
A parte mais difícil no milenar jogo de quebra-cabeça é sempre o início, pois sem uma imagem completa, os jogadores vão obtendo esboços na medida em que as peças são usadas e formadas as partes da trama principal. A partir de um determinado momento, todos obtém uma imagem mais clara, e o jogo acelera-se de tal forma que a conclusão ocorre de forma veloz.
O mundo está em uma fase de mudanças radicais e rápidas que deixaram de ser anuais para tornarem-se quase que semanais. A recessão econômica nos Estados Unidos (EUA) e na União Europeia (UE), a Guerra na Ucrânia, a remilitarização do Japão e o início da nova onda de integração latino-americana coroada com a reeleição de Lula no Brasil são alguns dos sinais de um mundo em rápido movimento. A fragmentação científica promovida pelo neoliberalismo atomizante dificulta uma visão integrada de tudo isso. Para analisar este processo é preciso um diálogo entre o amplo e o particular. Como diria o cientista político André Gunder Frank: “Construir uma análise ‘macro-horizontal não linear e integrada’“.
Logo, para começar o exercício de montar o quebra-cabeça da Nova Ordem Mundial é necessário medir a posição de cada um dos atores a partir deste cenário amplo, sabendo-se que os personagens movem-se de um lugar para o outro, na medida em que o desenho forma-se. Em períodos de transição nada é fixo, e o mapa mundial de hoje- a semelhança do que vemos na Ucrânia- é um cenário que ainda está em rápida mudança.
Esboços institucionais da Nova Ordem Mundial
A reemergência chinesa e asiática resultou na total reorganização do mundo a partir de vários reposicionamentos econômicos e geopolíticos. Os países centrais do presente sistema internacional também remodelaram-se considerando esta conjuntura. Os EUA, a Grã-Bretanha, a França e outros buscam reforçar cada vez mais a sua presença no Pacífico- ou Indo-Pacífico- e organizam suas economias e sociedades a partir dessa realidade.
É parte deste novo período histórico a ’’Competição Estratégica’’– um eufemismo Ocidental para não dizer que é Guerra de Espectro Total-, conduzida pelo Ocidente para garantir o acesso aos recursos naturais e humanos, cujo resultado é o colapso econômico e político do mundo presente. Porém, como os elementos contraditórios do antigo sistema ainda não foram superados é inevitável a continuidade deste ’’choque histórico e temporal’’.
Em meio as diversas mudanças iniciadas em 2020, novas instituições internacionais situadas fora do Ocidente, até então coadjuvantes, tomaram a dianteira das relações bilaterais e multilaterais: a Organização de Cooperação de Shanghai (OCS)– composta por Rússia, China, Cazaquistão, Quirguistão, Uzbequistão Tadjiquistão, Índia, Paquistão e Irã-, o BRICS (Brasil-Rússia- China- Índia- África do Sul), a União Africana, a Associação dos Estados do Sudeste Asiático (ASEAN), e a Comunidade dos Estados Latino Americanos e Caribenhos (CELAC). Todas essas organizações discutem economia, política e a reorganização das instituições mundiais em nível conjuntural macro.
O economista e cientista político Theotonio dos Santos indicou há décadas que estas organizações de integração regional são os instrumentos de transição para uma nova espécie de globalização que estava emergindo a partir da própria crise do neoliberalismo. O motivo para isso é que as antigas instituições, a Organização das Nações Unidas (ONU), o Fundo Monetário Internacional (FMI), o Grupo das 7 maiores economias (G7) e outros deixaram de refletir a real distribuição de poder entre os países. Logo, construir novos mecanismos como a OCS e o BRICS (Agora BRICS+) é necessário para a cooperação entre os países excluídos do centro de poder no globo e para que ocorra uma reforma na ordem internacional.
