You Under an Apple Tree” (Dei à luz a você sob uma macieira”, 2001). Foi o primeiro de vários livros que ela publicaria da prisão.
Fusako Shigenobu nasceu em Setagaya, Tóquio, em 28 de setembro de 1945, mesmo mês em que o Japão assinou formalmente a rendição às forças armadas dos EUA no final da Segunda Guerra Mundial. A infância e o início da vida de Fusako no Japão pós-guerra não foram nada fora do comum. Ela foi a terceira de quatro crianças nascidas de pais instruídos e anteriormente privilegiados, em um Japão assolado pela pobreza. Seu pai havia trabalhado como professor voluntário em escolas de templos budistas após a Primeira Guerra Mundial, e mais tarde foi recrutado para juntar-se ao Exército Imperial Japonês.
Lá, ele integrou um grupo de oficiais nacionalistas que se rebelou contra a elite política que estava lucrando com as guerras imperialistas e expansionista do Japão na Ásia. Por sua participação neste grupo, ele foi punido e exilado para a Manchúria, que estava sob o domínio colonial japonês na época. Durante grande parte de sua juventude, Fusako foi ofuscada por seu pai ativista e nacionalista e permaneceu apolítica.

Depois de graduar-se no ensino médio, Fusako começou a trabalhar em uma corporação multinacional chamada Kikkoman. Este era um emprego de elite, de colarinho branco, que a colocaria em um caminho estável para um emprego vitalício e, portanto, para ser membro da elite econômica do Japão. No entanto, sua motivação para trabalhar na Kikkoman era principalmente conseguir entrar na faculdade. Depois de anos trabalhando no turno da noite, ela acabaria por obter uma dupla graduação em Economia Política e História.
A normalidade em sua vida foi interrompida logo em seu primeiro dia na Universidade Meiji, quando ela se juntou a um protesto estudantil contra o aumento das mensalidades na universidade, uma questão que a afetou diretamente como estudante trabalhadora. A partir daquele dia, ela foi despertada para o mundo do ativismo estudantil pela Zengakuren , uma liga de associações estudantis que inicialmente se preocupava com questões do campus, direitos dos trabalhadores e pobreza, mas depois evoluiu para o ativismo radical da Nova Esquerda contrária à Guerra do Vietnã, ao Tratado de Cooperação Mútua e Segurança entre os Estados Unidos e o Japão, bem como ao capitalismo e ao imperialismo global. Em 1969, Fusako juntou-se à radical Facção do Exército Vermelho (RAF) e subiu na hierarquia para finalmente se tornar-se chefe do Bureau de Relações Internacionais.
Em 1970, em uma época em que a atenção internacional estava voltada para a guerra dos EUA no Vietnã, Fusako foi apresentada a um arabista no Japão e começou a aprender sobre a luta palestina contra o colonialismo e a ocupação israelense. Isso mudou tudo. A partir de então, ela decidiu dedicar sua vida à luta palestina. Ela forjou laços de solidariedade com os palestinos no Líbano, convocando seus colegas ativistas no Japão a juntarem-se ao ato de solidariedade em qualquer campo em que fossem habilidosos.
O Exército Vermelho Japonês (JRA) é conhecido principalmente no Japão e em outros lugares por sua luta armada e operações militares contra interesses capitalistas e imperialistas em todo o mundo, que muitas vezes assumiram a forma de seqüestros e seqüestros. No entanto, é muito menos conhecido que o JRA empreendeu uma solidariedade consistente e eficaz com o povo palestino por meio de esforços humanitários, artísticos e de base.
Fusako trabalhou inicialmente na revista Al Hadaf, o escritório de relações públicas da Frente Popular de Libertação da Palestina (FPLP), ao lado de seu editor-chefe Ghassan Kanafani. Seu papel ali fortaleceu o apoio japonês à causa palestina, mantendo os ativistas esquerdistas japoneses informados sobre o que estava acontecendo no terreno da luta palestina e do Oriente Médio. Ela também forneceu apoio logístico aos voluntários japoneses que chegaram, conectando-os a parceiros palestinos relacionados.
Alguns médicos japoneses foram ao Líbano abrir clínicas em campos de refugiados ou treinar pessoas em acupuntura; artistas contribuíram com obras de arte ou peças co-produzidas, enquanto escritores escreveram ou traduziram os escritos de palestinos proeminentes, como Kanafani. Durante décadas, o JRA realizou o tipo de trabalho que as ONGs têm assumido. A única diferença era seu arcabouço ideológico e o fato de serem voluntários.
“Mesmo depois de serem forçados a se esconder, muitos japoneses continuaram apoiando secreta e abertamente o trabalho da JRA e seu trabalho voluntário de solidariedade nos campos da medicina, artes, cultura, mídia e literatura.
Fusako foi forçada a viver na cladestinidade logo após a operação da FPLP em 1972 no aeroporto Lydd, na histórica Palestina/Israel, porque um dos três japoneses que participaram do ataque foi preso. Assim, o governo dos colonos israelenses acabou por saber que ativistas japoneses estavam agora participando das operações armadas da FPLP lideradas por Wadie Haddad. Como tal, eles se tornaram alvos potenciais para assassinato do Estado de Israel.
O mandado de prisão da Fusako Shigenobu foi emitido pela Interpol, depois que um dos reféns da embaixada francesa em Haia (outra iniciativa das Operações Externas da FPLP com voluntários japoneses em 1974), inicialmente, realizou uma identificação falsa dela como um dos sequestradores. Este falso testemunho foi posteriormente retirado, mas o mandado da Interpol permaneceu.
No entanto, quando foi presa no Japão, Fusako, primeiramente, teve duas acusações de falsificação de passaporte. A promotoria então trouxe seu “envolvimento na operação de Haia” à tona, para garantir uma pena de prisão mais longa. Ao longo de seus seis anos de audiências no tribunal (2001-2006), a promotoria não conseguiu apresentar nenhuma evidência concreta, mas baseou suas acusações em declarações retiradas de interrogatórios de ex-membros da JRA (dos quais duas testemunhas declararam no depoimento que foram coagidas ou chantageadas para assinar).

