O Poder Popular e as Eleições de 2023 em Cuba

Crédito: Prensa Latina.

O caráter socialista da revolução cubana, apontado por Fidel Castro em abril de 1961, no dia anterior a invasão de Playa Girón por mercenários cubanos apoiados pelo governo Kennedy, representou o desdobramento das medidas democráticas e populares vinculadas ao projeto de resgate da soberania nacional do país frente ao imperialismo estadunidense. A partir de então, o povo cubano e sua direção política, assumiram o desafio de construção do primeiro Estado Socialista no continente.

As tarefas econômicas, tendo como base a propriedade social/ Estatal dos meios de produção e a construção de uma economia planejada, foram alvo de intensa  polêmica à luz das particularidades cubanas, mas conjugadas também com a  presença histórica concreta de outras experiências socialistas. Uma discussão teórica fecunda sobre qual sistema socialista de produção seguir, em um país com poucos recursos naturais e historicamente dependente, já começando a sofrer as consequências do duro bloqueio estadunidense.

Só que o socialismo marxista não se resume, e muito menos se esgota, na esfera econômica produtiva, sendo, portanto, a democracia socialista percebida e exercida de forma integral. Além do importante passo da socialização da produção e da propriedade – com  o acesso dos trabalhadores a educação, saúde e cultura com base na igualdade real – , significa também a necessidade dos trabalhadores gerirem a produção e o poder político de forma ampla e progressiva, como sujeitos da história, controlando o processo social  produtivo em sua totalidade , sendo então preparadas as condições mais gerais para a transição comunista. Passo significativo e obrigatório nessa transição dá-se com a destruição do Estado burguês e a construção de um  Estado Proletário que também colaboraria para seu próprio fim,  sendo totalmente absorvido pela sociedade  com o término da sociedade de classes.

Crédito: Prensa Latina.

A revolução cubana foi um processo onde a presença popular foi intensa. Logo após a vitória em janeiro de 1959 surgiram diversas organizações populares e outras foram reformadas à luz da nova configuração política, como o caso da Federação de Estudantes Universitários (FEU) e a Central dos Trabalhadores Cubanos (CTC). Em meio a intensa e violenta contra revolução externa e interna que utilizavam também o terrorismo e a luta armada, sem, porém, ter apoio de massa, os Comitês de Defesa da Revolução (CDR), organizados por quadra, foram importantes na formação e desenvolvimento de processos  participativos que contribuíam na gestão administrativa local,  onde o PCC tinha papel de liderança como partido de vanguarda.  A necessária estruturação desse Estado Socialista foi, porém, adiada- “perigosamente negligenciada” como apontou Florestan Fernandes – gerando a ausência desse desenho político administrativo sistematizado que, combinado com a escassez de quadros técnicos, contribuíram para os problemas econômicos sérios vividos pela ilha em fins da década de sessenta.

Foi em meio a autocrítica pelo insucesso da safra dos dez milhões de toneladas de cana de açúcar, no final da década de sessenta, que apareceu a urgência de estruturação desse Estado Socialista, que teve clara influência do modelo hegemônico de matriz soviética, naquele época já seguindo as reformas econômicas iniciadas por Krustchiov. As empresas Estatais cubanas nos municípios e províncias tiveram sua autonomia financeira e a direção da revolução delegou poderes, surgindo as Assembleias do Poder Popular com suas instâncias municipais, provinciais e em âmbito nacional, expressas na Constituição de 1976, aprovada com  a participação de quase 98% da população. A revolução institucionalizava-se, organizando o poder politico administrativo e contando, para isso, com a pujante legitimação popular.

As eleições em um país que constrói o socialismo significam um determinado momento da participação real da sociedade, onde existe a reprodução da hegemonia política das classe que controla o poder. Não é o único, já que essa hegemonia é permanentemente e reproduzida no cotidiano, na gestão da produção e através da presença ativa das diversas organizações que dão forma a sociedade civil socialista. Na sociedade cubana, essa democracia- simultaneamente representativa, participativa e protagônica-  e seu momento eleitoral foram sempre muito valorizados também como uma resposta ao imperialismo e a contra revolução, legitimando o projeto revolucionário constantemente ameaçado.

O processo eleitoral foi desenvolvido para envolver os cubanos na discussão politica e na gestão do poder local, sem campanhas baseadas no poder econômico e no marketing, com candidatos  eleitos  por quadra, tendo em vista sua conduta moral, seu exemplo como revolucionários e suas propostas. Diferente dos países socialistas europeus, o partido dirigente nunca propôs candidatos, e os deputados eleitos deveriam prestar contas porque poderiam ter seus mandatos revogados

O Fim da URSS colocou a revolução e o socialismo à prova, Por isso, os processos eleitorais dos anos noventa foram plebiscitários. O lema da direção revolucionária e que se fez presente nas eleições era “Salvar a Pátria, a Revolução e as Conquistas do  Socialismo”. Houve uma surpreendente presença de 97% da população em todos os pleitos  – não custa lembrar que o voto na ilha nunca foi obrigatório, além de ter ocorrido um ínfimo percentual de votos nulos e brancos e com marca decisiva do Voto Unido, o voto por todos os integrantes da lista proposta, fato apresentado como uma  profunda confiança da população em todos os candidatos propostos, até a metade deles delegados de base, dos municípios, sendo o restante proposto pelas diversas organizações de massa e assembleias provinciais.