A OCS e o BRICS incluem as principais potências políticas, econômicas e militares com a exceção dos EUA, da Grã-Bretanha e do Japão. As duas instituições, que não têm nenhum caráter formal jurídico propriamente dito, tornaram-se as forças políticas decisivas para a resolução da crise no abastecimento de medicamentos e vacinas durante a pandemia, e possuem uma ampla e avançada discussão sobre a democratização das instituições internacionais. Na Afro-eurásia, a OCS já é a instituição política e multilateral mais importante para questões econômicas e diplomáticas.
As negociações entorno da estabilização e pacificação da Síria e a reconstrução e a reintegração do Afeganistão ao sistema internacional são exemplos de situações em que os membros da organização trabalham em conjunto. A visão positiva e responsável dessa instituição é evidenciada inclusive em seu processo de expansão recente que passou a ter como membros observadores, por exemplo, Arábia Saudita, Egito e Turquia- três aliados históricos dos EUA desde a Guerra Fria.
No caso do BRICS, o grupo solidificou-se como a alternativa para a reformulação das instituições internacionais, e também para a inserção econômica e política dos países Terceiro Mundo. O deslocamento do centro do dinamismo econômico para a Ásia oriental exige meios diferentes de inserção global para a América Latina e a África. Portanto, a participação do Brasil e da África do Sul nestes órgãos é importante por tratarem-se de potências e porque serão as pontes que ligarão os centros mundiais aos polos regionais, a partir de novas adesões aos BRICS por meio do mecanismo BRICS+. A Argentina, o Cazaquistão, a Argélia e outros países já pediram ingresso ao grupo.
Contudo, nenhum esboço institucional é possível sem a edificação de um novo sistema financeiro. Tanto a pandemia quanto a presente recessão econômica mundial indicam que não é mais possível prosseguir com o modelo Bretton Woods. É por isso que nos dois espaços, BRICS e OCS, o foco principal tornou-se construir um novo mecanismo de transações financeiras para substituir o padrão dólar, e desdolarizar de forma paulatina os setores críticos como energia.
No petróleo e no gás o processo é mais avançado porque dois dos maiores exportadores de ambos os combustíveis (Rússia e Irã) foram excluídos da economia ocidental. Porém, o passo decisivo será o início da venda do petróleo em Yuan para a China por parte da Arábia Saudita- oferta realizada pelo próprio Xi Jinping em Riad no mês de dezembro, e que foi recentemente aceita pelos sauditas.
Inclusive é necessário apontar que os principais projetos econômicos, políticos, culturais e socais no mundo estão nuclearizados entorno da China- maior economia do mundo- em razão do projeto das Novas Rotas da Seda. Este projeto geopolítico multilateral conta com a colaboração em termos econômicos e políticos de todos os polos globais não-ocidentais, a União Econômica Euroasiática, a Liga Árabe, a ASEAN, a União Africana e a CELAC. Isso tem consolidado a também chamada Iniciativa Cinturão e Rota, e todos a ela ligados, como a alternativa ao modelo de desenvolvimento oferecido pelo Ocidente nos últimos séculos.
Neste cenário, as clássicas instituições internacionais multilaterais hegemônicas que lideraram o mundo Pós-1945, a OTAN e a União Europeia (O Ocidente), perdem o seu poder e espaço simultaneamente. Ao longo da última década, o Ocidente tornou-se incapaz de construir consensos na comunidade internacional, não possui qualquer projeto político e econômico, e passa por uma violenta crise social. A única grande habilidade de Bruxelas e Washington é na elaboração de crises e guerras como forma de ampliar o lucro e o poder.

As Potências da Mundo Pós-Covid
Joseph Nye construiu uma importante classificação entre as formas pelas quais uma potência exerce o poder. Ele aponta a existência de um Hardpower (Poder duro) associado à instrumentos econômicos, políticos e militares para a conquista ou a manutenção do poder, e de um Softpower (Poder brando) associado à capacidade de exercer a dominação por mecanismos culturais e ideológicos. Embora Nye privilegie o Softpower, reconhece que todas as potências também precisam de algum Hardpower.
