
Um novo contexto redesenha-se na esfera internacional com o retorno de China e Rússia como impulsionadores de uma nova ordem mundial. Esta não será unicamente centrada no poder exercido até o momento pelos Estados Unidos (EUA). Em grande parte, a guerra comercial que os norte-americanos vêm travando contra o mundo atualmente está bastante relacionada com a aliança estratégica russo-chinesa. Esta última, por sua vez, em seus diferentes momentos históricos viu-se como questão central para os rumos que o mundo tomaria e para os ganhos políticos, combatendo, ou permitindo aos Estados Unidos tornarem-se uma nação líder global. Ressalta-se que país algum torna-se um líder sem a concessão dos demais para tanto.
A região da eurásia, que integra os continentes europeu e asiático, é o centro de poder que, por séculos, foi o palco para os desdobramentos da história humana. Dos antigos impérios à Guerra Fria, tudo, em grande parte, tem vínculo com esta região. Não é à toa que a Rússia e a China sempre foram, antes mesmo do socialismo chegar a estes países, “uma pedra no sapato” para o domínio europeu e de suas colônias independentes. Durante todo o século XIX, especialmente, Inglaterra e França dominaram o centro de tomada de decisões mundial, com a formação de seus impérios.
Com o desmonte do poder europeu após a Segunda Guerra Mundial, este poder total seria transferido aos estadunidenses se não fosse a chegada do socialismo na Rússia, pondo fim a política imperialista do Czar, com a “Declaração de Paz” de Vladimir Lenin, escrita anteriormente aos “14 pontos” de Woodron Wilson. Esta foi uma medida anti-imperialista que o próprio Estados Unidos não iria acatar, pois visava ampliar, na época, o seu espectro de colônias à forma mais tradicional de império, como formulado pelos europeus.
Posteriormente na China, o socialismo iria reunificar o país e expulsar os europeus de seu território e juntamente com os soviéticos formariam uma aliança central para o desenvolvimento de uma nova civilização, o chamado bloco socialista, com suas próprias regras políticas, econômicas e sociais. Com valores e regras diferentes do capitalismo, como descreve o irlandês Fred Halliday, em seu livro “Repensando as Relações Internacionais”, russos e chineses retiram esta importante região do mapa do sistema político-econômico dominante até então, não permitindo aos Estados Unidos reinar absoluto, como os europeus anteriormente assim o fizeram. Contudo, ainda que tivessem planos civilizacionais contrários dos norte-americanos, soviéticos e chineses socialistas acabaram por, junto aos EUA, dar início a um novo mundo.
Neste contexto, que surge após a Segunda Guerra mundial, o imperialismo, na sua forma mais tradicional, com o controle político e burocrático direto das metrópoles sobre suas colônias, um modelo essencialmente implementado pelos europeus ocidentais, deixou de existir. As correlações de poder ocorreriam por outras vias, ou econômicas ou ideológicas, no ponto de vista da persuasão de convencer os países subalternos de que deveriam seguir aquele país X e estar sob sua liderança. Para tanto, milhares de ferramentas foram desenvolvidas, entre elas, os “aparatos culturais” indiretamente e sutilmente eficazes na prática da dominação.
Este foi o embate central de toda a Guerra Fria. Hoje ele retorna, à medida que o mundo é novamente tragado para uma competição mais ou menos nestes mesmos termos, em uma queda de braço entre estadunidenses versus chineses-russos. Estes últimos tiveram sua antiga aliança ameaçada em um grande jogo estratégico dos Estados Unidos, que obtém, da própria divisão política interna existente entre os soviéticos, chances únicas para incitar a divisão do bloco socialista. Com a morte de Iosif Stalin, russos e chineses acabaram por distanciarem-se a ponto de trazerem de volta antigas contentas de fronteiras e quase iniciarem um conflito em 1962, que iria tomar proporções mais preocupantes em 1969. Essas questões foram resolvidas em 1991, com o acordo de fronteira sino-soviético. Em 1972, os Estados Unidos reatam relações com a China, dando continuidade aos planos de afastar as principais lideranças socialistas.