E nesse período de intensa dificuldades materiais, cerco econômico e agressões terroristas, o sistema politico foi ainda mais democratizado, ampliando as instâncias de participação e o voto direto, com o PCC retirando-se das comissões de candidaturas e tornando-se o partido da nação cubana. Apesar do inegável e inevitável parentesco do ponto de vista histórico com o modelo soviético, a originalidade e particularidade da revolução e do socialismo da ilha – centrado na intensa participação popular e na construção da consciência através do embate político-cultural cotidiano, sem desligar-se de toda a sua história pela soberania nacional desde a independência- garantiram a vitória do projeto revolucionário socialista frente ao “duplo bloqueio”: o fim do campo socialista e a intensificação do cerco imperialista estadunidense de caráter extraterritorial, forçando países e empresas a aderirem ao objetivo de isolar a ilha.

A sobrevivência do projeto revolucionário  também esteve ligada a uma série de medidas consideradas, à época, desconfortáveis do ponto de vista político e ideológico mas, ao mesmo tempo, inevitáveis em função da nova correlação de forças dos anos noventa: a livre circulação do dólar com a vigência da dupla moeda, a busca de investimentos estrangeiros, o maior espaço dado ao mercado com o surgimento progressivo de  empresas privadas, o crescimento do trabalho por conta própria e o estabelecendo de uma lógica produtiva diferenciada. A economia lentamente fortaleceu-se e as marcas mais duras do Período Especial foram apagando-se.

Uma nova sociedade e também um diferenciado desenho de socialismo estavam também aos poucos sendo construído: novos grupos sociais foram tomando forma, uma pluralidade cada vez maior de práticas sociais e formas de pensar desenvolveram-se e o crescimento das diferenças sociais já se tornava evidente,  embora nada comparado com qualquer país capitalista da região. Não é por acaso que nos primeiros anos do século XXI, embora sempre valorizando a questão da unidade frente ao imperialismo para defesa do projeto revolucionário, a liderança histórica da revolução, Fidel Castro, tenha defendido entusiasticamente a batalha de ideias contra os males e contradições como a corrupção e a corrosão dos valores socialistas que se aceleraram durante o Período Especial salientando, de forma corajosa e realista, a possibilidade de reversão do socialismo da ilha como resultantes dos erros de condução dos próprios cubanos.

Já  na segunda década do século XXI, o país demostra mais uma vez a força da democracia popular sendo aprovados os Lineamientos e referendada a Reforma Constitucional, após a intensa discussão propositiva do povo cubano. Na verdade, ambos representaram  a fundamentação sistêmica  desse novo socialismo que foi sendo construído desde o Período Especial, apresentando continuidades e diferenciações se comparado com aquele desenvolvido pela ilha até o fim da URSS, estabelecendo então várias formas de propriedade, ainda que continuassem sendo decisivas e predominantes a propriedade Estatal socialista e a planificação econômica.

É perceptível, examinando o teor e a linha condutora dos documentos, que a direção revolucionária passou a entender a transição comunista como um processo muito mais longo historicamente do que se pensava nas décadas anteriores, sendo sintomática a visão de Raúl Castro apresentando a  construção do socialismo como “uma viagem ao ignorado”. Essa construção do socialismo buscou encarar sem temor os desafios internos em função do surgimento de novas contradições econômicas e sociais, com a maior presença do mercado, com as pequenas e medias empresas, mas vem sofrendo com o bloqueio econômico estadunidense intensificado com a era Trump e continuado por Biden que busca limitar as remessas e dificultando ainda mais os créditos e as negociações do governo e empresas cubanas com o exterior.

pandemia da Covid, provocando forte descenso do PIB com a interrupção do turismo e as novas medidas econômicas (o Reoerdenamiento), visando o fim da dupla moeda, que mostrou pouca eficiência econômica e social, deram o um tom dramático ao cotidiano do cubano, marcado pela falta de produtos, preços altos e inflação. Não foi por acaso que, em meio ao quadro de dificuldades e compreensível insatisfação, a contra revolução externa e interna buscou investir politicamente, tomado a direção em junho de 2021 das manifestações de rua rapidamente divulgadas em toda a mídia internacional.

O governo e os revolucionários venceram a batalha, mas dias depois Canel reconheceu que, para além dos provocadores financiados pelos estrangeiros que fizeram uso da violência em uma articulação jamais vista, havia uma certa presença popular naquilo que era inicialmente um protesto pacífico e tornou-se uma tentativa de tornar a ilha ingovernável, visando provocar  ações mais incisivas do imperialismo estadunidense, no intuito de pôr fim à revolução e ao socialismo.