O conceito de Soft Power e o exemplo francês (texto bilíngue)
Samuel Hutington em “O Choque de Civilizações e a recomposição da ordem mundial” (1996) elaborou um conceito distinto de potência. Este cientista político atribui um grande peso ao que Nye define como Sofpower para o período pós-Guerra Fria, onde os Estados-núcleo das civilizações são os detentores da capacidade de hegemonia por questões materiais e culturais.
Segundo ele, a ordem baseada em civilizações acarretou uma organização do poder mais difusa no simbolismo religioso e cultural que escanteou os aspectos material e ideológico. É por isso que para Huttington, o Ocidente encontrava-se em um processo de perda de hegemonia e tinha a necessidade de reafirmar-se ideológica e politicamente perante as outras civilizações- e vimos isso simbólica e concretamente com as guerras e sanções unilaterais promovidas pelos EUA desde a década de 1990.
A referência no simbólico, no imagético e nos sentidos nunca esteve dissociado do poder de hegemonia política e ideológica ou material. Existem diversas teorias e discussões acadêmicas sobre isso atualmente, e inclusive uma clássica referência no tema, o marxista Antonio Gramsci, ficaria fascinado ao descobrir o poder do ’’simbolismo de perfomance’’- um filhote do Capitalismo Financeiro- gerado pela emergência do mundo virtual. O conceito gramsciano de hegemonia permite um permanente diálogo entre o material e o simbólico, que na prática são inseparáveis. A divisão entre o Sofpower e o Hardpower é uma distinção cabível na teoria, mas não prática.
Portanto, não existe uma escada a ser subida ou uma checklist de itens que determinam ou não o que é uma potência. Potências podem ser definidas pelas condições materiais (Riquezas materiais e a sua distribuição) e do que chamaremos de estado moral de autoconfiança (Capacidade de coesão política e social, e de defender os interesses nacionais- imperialistas e não- perante outros países). Em ambas definições, as condições materiais e de autoconfiança são indissociáveis, ainda que as duas possam não ter o mesmo peso entre os diversos países e potências. O melhor exemplo é o Japão.
O Japão detém uma civilização milenar riquíssima e condições econômicas e tecnológicas invejáveis para qualquer potência. Todos os analistas internacionais sérios posicionam o país entre as principais potências globais. Contudo, o Japão é limitado em razão de seu domínio militar pelos EUA e uma incrível fragilidade política perante o mesmo. Por vezes, Tóquio é tratada tanto no nível material como no simbólico como uma esfera de influência manipulável. O Japão tem condições materiais de potência, mas não a autoconfiança necessária, algo que torna-o uma potência de segundo escalão.
E aqui chegamos a um ponto importante. Em qualquer sistema internacional prévio, sempre existiram potências de primeiro e segundo escalão. Em resumo, as Grandes Potências são capazes de impor os seus interesses em razão das condições materiais e de autoconfiança, enquanto que as potências secundárias possuem a autoconfiança, ou as condições materiais, mas não as duas juntas em níveis necessários para construir uma hegemonia global. Estes dois grupos são muito importantes, porém o único que é capaz de edificar ordenamentos e instituições políticas é o grupo hegemônico, isto é, o das Grandes Potências.

Relembrar a formação da ordem do Pós-Segunda Guerra Mundial é didático. A União Soviética e os EUA eram as duas principais potências, porém existiam outros poderosos Estados no segundo escalão, justamente pela existência de condições materiais e de autoconfiança. Em 1945, as condições econômicas e culturais da Grã-Bretanha e da França estavam em escombros, e mesmo assim, mantiveram um status de Grandes Potências algumas décadas mais em razão de seus impérios coloniais em crise.
O Brasil não era tão poderoso militarmente em 1945, mas já era uma potência regional em termos econômicos, políticos e culturais. Mesmo assim, não só o Brasil nunca recebeu o respeito como potência secundária- cujo papel na Segunda Guerra Mundial é negligenciado- como foi com frequência marginalizado nas instâncias de poder mundiais.
