A eficácia do Vazio em Liezi, Laozi e Bodhidharma

Crédito: reprodução da internet.

Passados dez anos, após aprender com seu mestre Hu Qiu e cultivar amizade com Bohun Wuren, Liezi retornou para morar numa cidade da região sul. Inúmeras pessoas seguiam os ensinamentos de Liezi, porém ele ainda achava que poucos o seguiam; por isso, diariamente discutia com elas, de modo que nada escapava aos seus ouvidos. Embora tivesse morado por vinte anos nessa cidade e fosse vizinho de Nan Guozi, o próprio Liezi nunca o convidara para um encontro. Quando se cruzavam no caminho, ambos nem se olhavam entre si, por isso, seus discípulos pensavam que eles eram inimigos. Um homem que vinha do Estado de Chu perguntou a Liezi: “Por que o senhor hostiliza Nan Guozi?”

Liezi respondeu: “Nan Guozi expressa plenitude em seu semblante. Sua mente é vazia, seus ouvidos não ouvem, seus olhos não veem e sua boca não fala. Entretanto, não há nada que sua mente não conheça. Além disso, seu corpo jamais se transforma. Sendo assim, por qual motivo eu iria visitá-lo? Mesmo assim, podemos fazer-lhe uma visita”. Logo, Liezi escolheu quarenta discípulos para acompanhá-lo. Assim que viram Nan Guozi, este parecia imóvel como uma escultura. Era impossível falar com ele, já que seu espírito não estava unido ao seu corpo. Do mesmo modo, assim que os discípulos de Liezi viram também o seu próprio mestre, o seu espírito também parecia separado do corpo de tal maneira que nem era possível falar com ele.

Nesse instante, Nan Guozi apontou subitamente para um discípulo de Liezi que estava no último lugar da fila e começou a repreendê-lo, revelando um comportamento inflexível e ortodoxo. Espantados, os discípulos voltaram para casa com sentimentos de dúvida nas feições. Em seguida, Liezi ponderou: “Aquele que é orgulhoso deveria ser moderado nas suas palavras e aquele que conhece muito também deveria moderar a fala. Utilize a Não-Linguagem como sendo linguagem e o Não-Saber como sendo conhecimento. A Não-Linguagem é nada dizer. O Não-Saber é nada conhecer. Porém, ambos são também linguagem e conhecimento. Como não há nada que não se fale e não se conheça, por que razão vocês ficariam espantados ao saber que Nan Guozi agiu dessa maneira?”

Nessa história do livro “Vazio Perfeito” atribuído ao pensador taoísta clássico Liezi, percebemos como o mestre Nan Guozi manifesta a eficácia da Naturalidade do wúwéi, ou seja, a eficácia da potência do Vazio do Dao. Embora no encontro com Liezi, Nan Guozi não chegue a cumprimentá-lo e a conversar com ele amigavelmente, isso não significa que fossem inimigos um do outro como os seus discípulos supuseram. Justamente por não recorrer às palavras, as ações de Nan Guozi acabaram sendo julgadas de maneira equivocada, o que mostra que a mente humana apegada à linguagem verbal interpreta os fatos de acordo com os seus critérios parciais e limitados.

Quando Nan Guozi e Liezi encontram-se no estado de Vazio em que seus espíritos estão fora do corpo, os discípulos de Liezi ficam apreensivos. O narrador não nos diz o que estava exatamente pensando um dos discípulos que foi repreendido. Podemos supor que ele estava tão preso à linguagem e apegado às aparências superficiais dos mestres que os ignorou e até mesmo os desrespeitou apenas porque eles “não falavam” e pareciam “distraídos”, como se fossem meras esculturas sem nenhuma vida. O paradoxo desses mestres é que, ao contrário, estavam concentrados e atentos num estado meditativo do Vazio. É nessa plenitude da potência da mente vazia (心虚-xinxu) que Nan Guozi consegue penetrar no pensamento mais íntimo do discípulo de Liezi, chegando a censurá-lo devido à sua conduta de arrogância e imoderação.

É nesse sentido que compreendemos o ensinamento segundo o qual se diz que é preciso ser moderado na fala e no conhecimento. Ou seja, é importante não avaliarmos as coisas pelas meras aparências externas, mas utilizarmos a eficácia da Não-Linguagem (无言-wúyán) e do Não-Saber (无知-wúzhi) que são as manifestações da eficácia do próprio Vazio (无-wú) do Dao. Os mestres taoistas parecem ser destituídos de poder, fala e conhecimento como se fossem pessoas tolas, mas, no fundo, o que ocorre é exatamente o contrário: eles são dotados de sabedoria, de um conhecimento sublime que manifesta a potência da eficácia do Dao.