Minha mãe foi condenada a 20 anos (mas na verdade passou 21,5 anos na prisão) por uma operação que ela não participou direta ou indiretamente, conforme testemunhas da própria promotoria e outras que vieram depor como Leila Khaled (que trabalhou com Haddad na ocasião). O fato de não haver provas concretas de seu envolvimento no evento não impediu o juiz de proferir “tentativa de homicídio culposo”, com o raciocínio de possibilidade e probabilidade de conspirar com comandos japoneses.
Depois de assistir a maior parte dos seis anos de audiências no tribunal e ver extensa presença da imprensa no tribunal, observei pouca cobertura do caso na mídia. Quando Fusako foi acusada de “possivelmente conspirar”, percebi que era principalmente uma acusação política disfarçada de “justiça democrática”. O momento em que parei de me esconder também marcou o início de minha jornada contra décadas de propaganda patrocinada pelo Estado sobre minha mãe, juntamente com sua organização revolucionária de esquerda, o Exército Vermelho Japonês, e sua dedicação à libertação da Palestina.
Colocada em um pedestal que me obriga a condenar as ações de minha própria mãe, o trabalho da minha vida foi determinado no momento em que revelei minha identidade. Embora milhões em todo o mundo possam acreditar na propaganda patrocinada pelo Estado que a rotula de “terrorista”, como sua filha, eu sei quem Fusako Shigenobu realmente é. Experimentei em primeira mão o amor e a dedicação que ela tinha não só por mim, mas por todas as pessoas e, principalmente, por aqueles que são oprimidos. Conheço suas verdadeiras motivações e pelo quê ela se sacrificou, por ideais aos quais poucos se apegam, em um mundo que é movido muitas vezes pelo poder, dinheiro e ganância. Ela me ensinou não apenas a ser gentil, ou que toda discriminação é injusta, mas que devemos trabalhar para acabar com essas injustiças.

Como uma estrangeira tentando expressar solidariedade com outro povo, minha mãe sempre me disse que sua vida como revolucionária e como mãe tem sido um constante aprendizado. Em última análise, ela descobriu que a ideologia não era suficiente, e que família, amor, camaradagem e solidariedade eram elementos igualmente importantes de uma luta revolucionária.
“O amor é uma base compartilhada… Nossos camaradas são uma família”, Fusako, do livro “I Gave Birth to You Under an Apple Tree” (Dei à luz a você sob uma macieira”, 2001)
Como uma ativista política zelosa firmemente apoiada por uma base ideológica de esquerda anticolonial e anti-imperialista, minha mãe tornou-se alguém que entende que a revolução não se limita a um quadro ideológico, e que deve ser vivida e praticada com os outros por meio de experiências de vida inclusivas. Por mais que ela possa ter mudado, o mundo também mudou com a forma como o ativismo é praticado. As alianças mudaram, novas ferramentas de movimento de base foram criadas… A única constante entre o antes e o hoje é a colonização israelense da Palestina, sua agressão e discriminação contra o povo palestino e a necessidade de lutar contra essa injustiça com todas as formas de solidariedade.
“Minha mãe, Fusako, será libertada em 28 de maio de 2002, aos 77 anos. Ela passou 28 anos na clandestinidade e 21 anos e meio na prisão”
Ela só viveu 26 anos no Japão, meio século atrás. Será muito para acostumar-se e muito para colocar em dia, junto com muitos amigos, lugares e memórias para revisitar. Muitos de seus amigos e conhecidos infelizmente já faleceram, e eu me preocupo com sua segurança e a crueldade que ela pode enfrentar na sociedade japonesa, onde ela ainda é vista como uma “terrorista”. No entanto, estou ansiosa para, finalmente, ter tempo para explorar junto com ela a sua terra natal, local que ela realmente ama. Prevejo que teremos muitas longas horas discutindo política como costumávamos fazer e nos engajaremos em muitos projetos humanitários informativos para continuar nosso trabalho de solidariedade, sempre no intuito de combater a opressão, a desigualdade e a injustiça em todo o mundo.
Fonte: Texto originalmente publicado em inglês no site da REVISTA THE FUNAMBULIST.
Link direto: https://thefunambulist.net/magazine/decentering-the-us/fusako-shigenobu-an-open-ended-revolution?fbclid=IwAR3bsWNe9ASpBKvRyj1R4JWjT-o1dxHDdMzORTzQ6V5BRKGJhXG0Vqd5Nlo
Mei Shigenobu
Jornalista, comentarista política, escritora e especialista em mídia com foco em questões do Oriente Médio e de alfabetização midiática. Ela é consultora de mídia e produtora de programas e documentários para canais de TV japoneses e do Oriente Médio. Ela é a autora de “Unveiling the ‘Arab Spring’; democratic revolutions orchestrated by the West and the Media” (“Desvendando a ‘Primavera Árabe’; revoluções democráticas orquestradas pelo Ocidente e pela mídia” – publicado em japonês, em 2012), “From the Ghettos of the Middle East” (“Dos guetos do Oriente Médio” – publicado em japonês, eme 2003) e uma autobiografia “Secrets: From Palestine to the Country of Cherry Trees, 28 years with My Mother” (“Segredos: da Palestina ao país das cerejeiras, 28 anos com minha mãe” – publicado em japonês, em 2002).
Tradução e adaptação – Alessandra Scangarelli Brites – Editora da Revista Intertelas
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