Portanto, uma potência não ’’obtém’’ a hegemonia, algo construído, e que precisa do reconhecimento pelos outros países. Os EUA apenas passaram a serem considerados uma potência quando foram reconhecidos como iguais pelos britânicos e franceses na Europa e por todos os outros países. A hegemonia não é um caminho trilhado até chegar a um ponto, é algo a ser conquistado, não por ideias e bombardeios, mas por um acúmulo político, material e ideológico.
Diante disso, é factualmente conclusivo que a atual estrutura da Organização das Nações Unidas (ONU) é obsoleta, em especial o Conselho de Segurança, onde residem duas potências decadentes (Grã-Bretanha e França). Entretanto é a ausência que chama mais a atenção. A América Latina (que possui 3 das 20 principais economias do mundo), a África (continente com pouco mais que o dobro da população europeia) e a Ásia (núcleo de várias civilizações e 4 dos 5 países mais populosos do mundo) possuem um nível de representatividade pífio nas verdadeiras instâncias de decisão da ONU.
O motivo principal para essa ausência é a origem colonial das instituições da presente ordem mundial- inclusive a própria ONU- que foram desenhadas não só pelos EUA e a União Soviética (embora, tivesse sido excluída de muitas dessas instituições), mas também pelo Império Britânico e pela França colonial. Portanto, é compreensível que os povos africanos e asiáticos não estejam representados da forma devida nas instituições edificadas no momento em que lutavam por independência. Contudo, o mundo mudou.
Samuel Huttington foi um dos primeiros cientistas políticos estadunidenses a reconhecer essa realidade na década de 1990 com base em dados materiais sobre os países africanos, latino-americanos e asiáticos. A sua divisão do mundo em civilizações tem muita semelhança com o atual recorte de poder multipolar, cujo grande problema é a excessiva ênfase do autor na conceituação da cultura e da religião como parte central do poder das identidades civilizacionais. Isso fez com que o autor expusesse uma verdadeira visão generalizante de culturas e religiões não-ocidentais. Diante das transformações nas últimas décadas, e consideradas as condições materiais e de autoconfiança, um grupo mapeável de Cinco Grandes Potências inclui hoje: China, EUA, Rússia, Índia e Irã.

China– Após um período longo de reconstrução, crescimento econômico e distribuição de riqueza iniciado com a República Popular da China (RPC) em 1949, o antes chamado Império do Centro voltou para a milenar posição de Grande Potência. É indiscutível a presente capacidade diplomática, econômica e política chinesa, e nem mesmo o mais fanático independentista em Taiwan pode negar isso. Essa posição inabalável ainda está longe do pico de seu poder, pois a China é limitada pelas instituições internacionais criadas no pós-1945 e que a excluíram do sistema internacional até 1971.
A Guerra de Espectro Total contra a China, também nomeada pelo professor argentino Gabriel Merino de Guerra Híbrida Mundial e Fragmentada, tem como uma das fortalezas as instituições internacionais pós-1945. Mesmo que a construção da hegemonia chinesa não seja abalada por isso, visto que hoje, o seu poder econômico- e cada vez mais militar- é crucial para a estabilidade mundial, a capacidade e a extensão será limitada pelos órgãos e instituições internacionais criadas e sustentadas pelos EUA.
Estados Unidos– As derrotas no Afeganistão, Iraque, e agora na Ucrânia, mergulharam Washington em uma crise que rompe a esfera material, atingindo o nível simbólico e de autoconfiança. Os EUA são incapazes de ganhar guerras, defender aliados e mobilizar a opinião mundial como em décadas anteriores, algo que deixa a coerção como o principal instrumento de poder, mesmo dentro do bloco ’’Euro-Atlântico’’. Essa situação não significa que os EUA deixarão de ser uma Grande Potência, mas indicam que o status de ’’País Indispensável’’ e ’’Polícia Global’’ acabou.
O país ainda desfruta de um dos maiores arsenais nucleares, de avançados equipamentos de guerra tecnológica, e ainda detém um grande poder econômico. A Casa Branca permanece com muita força política na América Latina e fortaleceu a sua hegemonia na Europa. Mesmo que os EUA passem a ostentar um status parecido com o da Grã-Bretanha na Guerra Fria, na segunda metade do século XXI, o país ainda estaria entre os mais populosos, economicamente avançados e privilegiados em termos geográficos. A grande questão no momento é como as gerações de estadunidenses que aprenderam desde cedo que o seu país era o Número 1 do mundo irão comportar-se.
