
O filme “Memórias de uma Gueixa” (Memoirs of a Geisha), lançado em 2005 e atualmente parte do catálogo da Netflix, é uma adaptação do livro de Arthur Golden de mesmo nome, publicado em 27 de setembro de 1997. Ambas as obras contam a história de Chiyo (no filme, interpretada por Zhang Ziyi), uma garota tristemente vendida para uma casa de gueixas. Durante a trama fílmica, Chiyo conhece Hatsumomo (Gong Li), que inveja a beleza da mais jovem, enquanto Mameha (Michelle Yeoh), protege a protagonista, ensinando-a a ser a mais bela e renomada gueixa dentro de seu meio.
Chiyo, que passa a ter o nome de Sayuri após tornar-se uma gueixa, resiste a inúmeros conflitos dentro de sua profissão, lutando contra suas rivais e impasses que cruzam seu caminho. Ao final de uma longa trajetória, a protagonista consegue uma ascensão quase heroica, realizando seu sonho de infância: envolver-se com seu único amor, o presidente de uma famosa empresa (representado por Ken Watanabe). Ao superar a Segunda Guerra Mundial e o Período Ocupacional, Sayuri revela sua resiliência e honra, pagando todas as suas dívidas advindas de sua profissão, além de ser uma das poucas a não se corromper com a cultura estadunidense vinda principalmente após 1945.
Produzido pela Amblin Entertainment, de Steven Spielberg (o primeiro convidado a dirigir o filme), “Memórias de Uma Gueixa” foi indicado para o Oscar, onde venceu nas categorias de “Melhor Direção de Arte”, “Melhor Figurino” e “Melhor Fotografia”. O filme conta, atualmente, com 35% de aprovação no site Rotten Tomatoes a partir de 250.00 avaliações, e no site IMDB, apresenta a nota 7,3/10, com 147.990 votos. Dentre elogios de espectadores que avaliam a radiante presença da atriz Zhang Ziyi e a beleza do cenário e da fotografia, o filme foi alvo de inúmeras polêmicas que se iniciaram logo na divulgação do elenco feita pelo diretor Rob Marshall.

Ao escolher as atrizes chinesas Zhang Ziyi e Gong Li, além de Michelle Yeoh de origem malaia, Rob Marshall foi grandemente criticado já que o filme trata-se de uma história japonesa com personagens nipônicos. Para justificar a não escolha de atrizes nativas, o diretor alegou que “Fizemos centenas de testes com atrizes em Tóquio e simplesmente não achamos nenhuma boa o suficiente. Al Jolson interpretou um negro no primeiro filme falado da história, ‘O cantor de Jazz’. Isso diminuiu seu valor histórico?”.
Depois de inúmeros testes supostamente feitos no Japão, Marshall alegou que as atrizes nipônicas não apresentavam a dramaticidade necessária para as personagens, o que o fez optar pela escolha da famosa Zhang Ziyi, bem aceita no cinema ocidental como visto em “O Clã das Adagas Voadoras” e “O Tigre e o Dragão”. Segundo a atriz, interpretar Sayuri seria uma honra, à medida que faria parte de um filme baseado em reais períodos históricos, além de ser uma das famosas gueixas, consideradas imprescindíveis para a história do Japão. No entanto, o sonho de Zhang Ziyi tornou-se um alvo de críticas na internet quando sites chineses apresentavam a atriz como “vergonha da China”, por ter prestado o papel.
O filme foi proibido na República Popular da China por ter sido lançado em um momento de sensibilidade nas relações entre China e Japão, quando das discussões das Mulheres de Conforto chinesas, vítimas dos abusos das tropas japonesas durante a Segunda Guerra Mundial. Para muitos espectadores, as gueixas retratadas no filme poderiam facilmente ser confundidas com prostitutas, o que maculava ainda mais a imagem das atrizes no filme, manchando, inclusive, a honra das mulheres chinesas publicamente.

Mesmo diante destes escândalos, Rob Marshall, diretor de filmes com “Chicago” (2002), “Nine” (2009) e “Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas” (2011), contornou as críticas mantendo o elenco e prosseguindo com a execução. Quando o filme foi lançado em 2005, novas polêmicas surgiram em relação à montagem dos cenários e à escolha dos figurinos. Segundo os fãs japoneses, tanto os quimonos, quanto outras vestimentas no filme não foram vestidas adequadamente, e mesmo os cenários foram construídos em sets de filmagem na Califórnia, ao que as gravações não se sucederam no Japão.
Tal alegação gerou inúmeras efervescências midiáticas ao que o jornal Folha de São Paulo publicou em 28 de dezembro de 2005 uma coluna de nome “Filme [Memórias de uma Gueixa] revela aos EUA um oriente ‘higienizado’”. Comparando a obra de Rob Marshall com a “versão japonesa de Cinderela”, o filme é apontado como palatável, de forma a fazer com que estadunidenses de classe média sintam-se conhecedores do Japão (e do mundo), já que o viram por trás das telas do cinema. A crítica não deixa de apontar a visão orientalista de Rob Marshall e sua equipe ao representar o Japão e as gueixas.
Segundo o professor e crítico literário Edward Said, o Orientalismo é uma forma ocidental de ver e classificar o Oriente através de lentes e perspectivas europeias. Em outras palavras, os ocidentais enxergam os orientais a partir de seus próprios padrões, que são estereotipados e totalizantes, de forma reducionista e pejorativa, criando um imaginário no ocidente do que são os orientais. Ao se tratar do Japão, constantemente o Ocidente cita as gueixas, os samurais, o monte Fuji e outras imagens de forma caricata, consideradas imprescindíveis para a compreensão da história do país. Porém, todos estes aspectos, além de serem caricatos, também são exóticos, o que cria estereótipos fetichistas sobre os japoneses.
Para a autora Mônica Bérgamo, os asiáticos são “todos iguais” para o ocidente, de modo que mesmo a escolha do elenco ou as polêmicas trazidas pelo filme em nada resultariam ou significariam para o público ocidental. Segundo a autora: “Apesar de contar com um ‘dream team’ do cinema chinês, Marshall não foi corajoso o suficiente para usar atrizes japonesas. Reuniu figuras já familiares do espectador médio dos EUA -Ziyi Zhang e Michelle Yeoh estrelaram o segundo filme em língua não-inglesa mais visto da história do país e o mais indicado ao Oscar, “O Tigre e o Dragão” (2000); Yeoh já foi “Bond Girl“. Chinesas (e uma malasiana que fez sua carreira em Hong Kong) interpretando gueixas são como argentinos no papel de brasileiros. Aos olhos do império, no entanto, somos todos ‘eles’, divididos por grandes áreas compreensíveis: ‘Os Orientais’; ‘Os Latinos’”.
Embora tenha sido lançado atualmente no catálogo da Netflix, o filme continua sendo polemizado, de modo que até mesmo Mineko Iwasaki, ex-gueixa e principal inspiração para o livro de Arthur Golden, decidiu processar o autor e o diretor após o lançamento do filme. Segundo Iwasaki, sua revolta contra o livro [e filme] deu-se em forma de processo por ter sua “privacidade desrespeitada”. A ex-gueixa não gostou de ver divulgada a prática do “mizuage”, venda da castidade por quem “der o lance mais alto”, o que lhe pareceu prostituição. A verdadeira história, segundo Iwasaki, encontra-se em sua biografia “The Memoir of Mineko Iwasaki”, traduzido para o português como “Minha vida como gueixa”.
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