É que a mente humana funciona na oscilação entre polaridades que constituem o mundo dualístico e relativo, operando por meio de discriminações, passando de um extremo a outro e jamais alcançando aquilo que Laozi já falava no capítulo 56 do “Dao De Jing” sobre a “Comunhão Misteriosa”, aquele estado de integração com o Todo Pleno e Uno. Tal estado só se revela no momento em que não há mais diferença entre o eu e o mundo, entre o observador e o observado. É por isso que nessa dimensão de conhecimento Liezi sugere que se “utilize a Não-Linguagem (无言-wúyán) como sendo linguagem e o Não-Saber (无知-wúzhi) como sendo conhecimento.

Não obstante, isso não significa que ele esteja negando o conhecimento e a linguagem em si mesmos. É fundamental que nos desapeguemos do uso excessivo da lógica discursiva de tal modo que também nos libertemos das limitações oriundas da mente ordinária. É que quando diminuímos a atividade mental nos recolhemos na dimensão da interioridade e minimizamos as distrações supérfluas que dispersam a atenção. Portanto, Liezi mostra que Nan Guozi atinge uma dimensão profunda de existência que se harmoniza com a própria essência do Dao, essência que é tão inefável e profunda que nem as nossas palavras conseguem descrevê-la.

Encontramos no mundo certos indivíduos superficiais que apenas tagarelam e discorrem sobre o Dao: são extremamente “competentes” no estudo e pragmáticos no saber-fazer, mas ainda não puderam saborear a profundidade da sabedoria genuína. Possuem muitos conhecimentos e erudições baseadas na lógica da produtividade eficiente. Contudo, quem conhece e age verdadeiramente no Dao alcança a moderação e desapega-se de conhecimentos supérfluos e, consequentemente, impregna-se de um conhecimento genuíno e essencial. Portanto, quem se ilumina no Dao, transcende o arcabouço ardiloso das palavras. Essa visão taoísta é semelhante àquela apresentada pelo mestre Bodhidharma nos seus Ensinamentos:

“Quem se desperta é o espírito iluminado. Responder, perceber, erguer as sobrancelhas e piscar os olhos, mover as mãos e os pés, todas essas ações originam-se da natureza mesma do espírito iluminado. Tal natureza é a sua mente, e sua mente é o buda. E o buda é o Caminho. E o Caminho é o Chan (Zen). Porém, Chan é apenas uma mera palavra. É incompreensível tanto para as pessoas mundanas como para os sábios. A visão direta da Natureza Originária: eis o que é o Chan. Se não tivermos a visão dessa Natureza Originária, então não haverá o Chan. Se ficarmos falando de mil sutras e milhares de shastras e não tivermos visto a Natureza Originária, nossos ensinamentos serão apenas mundanos e não de compreensão búdica.

O Supremo Caminho é profundo. Não pode ser exprimido em palavras. De que servem as escrituras e ensinamentos? Se alguém tiver contemplado a Natureza Originária, mesmo que não tenha conhecimento de nenhuma palavra, e se tiver visto a sua própria natureza, então se tornará um buda. A essência sagrada é primordial e pura. Nela não há impureza. Tudo aquilo que puder ser falado é apenas a manifestação da essência da mente humana. Tanto a manifestação como a essência são, na sua condição originária, vazias. Nenhum nome ou palavra poderão alcançá-las e tampouco as Doze Partes das Escrituras.

O Caminho é originalmente perfeito. Não precisa de aperfeiçoamento. É insonoro, informe, sutil e difícil de ser visto. É tal como se alguém bebesse água e sabe se é quente ou fria, mas não consegue explicar para os outros. Aquilo que o Tathagata conhece transcende a percepção dos homens e deuses. Como os seres mundanos não o conhecem, então se apegam às formas. Não compreendendo que a própria mente é originariamente vazia, ocorre o apego às formas errôneas e então se perde o Caminho. Se soubermos que todos os fenômenos originam-se da mente, não haverá necessidade de apego.

Se houver apego, é porque ainda não atingimos o conhecimento. Quando tivermos contemplado a Natureza Originária, as Doze Partes das Escrituras serão meras palavras inúteis. Os mil sutras e milhares de shastras nasceram somente da mente iluminada. E, se no meio das palavras já tivermos compreendido, para que então servirá a doutrina? O Princípio Último transcende as palavras. As doutrinas são palavras e não o Caminho. O Caminho é, em si mesmo, sem palavras. As palavras são ilusões. São como pavilhões, palácios e carruagens, como bosques, parques e jardins arborizados. Não busque satisfação nessas coisas, já que elas são causas dos renascimentos.

É preciso que tenhamos consciência disso quando estivermos próximos do momento da morte. Se não nos apegarmos às formas, removeremos os obstáculos. Um lampejo de dúvida na mente fará com que sejamos ludibriados pelos demônios. O corpo de darmakaya é primordial e puro. Contudo, como estamos iludidos devido à influência de certas condições cármicas, permanecemos no estado de inconsciência. Em razão disso, padecemos do carma. Por isso, quem se regozija nas ilusões não é livre. Somente quando tivermos contemplado o corpo e a mente na condição originária, permaneceremos em estado de pureza”.