Rússia– Moscou é uma potência pelo menos desde o século XVI. As tentativas de ocidentalização entre os séculos XVII e XIX tornaram a Rússia mais poderosa, porém fracassaram em aproximar o país da Europa. No século XX, a União Soviética manteve este status por meio de um espetacular processo revolucionário e uma modernização econômica sem a ocidentalização. Ainda que a crise e a destruição da União Soviética no fim da Guerra Fria tenha posicionado a Rússia como potência de segunda categoria, isso não poderia durar muito tempo como previram muitos cientistas políticos.
A Guerra na Ucrânia mostra uma Rússia resoluta, irredutível e firme na guarda de suas posições e interesses. Nenhuma das sanções por parte do Ocidente funcionou e a opinião pública de boa parte do mundo continua neutra. A Rússia é um ator militar, diplomático e econômico essencial demais para ser excluída do mapa ou contrariada por um motivo qualquer. O fato mais importante será ver que posição a Rússia terá perante os demais países a partir de agora. Será um um tipo específico de nacional desenvolvimentismo com características capitalistas, ou um novo ufanismo Pan-eslavista versão Século XXI? O relacionamento com a China e o resto da Ásia ajudará na resposta dessa pergunta.
Índia– Após 75 anos de independência, a Índia tornou-se central para a economia e a diplomacia no mundo. Na Guerra na Ucrânia os indianos mantém uma posição de neutralidade construtiva e têm sido reconhecidos como um dos possíveis mediadores. Isso é importante para uma civilização milenar de múltiplas identidades, e portanto capaz de dialogar com diferentes países. Embora a economia e a cultura sejam os ativos mais poderosos da Índia- para não citar o militar-, existem muitas vulnerabilidades políticas ligadas à pobreza e ao racismo, herdados do colonialismo britânico.
A marginalização dos muçulmanos e o fortalecimento do nacionalismo hindu refletem a cicatriz profunda do problema com o Paquistão que precisará de solução cedo ou tarde. O futuro da Índia como Grande Potência depende mais da capacidade política de resolver os problemas sociais internos do que solucionar os gargalos econômicos e apresentar sucessos diplomáticos.
Irã– O Irã foi uma potência em vários períodos da história, e os momentos em que o país foi marginal no mundo são exceções. Desde o período dos Medos e do rei Xerxes, os iranianos construíram Estados e Impérios que reuniam os elementos de diversas culturas: gregos, árabes, mongóis e outros. Ainda que o Irã seja o único país nesta lista das Grandes Potências que não possui armas nucleares (ainda), devido a sua capacidade militar e diplomática, conseguiu saltar do total isolamento político nas últimas décadas para o centro das discussões internacionais. O Irã foi um dos poucos países muçulmanos onde o Ocidente fracassou em impor um projeto colonial.
Desde a Revolução Iraniana em 1979, o país reivindica um novo espaço no sistema internacional, de onde não apenas lideraria o mundo muçulmano, mas que o posicionaria entre as potências. O Irã é um líder político no mundo muçulmano, um aliado econômico e militar da China, tornou-se um importante parceiro e aliado estratégico da Rússia e desfruta de um softpower crescente na África e na América Latina. Entretanto, o Irã possui graves fragilidades econômicas, políticas e sociais. A economia possui baixo dinamismo e as forças produtivas são pouco desenvolvidas, e faltam direitos sociais para populações marginalizadas- em especial mulheres e minorias religiosas e étnicas. Ambas questões geram tensões constantes e são focos de instabilidade política no país.