Contudo, a visão bastante imediatista ocidental não perceberia que ao longo dos anos, na realidade, atuaria em prol da estratégia liderada por Deng Xiaoping, para desenvolver a economia chinesa. Inicialmente com as Zonas Econômicas Especiais, regiões definidas pelo Estado chinês que impulsionariam o desenvolvimento do litoral para o interior do país. Um plano de desenvolvimento econômico que Deng denominou a economia de mercado socialista, aos moldes chineses. Algo muito parecido com a antiga Nova Política Econômica Soviética, lançada no início do século XX, que promovia características de mercado dentro de uma economia politicamente liderada por ideais socialistas.
Prevendo que o capital não tem nação, logo as grandes fábricas e indústrias norte-americanas foram transferindo-se para o país da Ásia, provocando um problema estrutural na economia estadunidense, que logo se viu com várias regiões abandonadas e altos índices de desemprego. Ao mesmo tempo, os chineses compram grande parte da dívida pública americana, alcançando a quantia, convertida, de R$ 3,3 trilhões de reais, segundo a agência de notícias estatal chinesa Xinhua. Atualmente a dívida pública norte-americana chega ao equivalente a R$ 66 trilhões de reais, de acordo com o Federal Reserve System (FED). Tal situação expõe a alta financeirização econômica do mercado americano, que se torna cada vez mais depende de um setor econômico bastante volátil e improdutivo, controlado por bancos, financeiras e bolsas de valores.
A guerra comercial e o império na berlinda
Ao promover uma crise estrutural contra a sua própria economia, transferindo suas indústrias para o exterior, restou aos Estados Unidos uma medida mais radical que, na realidade, demonstra seus pontos mais fracos. Isso resulta, indiretamente, em auxílio dos estadunidenses aos planos de China e Rússia na construção da Nova Rota da Seda, uma rota comercial que interliga países asiáticos, europeus, africanos, podendo chegar à América do Sul. Ela também fortalece a integração da Ásia Central ao mercado russo, assim como a Europa do Leste e países chave como a Alemanha, na Europa Ocidental.
Faz parte da estratégia russo-chinesa promover a derrocada do dólar, como principal moeda de reserva internacional. As diversas sanções econômicas e medidas, como a imposição de taxas às importações norte-americanas, estimulam que os países procurem novas alternativas de parcerias comerciais. Este é um quadro perfeito para os chineses e russos impulsionarem o comércio a ser realizado em suas moedas nacionais. A Rússia prevendo uma crise financeira global investe na compra de ouro, fator principal para tornar, em um futuro a muito longo prazo, o rublo moeda de reserva.
Em julho deste ano, o site russo Sputnik informou que o Banco Central do país lançou uma campanha pela “desdolarização” frente às ameaças dos EUA por mais sanções econômicas e a adoção de restrição à dívida soberana russa. O que significa que o Estado russo escolheu outros ativos em substituição ao dólar estadunidense. Até o momento, os títulos do tesouro dos EUA (papeis da dívida pública) e o dólar são considerados os ativos mais líquidos, ou seja, que se pode vender de forma rápida, sem muita perda de valor.
No entanto, como em todo o processo de inflação nacional, a alta emissão da moeda norte-americana na mercado internacional pode levar ao desastre. Atualmente, o volume da dívida global é o equivalente a R$ 925 trilhões, ou 318% do PIB mundial, segundo o Sputnik. O ouro, ao contrário do dólar, não pode desvalorizar-se bruscamente, o que o torna uma fonte segura de reserva. Segundo a agência de notícias, as reservas de ouro da Rússia atingiram quase 2.000 toneladas. “Durante os primeiros seis meses de 2018, o Banco Central russo comprou cerca de 106 toneladas do metal precioso, aumentando a quota de ouro nas reservas internacionais até 18%”. Já os chineses chegaram a 12.100 toneladas de ouro, de acordo com a Xinhua e novas aquisições devem ser feitas ao longo do tempo.

Ironicamente a guerra comercial dos EUA também vai impactar negativamente em todas as empresas estadunidenses que atuam no mercado global. Desta forma, as medidas de Donald Trump apenas são os sinais mais claros de uma falência total do sistema liderado pelos Estados Unidos. Tantos europeus, quanto africanos começam a questionar as decisões políticas dos EUA, buscando uma aproximação com a Rússia no campo militar, como foi o caso da longa conversa entre Angela Merkel e Vladimir Putin, em recente viagem do presidente russo à Europa. E a Cúpula de Pequim 2018, no Fórum de Cooperação China-África, em que todos os chefes de estado deste continente compareceram.

Da mesma forma, os grandes empresários alemães começam a verem-se limitados com as sanções econômicas à Rússia, já que o país, assim como a China e outras nações da Ásia são mercados potenciais para investimentos alemães, em especial com a formação da Nova Rota da Seda e a chamada União Euroasiática. Esta última é uma iniciativa impulsionada por Putin já há alguns anos, que prevê a linha Berlim, Moscou e Pequim como um centro econômico competitivo a ser desenvolvido. O próprio Emmanuel Macron, presidente francês, um potencial aliado de Trump, começa a salientar a importância do continente europeu de buscar independência da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), entidade militar liderada pelos EUA e que consolida o poder econômico e político norte-americano sobre a Europa.

A saída para os estadunidenses seria trabalhar em cooperação com chineses e russos; voltar a incentivar o seu setor produtivo interno, compreender e aceitar que passam a ser um dos vários polos de poder existentes na economia global. A dúvida maior é se as forças internas mais progressistas dos Estados Unidos poderão ter a visão clara e conduzir o mundo a uma transição multipolar pacífica, ou se o mundo vai mergulhar em um caos econômico futuro que pode resultar em outros desastres imagináveis.

Por fim, a máxima histórica faz-se mais uma vez presente: não há império que resista para sempre, pois ao longos dos anos, a população global lutará contra ele, leve o tempo que precisar. Aos que consideram a China uma possível ameaça, é bom lembrar as palavras sábias do líder socialista Deng Xiaoping, durante seu discurso nas Nações Unidas, em 1974: “se um dia a China trocar a sua cor e transformar-se em uma superpotência; se ela também assumir o papel de tirana no mundo, e em toda a parte submetê-lo ao seu bullying, agressão e exploração, a população mundial deve identificá-la então como um imperialismo social, expô-la, opor-se a ela e trabalhar em conjunto com o povo chinês para derrubá-la”.
Fonte: texto originalmente publicado no site do Tribuna da Imprenssa Sindical
Link direto: http://www.tribunadaimprensasindical.com/p/internacionais.html
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