O Holocausto soviético e a Besta nazista em “Vá e Veja” de Elem Klimov

Aleksei Kravtchenko vive o jovem camponês Floria que sobrevive aos horrores da ocupação nazista na Bielorússia soviética.

A América é um continente cuja memória da guerra é uma questão distante. Com poucas exceções, a experiência de ter sobrevivido a um conflito armado em seu próprio território é algo que retrocede aos séculos XVIII e XIX para a maioria dos que habitam hoje a região. Por esta e, certamente, outras razões, as elites culturais, em especial a de Hollywood, que trabalha em consonância com a Secretaria do Estado e o Pentágono, tem a tendência a romantizar os filmes de guerra, com a presença de heróis e heroínas, atuando como belos deuses justiceiros em suas tramas. A realidade para russos, europeus em geral e asiáticos é outra completamente diferente, em especial para as gerações que sobreviveram à invasão nazista aos seus países, durante a Segunda Guerra Mundial.

Especificamente para os profissionais do cinema, a sua abordagem do tema é outra, apresentando uma narrativa normalmente muito densa, colocando em evidência, muitas vezes, o que há de mais horrível do ser humano e de mais belo também. Talvez se os filmes nos Estados Unidos e na América em geral fossem feitos à forma da escola soviética provavelmente a propaganda incutida nas produções cinematográficas estadunidenses não fosse tão eficaz e os norte-americanos não seriam tão inclinados a apoiar a guerra. Possivelmente muito jovens que vão ao Oriente Médio defender a democracia, invadindo países distantes, pensam que matar um ser humano seja como liquidar um personagem em um jogo de videogame.

“Vá e Veja” (1985), disponibilizado em DVD no Brasil pela CPC-UMES Filmes e dirigido por Elem Klimov (1933-2003), um dos maiores nomes do cinema soviético, que foi casado com Larisa Shepitko, falecida em 1979, outra grande cineasta desta importante escola do cinema mundial, é uma obra impiedosa com o espectador; capaz de gerar naqueles que se atrevem a assisti-la um turbilhão de emoções e sensações. Aos que conseguirem chegar ao seu desfecho é possível que sintam aquele aperto no peito e um sentimento de raiva apenas explicável após “presenciar” algumas horas de tamanha crueldade e injustiça.

Esta empatia do público só é possível graças a maestria de Klimov, da fotografia e dos planos de câmera cuidadosamente escolhidos para trazer as variadas e futuras plateias ao redor do mundo, provenientes de gerações que não presenciaram tamanha catástrofe, de volta aquele contexto brutal. A mensagem é clara: “não deixem acontecer novamente”. A câmera torna-se um personagem a mais. Ela não tem rosto obviamente, porque se trata de nós, espectadores que temos a possibilidade de ter uma visão como a de nossos olhos em nosso dia-a-dia. É como se tivéssemos em nosso campo de visão, em uma viagem no tempo, em pleno ano de 1943.

Acompanhamos o adolescente Floria (Aleksei Kravtchenko), camponês de uma aldeia bielorrussa, e todos aqueles que interagem com ele. Logo podemos notar que estamos no período da invasão nazista à União Soviética e a mãe de Floria (Tatiana Shestakova) teme por toda a família, desejando que o filho não vá à guerra. No entanto, ele encontra um velho fuzil e junta-se ao movimento guerrilheiro de resistência, pois por mais que o coração da mãe de Floria deseje o contrário, o conflito e sua perversidade logo chegariam a ela e seus filhos, não há como escapar, não há outra saída a não ser resistir. Pelo caminho encontra Glasha (Olga Mironova) de quem ficará próximo, sendo ela sua nova família, assim como os guerrilheiros que o fazem companhia, mas que logo são mortos pelos nazistas.

O campo de visão que a câmera proporciona faz com que testemunhemos a selvageria da ocupação da Bielorrússia. Floria em diversos momento faz contato visual conosco, em um close-up facial frontal que nos revela a sua expressão de pavor e desespero. Podemos notar os detalhes da maquiagem muito bem construída, dando à Floria linhas de expressão que constroem um semblante de envelhecimento precoce, de consternação, de “marcas da guerra”, mesmo ele sendo um adolescente, não podendo ter mais de 15 anos.

Não é para menos, a União das Repúblicas Socialistas Soviética (URSS) foi a que mais teve perdas humanas na guerra. Dependendo da fonte que se consulta, pereceram entre 20 a 35 milhões de cidadãos soviéticos no conflito mundial. Na Bielorrússia estão 5.295 das 9.200 localidades destruídas na URSS. Mais de 600 vilas, como Khatyn, foram aniquiladas juntamente com toda a sua população. Um terço dos habitantes bielorrussos (2.230.000) foram mortos durante os anos da invasão alemã.

É por este motivo que o título do filme é uma alusão ao capítulo 6, versículos 7 e 8, do Apocalipse de S. João. A brilhante interpretação de Aleksei Kravtchenko e dos demais integrantes de um elenco primoroso torna esta experiência cinematográfica de duas horas ainda mais intensa, fazendo-nos compartilhar os sentimentos dos personagens. Kravtchenko vive com naturalidade a inocência de um adolescente camponês que almeja lutar por seu país e ser um herói, transformando-se em uma vítima despedaçada psicológica, física e espiritualmente pelos eventos que passa a testemunhar. No entanto, a violência no filme é tratada de forma bastante dosada, não sendo super exposta em passagens chaves, deixando para a imaginação do público o que deve estar acontecendo com as vítimas em determinados momentos. Algo que pode ser até mais aterrorizante.