As Potências Secundárias serão mais importantes na Nova Ordem Mundial Pós-Covid do que em qualquer momento após 1945, pois serão as pontes entre as Grandes Potências e os países de sua região imediata- área onde normalmente exercem uma hegemonia limitada. O formato do BRICS+ possibilita que isso ocorra em seu limite máximo. Não é por acaso que dentre as potências secundárias estão inclusos alguns candidatos ao grupo. Entretanto, alguns destes países possuem condições e até caminham para tornarem-se Grandes Potências, desde que superem desafios materiais e de autoconfiança. As Seis Potências Secundárias mapeáveis são: Brasil, África do Sul, Turquia, Indonésia, Japão e Grã-Bretanha.
Brasil– O Brasil é um país jovem com amplos recursos naturais e humanos e que possui um potencial industrial e científico-técnico relativo, complementar com os outros países sul-americanos. O Brasil e a América do Sul são incapazes de projetarem-se como potência de forma dissociada. É por isso que ambos buscam construir laços para uma inserção mundial coletiva. Trata-se de uma liderança compartilhada e edificada no século XX por meio de históricos órgãos de integração sul-americanos como o Mercosul. Entretanto, o Brasil não consegue criar uma identidade latino-americana por questões históricas e culturais desde a independência.
Há séculos, as elites e a classe média brasileira buscam identificar-se com o Ocidente (em especial a França e os EUA), tornando-o marginal ao Atlântico Norte e dependente desta identidade política e institucional. Embora precise de poder militar e econômico para superar a Doutrina Monroe (América para os Americanos) e ser uma Grande Potência, o Brasil também precisaria romper com a identidade ocidental para edificar algo novo que o diferencie de Nova Iorque e Paris, interna e externamente. Isso obrigaria o país a passar por uma experiência política e social ainda mais radical do que Cuba e Venezuela em seus respectivos processos históricos.
África do Sul– Os sul-africanos detêm uma das maiores capacidades de articulação diplomática no continente africano. As capacidades humanas, científicas e industriais também são fortalezas perante um continente marcado pela super exploração econômica e sem soberania em questões fundamentais como saúde, alimentação e produtos básicos. Em termos militares, a África do Sul está envolvida nos principais conflitos africanos e tem razoável poder de barganha diplomático com todas as Grandes Potências.
Porém, a África do Sul prossegue com graves tensões raciais herdadas do colonialismo britânico e do apartheid, e isso reflete-se na instabilidade política constante que também é fruto de uma economia frágil. Um problema externo com implicações internas é a expansão do terrorismo nos países vizinhos, em especial do grupo Estado Islâmico- Daesh-, pois muçulmanos sul-africanos têm sido recrutados, alguns dos quais lutam na insurgência em Cabo Delgado no Moçambique. Estes problemas exigem uma profunda reflexão e reformas no modelo político e econômico sul-africano atual.
Turquia– Detentores de uma civilização milenar, os turcos voltam a ter importância no mundo na década de 1990 como resultado de sua crescente influência na Ásia Central e o peso nas decisões ocidentais acerca dos conflitos no Oriente Médio. O presente peso da Turquia foi construído a partir de elementos culturais, diplomáticos, militares e políticos por fora do ocidente em razão de seu isolamento em órgãos como o G8 e a UE, onde a entrada de países muçulmanos é restringida. Nas últimas duas décadas, a Turquia ganhou uma presença política equiparável aos países europeus na África, militarmente decisiva no Oriente Médio e grande em termos culturais na Ásia Central.
Embora seja uma potência secundária, a Turquia possui todas as capacidades materiais e de autoconfiança para que nas próximas décadas torne-se o sexto membro do círculo hegemônico de China, EUA, Rússia, Índia e Irã. Contudo, para dar este salto, a Turquia precisaria- e isso requer um futuro sucessor de Erdogan na sua mesma estatura- de um processo de radical ruptura com o Ocidente em médio e longo prazo. Isso voltaria a gerar tensões militares e políticas com os europeus apaziguadas após a Primeira Guerra Mundial, e criaria um problema maior do que o movimento independentista curdo.
