
O portão do único colégio eleitoral da cidade está quase se fechando e pessoas correm, sob o sol, para tentar se encaixar em uma das intermináveis filas. Os fiscais gritam, tentando manter a ordem, mas o esforço é em vão. Alguns, percebendo que as filas cresciam sem fim, devolvem os documentos para seus bolsos e dão meia volta. Desistiram. É impossível contar quantos voltaram para casa sem ter conseguido sequer entrar em alguma das filas que dariam acesso à novidade da urna eletrônica no processo de escolha de novos conselheiros tutelares.
Da mesma forma, penso que é difícil contar em quantas centenas de cidades cenas como essa se repetiram. Nas redes sociais, as notícias que chegam são diversas: em uma cidade vizinha, fiscais do processo eleitoral vestiam crachás contendo números de candidaturas específicas, sem pudor algum. Noutras, avisavam que folhas e mais folhas dos cadernos de registro eleitoral simplesmente não existiam, fazendo com que muitos eleitores, depois de vencer a espera na fila, vissem que seus nomes não constavam em lista alguma, sendo impedidos de votar.
O caos geral, no interior baiano – e em outros interiores em todo o Brasil -, é coroado pelo fato (im)político e abominável da aparelhagem de igrejas neopentecostais de candidaturas específicas, além da interferência agressiva de vereadores, que se apropriaram do processo de escolha de novos conselheiros tutelares como termômetro para as próprias candidaturas do ano que vem. Funciona assim: apadrinham candidatos específicos, fornecem algum financiamento na campanha, pedem que seu eleitorado compareça às urnas. Entre si, disputam para ver qual candidato manifestará maior apelo popular, e assim conseguem uma demonstração de como será a aceitabilidade da própria candidatura nas eleições municipais que se avizinham.
Votação para Conselho Tutelar é termômetro para Eleições 2024; entenda importância
Em 2014, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), estabeleceu que as eleições deveriam ser unificadas em todo o país. Buscava-se, na ocasião, gerar mais debate em torno das atribuições de um conselheiro tutelar a partir de maior visibilidade do processo. Porém, desacompanhada de certa capilaridade no debate, a medida contribuiu para polarizações nesse processo de escolha, abrindo brechas para que as eleições fossem cooptadas partidariamente. Além disso, a iniciativa de gerar maior debate em torno do Conselho Tutelar não veio acompanhada de devido investimento de infraestrutura dessas eleições. Em todas as últimas edições, as queixas sobre todas as dificuldades envolvendo o processo não se resolveram.
Trocado em miúdos, o processo eleitoral do Conselho Tutelar só se fragilizou ao longo dos últimos anos, mesmo com o esforço para fazer crescer a participação popular nesse tipo de processo de escolha, além de sua modernização através do uso da urna eletrônica. Este retrato caótico, porém, é um dos efeitos colaterais de qualquer debate político feito “nas esquinas do mundo”; ou, melhor dizendo, uma representação de uma mentalidade ainda vergonhosamente ligada ao fazer político oligárquico, coronelista e de envergadura religiosa.
Para se ter ideia de números, na pequena cidade do início do texto, conta-se com cerca de 17 mil votantes. Compareceram um pouco mais de 2 mil – desses, uma parcela não conseguiu sequer votar. Amontoados do lado de fora, alguns vereadores aguardavam a finalização do processo como quem espera avidamente resultados em casas de aposta.
Fica para o Brasil – ou, pelo menos, para quem se interessa nas movimentações eleitorais de quaisquer tipo – o aviso da urgência de se aprofundar com qualidade o debate sobre representações públicas, a política interiorana, a vigência do “favor”, a mística da mobilização de eleitores etc. Porém, ainda mais urgente, pelo que se demonstra, é a urgência do debate sobre nosso interesse real no reconhecimento da criança como um ser humano pleno de direitos. Na garantia ampla de direitos humanos para crianças e adolescentes: estamos falhando constantemente.
CDM
Mestre e doutora em letras pela Universidade Estadual de Santa Cruz
Necessidade do campo popular e progressista priorizar o tem e ter uma ação unificada para a eleição de conselheiros que tenham sua atuação baseada no ECA