“Ensinamentos de Bodhidharma”, tradução de Chiu Yi Chih

Assim como Bodhidharma, Liezi propõe que somente quando transcendermos a linguagem estaremos no caminho da compreensão genuína. É necessário transcendermos os nomes e as formas limitantes da linguagem para que sejam superadas todas as espécies de mediação. Desse modo, quando estivermos com abertura de espírito para uma visão direta da essência de nossa Natureza Originária sem qualquer apego às formas das palavras, estaremos mais próximos de uma comunhão íntima com a essência do Dao. Como diz Laozi no capítulo 48:

Agir no estudo é crescer a cada dia.
Agir no Dao é decrescer a cada dia.

Decrescer e decrescer até alcançar a Não-Ação.
Através da Não-Ação, tudo se realiza.

Conquista-se o mundo sem transtorno.
Com transtorno, não se conquista o mundo“.

Dao De Jing, tradução de Chiu Yi Chih

Como comenta Wang Bang Xiong, agir no estudo é empenhar-se na aprendizagem do autocultivo no sentido do desenvolvimento humanista-confuciano. No entanto, esse empenho pode tornar-se um apego à erudição. Por outro lado, agir no Dao leva à diminuição do apego mental ao estudo, apego que em excesso provoca uma espécie de acumulação negativa. É por isso que, de acordo também com o mestre e clássico comentador He Shang Gong, é preciso que moderemos os sentimentos e os desejos (損情欲-sǔnqíngyù). Quando cultivamos o Dao, aproximamo-nos do estado de Não-Mente (wúxin), Não-Saber (wúzhi), Não-Ação (wúwéi) e Não-Desejo (wúyù).

Se a mente contemplar-se a si mesma, ela repousará no estado de silêncio límpido e vazio. Portanto, como diz Wang Bi, através desse retorno ao Vazio manifestamos a eficácia do wúwéi. Como mesmo diz Laozi, se agirmos pelo wúwéi, evitaremos as perturbações e os transtornos. Por isso, sem transtornos (无事-wúshì), o mundo estará em paz e será sustentado por si mesmo. Isso porque se o sábio pratica o wúwéi, o povo por si mesmo equilibra-se naturalmente. Na perspectiva da filosofia do wúwéi, se desejarmos agir forçosamente, causaremos perturbações, uma vez que as ações forçosas originam-se da hipervalorização do conhecimento mental (心知-xīnzhī).

Assim, quanto mais houver esse acúmulo excessivo (“crescer”) de ações forçosas, mais haverá prejuízo à dinâmica vital da naturalidade. Ao contrário, se pudermos reduzir e reduzir até condensar o nosso saber num único conhecimento essencial, retornaremos à nossa Natureza Originária. Agindo sem apego e imposição, permaneceremos no estado de serenidade e, consequentemente, todos os seres também permanecerão no estado natural. Como não disputaremos com os outros, alcançaremos um estado de pureza onde nossa compreensão será mais ampla e luminosa.

Chiu Yi Chih (邱奕智)
Nascido em Taiwan e naturalizado brasileiro, é professor de filosofia taoísta e de mandarim (leitura instrumental) no Centro Cultural de Taipei e nos cursos online de Taoísmo. Filósofo, poeta e tradutor do “Dao De Jing” de Laozi , “Vazio Perfeito” de Liezi e “A arte da guerra” de Sun-Tsu (comentado), publicados pela Editora Edipro (selo Mantra). Praticante de Tai Chi e meditação. Mestre em Filosofia Antiga Grega (USP) e graduado em Letras (Grego Clássico-Português/USP). Publicou um livro de poesia “Naufrágios” (Multifoco-2011) e um outro de ensaios filosóficos “Metacorporeidade” (Córrego-2016). Em breve, será publicado “Osso Vazio” (Contravento Editorial) e está atualmente traduzindo “Os ensinamentos de Bodidharma” diretamente do mandarim. Visite seu site, textos e cursos http://www.mandarimtaoismo.com

Referências bibliográficas

Liezi, Vazio Perfeito, tradução de Chiu Yi Chih. Editora Mantra, 2020, p.117.

Ensinamentos de Bodhidharma (tradução de Chiu Yi Chih em pdf), p.12 e ss.

Laozi, Dao De Jing, tradução de Chiu Yi Chih. São Paulo: Editora Mantra, 2017, cap.48.

Xiong, Wang Bang (王邦雄). Laozi daodejingxingxiandaidejiedu 老子道德經的現代解讀 (Laozi com comentários e notas). Taipei: YuanShu, 2010, p.217.

Laozi, Dao De Jing: Escritura do Caminho e Escritura da Virtude com os comentários do Senhor às Margens do Rio / Laozi; tradução, notas, variantes e seleção de textos de Giorgio Sinedino. São Paulo: Editora Unesp, 2016, p.356.

Laozi, A sabedoria de Dao De Jing / Daodejingdezhihui 道德经的智慧 (com comentários dos comentadores clássicos chineses Wang Bi e Su Zhe – traduzido por Huang Xian Sheng). Beijing: Xinshijiechuban, 2016, p.161.

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por Anders Noren

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