Indonésia– Esta é uma das surpresas nas últimas décadas, pois o país tornou-se a maior potência econômica do sudeste asiático e mantém sucessivos recordes de crescimento. Os quatro mais poderosos ativos da Indonésia são a população (a quarta maior do mundo), o controle geográfico de importantes corredores de rotas marítimas e recursos naturais, as Forças Armadas e a diplomacia. No curso da Cúpula do G20 em Bali ficou patente para o mundo que a Indonésia tem a capacidade de dialogar com os principais atores mundiais e é reconhecida como uma liderança não apenas da ASEAN, como no antigo Terceiro Mundo, hoje chamado de Sul-Global.
Contudo, a Indonésia possui graves problemas de caráter racial e religioso que são potencializados por ações de grupos terroristas ativos no país. Existem tensões constantes entre as comunidades muçulmana (a maior do mundo), hindu, budista e chinesa. A questão das mudanças climáticas e os constantes terremotos na região também são um desafio em razão das perdas materiais e infra-estruturais que limitam o crescimento econômico e que exacerbam desigualdades sociais e raciais. A resolução destas questões exigirá para médio e longo prazo projetos sociais, culturais e científicos na mesma medida que no campo econômico.
Japão– O Japão é uma potência econômica, política e cultural. As principais bases da inserção internacional japonesa entre o pós-1945 e o início da década de 2000 foram a economia e a cultura. Embora a crise de baixo crescimento nas últimas décadas tenha enfraquecido ambos pilares da posição japonesa como potência- em especial em razão do espetacular e contraditório desempenho sul-coreano-, o país permanece como um importante ator no sistema internacional.
O principal problema japonês não é de caráter militar, mas de natureza política, pois enquanto potência, o Japão sempre buscou equalizar-se aos centros políticos ocidentais para construir a sua hegemonia política, militar e mesmo racial sobre outros povos asiáticos. A decadência ocidental e a ascensão do leste da Ásia, em especial da China, criou uma crise nessa identidade do Japão.
Isso é agravado pela relação subordinada ao Ocidente que deixou o país com apenas duas escolhas: 1) abandonar a ideia de supremacia civilizacional no oriente que caracteriza o Japão desde a Revolução Meiji em 1868, assumir uma identidade asiática plena e integrar-se a uma Ásia hegemonizada pela China; ou 2) aprofundar a aliança com o Ocidente, tornando o país a fronteira pacífica do mundo Euro-Atlântico. O Japão ainda não fez uma opção definitiva clara. Porém, na Nova Ordem Mundial essa decisão será inadiável.
Grã-Bretanha– A decadência londrina data do fim da Primeira Guerra Mundial. No entanto, só nas décadas de 1980 e 1990 isso ficou mais visível. Ainda assim, os britânicos detêm grande capacidade militar e considerável poder cultural. Ao lado dos EUA, a Grã-Bretanha possui bases navais nos cinco continentes, e a Comunidade das Nações (Commonwealth) permite o controle do fluxo de importantes pontos estratégicos no mundo todo. No aspecto cultural, vários líderes de países do Terceiro Mundo ainda formam-se em universidades britânicas, que também têm os melhores cientistas de várias partes do planeta.
Os jornais britânicos ainda influenciam a opinião pública mundial, em especial nos países anglófonos. Porém, a perda do império colonial diminuiu o poder econômico e político britânico e abriu contradições internas entre as etnias não inglesas nas ilhas britânicas. Estagnada em uma monarquia antipopular, a Grã-Bretanha é uma potência com futuro incerto e que depende cada vez mais das heranças do período vitoriano para manter o seu status global e regional.
A pergunta que muitos devem estar fazendo é porque a Grã-Bretanha é parte dessa lista e não a UE, ou mesmo países europeus como a França. Bom, a Europa está totalmente subordinada aos EUA. A Guerra na Ucrânia demonstrou que a Alemanha e a França perderam completamente a importância econômica e política que detinham há séculos. O poderio econômico alemão está sendo dissolvido perante um avassalador assalto estadunidense a economia europeia. Já a França está isolada no continente e perdeu a sua projeção no Oriente Médio e na África após as guerras no Iraque e na Líbia. Polônia, Itália e Espanha não conseguem ostentar nem mesmo o papel de potências regionais, cujas importâncias são superestimadas apenas porque estão na Europa e são membros da OTAN.