Tal realidade também só seria possível com autores que vivenciaram a Segunda Guerra na União Soviética. Em especial, o roteirista bielorrusso Ales Adamovitch (1927-1994), doutor em filologia na Universidade da Bielorrúsia e formado em roteiro pela Universidade de Moscou, serviu como jovem mensageiro e guerrilheiro durante a ocupação nazista. Sua experiência em vida real foi a base para escrever a obra “A História de Khatin” e o roteiro de “Vá e Veja”. Posteriormente ele tornou-se membro da União dos Escritores Soviéticos e professor da Academia de Ciências de seu país. A atmosfera musical orquestrada por Oleg Yantchenko (1939-2002) – organista, compositor e maestro – utiliza-se de obras primas da música clássica para dar o tom apocalíptico às situações apresentadas.

Por fim, pode-se ainda comentar uma parte bastante simbólica do filme em que o diretor resolve fazer uso de imagens de arquivo reais, contando em uma linha cronológica histórica, que vai do fim para o início da vida de Adolf Hitler e as consequências para o mundo de sua obra infernal: o nazismo. As imagens retrocedem como um filme que vai do fim para o início. Floria, que durante todo o enredo não atira em nenhum inimigo, finalmente o faz em um quadro propagandístico do Führer.

Novamente vemos o seu rosto transtornado atirando a cada imagem real de arquivo que mostra os horrores da guerra e da ascensão de Hitler ao poder. Ao fim temos o quadro do bebê Hitler sentado no colo de sua mãe (tal foto de ambos juntos parece não ter existido, mas Klimov decidiu realizar a montagem, visando o resultado dramático para o filme). Neste momento, Floria não dispara mais. Sim, o demônio foi um dia apenas um bebê e teve mãe. Em outras palavras, qualquer um pode virar um monstro… Na captura dos nazistas pelos guerrilheiros soviéticos, um dos prisioneiros alemães (Jüri Lumiste), em sua maior sinceridade fanática, expõe o que realmente pensa: “tudo começa com as crianças…vocês não deveriam existir… nem todas as nações têm o direito ao futuro…as raças inferiores multiplicam o contágio do comunismo. Vocês não deveriam existir…”.

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Em diversos momento do filme também a frase amar e dar à luz é transmitida a Floria, em uma possível analogia ao drama que vivera a geração de soviéticos anos mais tarde (judeus, eslavos, comunistas e tantos outros considerados não humanos, ou seres de segunda classe pelos nazistas). Levando em conta que tiveram de lutar contra a tentativa de eliminação de sua existência, poderiam eles, após os horrores desta experiência, recomeçar, dar à luz a outros seres humanos, possibilitar que não entrem novamente em conflito, e, além disso, nutrir sentimentos de compaixão e perdão por aqueles que comentaram tamanha atrocidade? A história mostrou que sim, mas não sem os efeitos colaterais que tal trauma causaria a esta e as gerações seguintes.

Somado a isso, diversos elementos, que lembram ainda um pouco do toque surrealista com que Klimov incute a sua cinematografia, estão dispostos ao longo do filme e representam a vida e a morte. Por exemplo, nas cenas iniciais, uma cegonha aparece para Floria e Glasha. Ela vaga pela floresta provavelmente a procura de seus ovos que o garoto, sem intenção, pisara anteriormente e acabara matando os passáros que nem chegaram a nascer. Esta figura pode representar tanto a mãe que perde seus filhos para a guerra, quanto o renascer que está com o jovem casal e sua pureza, sua inocência. Da mesma forma que o boneco monstruoso nazista feito pelos locais representa a morte. O deboche com que os combatentes encaram a situação e seus inimigos também é uma forma de resiliência a um invasor tão feroz e que crê ser parte de uma raça superior e perfeita. Seria ainda uma ténica do diretor em fornecer momentos de alívio ao espectador em meio a tanta tensão, mas que,  no caso, foi pouco eficaz. É sabido que na época, Klimov relatou ter sido necessário chamar algumas ambulâncias para atender algumas pessoas que se viram fragilizadas perante a demonstração de tanta violência.

Seguindo a lista de outros elementos simbólicos, em outro momento, Floria com seus companheiros tenta levar a vaca de um fazendeiro para alimentar os guerrilheiros, mas seus esforços são inúteis frente ao ataque alemão cujo ódio e fanatismo acaba por desprover os habitantes locais de qualquer fonte de vida. Sim, tudo começa com as crianças… Hitler não nasceu odiando os outros ao seu redor, aprendeu a odiar. Indiretamente Klimov pede as gerações futuras que cuidem das demais sociedades que estão por vir e evitem que um novo apocalipse seja novamente instaurado. “Vá e Veja” é uma experiência cinematográfica muito difícil, por seu realismo e por conseguir sutilmente impulsionar um incômodo psicológico, mas se trata de uma provocação extremamente necessária.

Título: Vá e Veja
País: União Soviética
Direção:  Elem Klimov
Roteirista:  Ales Adamovitch
Elenco:  Aleksei Kravtchenko, Olga Mironova, Liubomiras Laucevicius
Duração: 2h22min
Lançamento: 17 de outubro de 1985
Idioma: bielorrusso, russo e alemão
Legendas: português

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por Anders Noren

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