O governo vem implementando várias medidas no campo econômico para reverter a crise, descentralizando ainda mais decisões através do poder local, conferindo mais autonomia às empresas, reforçando o incentivo a pequena e a media empresas, flexibilizando as importações e incentivando a maior presença do capital estrangeiro para modernização tecnológica e produtiva. Foram estabelecidas políticas importantes e inevitáveis para sanar os problemas materiais imediatos, ainda que possam gerar contradições sociais mais sensíveis a serem equacionadas pelo socialismo cubano. Estas, antes de mais nada, precisam de mais tempo para terem seus desdobramentos e fazerem diferença no cotidiano cubano, haja vista ser este um país duramente afetado pelas restrições do bloqueio. É nesse processo que as relações mais estreitas com China e Rússia aparecem como fundamentais, e assumindo  um caráter estratégico, com resultados práticos a médio prazo

Certamente essa situação de imensa dificuldade econômica, determinada direta ou indiretamente pelo bloqueio, vem refletindo-se no plano da política e isso nos ajuda a entender os motivos da queda do percentual de comparecimento às urnas na aprovação do Código de Família, referendado após uma ano de discussões nas instâncias de participação da sociedade civil socialista, e nas eleições para as assembleias municipais ano passado. Uma queda, em média, de cerca de 20%, se tomarmos como referência a aprovação da nova constituição em 2019.

O decréscimo os índices de comparecimento pode refletir ao mesmo tempo uma falta de esperança de uma mudança no cotidiano da população através do processo eleitoral e um descrédito pela política, o que evidentemente é um perigo em tratando-se da construção do socialismo. No plano mais geral, há necessidade de mudanças na atuação cotidiana do Partido como organização de vanguarda, sendo mais presente e sensível às demandas, críticas, sugestões e espaços de discussão desenvolvidos de forma autônoma, mas dentro da ordem socialista,  principalmente nos bairros populares. Isso em razão do socialismo ser uma construção permanente, sendo urgente sua ressignificação cotidiana como alternativa de sociedade, capaz de envolver as pessoas em seu processo construtivo.

Não por acaso que, nesse âmbito, no seu último congresso, foram aprovadas resoluções apontando a extrema necessidade de novas formas de comunicação- tendo em vista toda facilidade de interação com o avanço da internet na ilha –  e até renovados métodos de ensino das ciências humanas para realizar essa batalha que é econômica, política e cultural. No caso específico do funcionamento do Poder Popular é preciso um debate profundo sobre suas formas de organização e articulação, algo não muito fácil em tratando-se da pouca discussão,  em termos de marxismo, do funcionamento da esfera politica em uma sociedade que constrói o socialismo. Que fique claro, não no sentido de incorporar qualquer elemento da democracia liberal ocidental e seu sistema eleitoral, e sim de aprofundar os mecanismos socialistas de gestão e participação direta, com  maior incorporação da população à gestão política e social.

O fortalecimento e reconstrução dessa hegemonia proletária popular é fundamental para a continuidade a revolução. A instância de participação da sociedade cubana tem que ser revitalizada porque é um das garantidas de defesa e continuidade do processo socialista. Não podemos esquecer que as transformações econômicas-, fundamentais e inevitáveis, novamente reafirmo- estão estabelecendo uma lógica produtiva diferenciada e criando grupos sociais que podem evidentemente contribuir com o avanço produtivo, mas devem estar submetidos ao poder socialista e seu projeto de desenvolvimento. Essa ação no plano político ideológico não pode estar desligada da maior eficiência produtiva, principalmente, do setor socialista da economia- as empresas Estatais e as cooperativas de produção e serviços, justamente para superar os problemas imediatos e acelerar o desenvolvimento do país, reforçam a esfera produtiva que funciona com base em uma lógica para além do capital.

As eleições que ocorreram neste dia 26, cuja renovação de candidatos é de 64%, com significativa presença de mulheres, negros e mestiços, assumem, portanto, importância fundamental frente à permanente pressão do imperialismo e da contra revolução. Nesse momento de crise são atuais os lemas presentes na época do Período Especial: o significativo comparecimento através do Voto Unido, simbolizando a vitória da Pátria, da Revolução e do Socialismo. Que os cubanos novamente demonstrem toda sua capacidade de resistência, mais uma vez enxerguem muito além das aparências e a longo prazo.  E, ao mesmo tempo, exijam  um Poder Popular cada vez mais presente, capaz de incorporar os trabalhadores à gestão econômica e social, garantindo a unidade na diversidade contra o imperialismo e reafirmando a orientação socialista diante das complexas transformações econômicas vividas pela ilha.

Bibliografia 

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FERNANDES, Florestan.  Da Guerrilha ao socialismo. A Revolução Cubana . São Paulo.  T. A. Queiroz editora. 1979
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MUNIZ, Mirta. Elecciones em Cuba: farsa o Democracia? La Habana: Ocean, 1993

Documentos
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Proyecto de Lineamientos de la Política Económica y social. Noviembre de 2010. Disponível: http://www.cubadebate.cu.

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por Anders Noren

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