Em termos de conjectura, a revitalização do Conselho de Segurança da ONU a partir da expansão de assentos e da representatividade dos países precisará incluir todas as potências citadas, Grandes e Secundárias, algo que aumentará a representatividade dos reais polos de poder globais na ONU. É evidente que um grupo de apenas 11 países (China, EUA, Rússia, Índia, Irã, Brasil, África do Sul, Turquia, Indonésia, Japão e Grã-Bretanha) é pequeno e seria desejável complementá-lo com representantes permanentes, possivelmente rotativos e com poder de veto, de pelo menos mais um país em cada continente, incluindo a Oceania.
Este modelo do novo Conselho de Segurança com dezesseis países (três países ocidentais, dois latino-americanos, dois africanos, oito asiáticos e um oceânico) seria capaz de representar todas as principais regiões, boa parte dos povos, instituições multilaterais e continentais e o real balanço do poder entre os países no planeta hoje. Porém, para que essa conjectura seja possível é preciso uma futura concertação que ainda não é visível hoje.

É possível uma futura concertação de Potências, Grandes e Secundárias?
Em tempos de guerra é difícil apontar quando a paz pode chegar, se é que isso é possível hoje. Entretanto, as transformações políticas, econômicas e estruturais iniciadas com a Pandemia da Covid-19 esboçaram um mapa bem diferente do que o mundo conheceu desde o início do século XIX. Durante a pandemia, a Índia e a China foram os países que determinaram a produção e a distribuição de vacinas, medicamentos e equipamentos. As potências alimentares, Rússia, Brasil, países do Sudeste Asiático e América Latina estão determinando para onde vão os alimentos no período da maior crise alimentar da história contemporânea. Em suma, a Europa e os Estados Unidos deixaram de controlar a economia mundial como nos séculos XIX e XX.
Com a exceção dos EUA, da Grã-Bretanha, da Turquia e do Japão, todas as outras potências indicadas como hegemônicas ou secundárias, são países desvinculados do Ocidente. Inclusive, a lista poderia ser maior caso potências regionais como Nigéria, Egito, Argentina, México, Cazaquistão, Tailândia e outros fossem incluídas no grupo das potências como lideranças regionais na Nova Ordem Mundial. O compartilhamento da identidade não-ocidental é o que une essa maioria à exemplo do que Huntington já havia indicado na década de 1990 e vários outros cientistas políticos ao longo do século XX.
Portanto, uma concertação mundial envolvendo os países não-ocidentais por fora das instituições tradicionais (G20, ONU, Banco Mundial e outros) é bem mais provável- inclusive é o que parece estar em curso- do que alguma grande conferência ou acordo que envolva todas as potências. Aliás, é sintomático perceber que nos acordos após as guerras mundiais do século XX- que envolveram majoritariamente países europeus-, os derrotados eram marginalizados. No entanto, isso não é possível de ser feito com potências nucleares como os Estados Unidos e exigirá que no atual conflito mundial entre Washington, Moscou e Beijing, seja acordado algo semelhante a Deténte na Guerra Fria.
O contrário disso, isto é, a derrota total e por consequência a dissolução de alguma das potências (como ocorreu com a Alemanha Nazista, a Itália Fascista e o Império Japonês) apenas deixaria o mundo muito mais perto do precipício nuclear. A melhor resposta para a questão será o tempo. Quem sabe novas lideranças emergentes dos tempos turbulentos de crise que assistimos hoje podem ser capazes de chegar a um meio termo. Até lá, este quebra-cabeça seguirá sendo apenas um esboço parcial.
Referências
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HUTTINGTON, Samuel P. O Choque de Civilizações e a Recomposição da Ordem Mundial. Editado por Objetiva, Petrópolis, 1997.
NYE, Joseph. Soft Power: The Means to Success in World Politics. Editora Public Affairs, Nova Iorque, 2005.
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