“Em Chamas”: um retrato das angústias e do pesar juvenil neste início de século XXI

Crédito: AdoroCinema.

Muito já foi dito e escrito sobre o filme “Em Chamas” (2018), dirigido por Chang dong-Lee. A produção ganhou os prêmios da Crítica e Especial do Júri no Festival de Cannes deste ano e foi indicada pela Coreia do Sul para representar o país no Oscar. Distribuído no Brasil pela Pandora Filmes, a obra ainda está disponível para ser apreciada pelo público em algumas capitais do Brasil. Talvez este seja o primeiro filme sul-coreano que caiu nas graças da mídia brasileira em geral, depois de “Old Boy”(2005) de Park Chan-wook, e há diversos motivos para tanto.

Um deles é a antiga questão que o grande escritor russo Leon Tolstoi, o criador do clássico da literatura russa e universal “Guerra e Paz”, uma vez salientou: “se queres ser universal, começa por pintar a tua aldeia”. Pois, foi exatamente isso que acabou por ocorrer com “Em Chamas”. Ao abordar questões referentes à sociedade coreana, Chang dong-Lee conseguiu atingir uma universalidade ao “construir” um retrato que expõe a soma de várias problemáticas da juventude deste início de século XXI. Temas que estão intrinsecamente vinculados ao quadro político, econômico e social turbulento atual. Outros dois grandes nomes da literatura mundial foram utilizados como base para a construção da narrativa de “Em Chamas”: “Queimar Celeiros”, conto do japonês Haruki Murakami e o conto de mesmo nome do norte-americano William Faulkner.

Crédito: AdoroCinema.

Eis dois trechos que reuni aqui e resumem a fala do diretor em entrevista por e-mail ao jornal Estado de São Paulo.

“A razão pela qual decidi fazer este filme foi pela sua história sobre a raiva da juventude. O texto de Murakami é sobre um homem que queima um celeiro como hobby, já em Faulkner temos a história de um agricultor pobre e seu filho pequeno que colocam fogo no celeiro de outro por raiva. Se o celeiro de Faulkner é objeto de raiva que causa dor da vida, o celeiro de Murakami parece que não é um objeto real, mas um produto da imaginação, ou uma metáfora. Os dois escritores estão em lados opostos no modo de contar histórias. Apesar de “Em Chamas” basear-se no conto de Murakami, está também ligado ao mundo de Faulkner, cheio de dor, raiva e culpa da realidade. Em outras palavras, poderia dizer que se trata da história de um jovem Faulkner que vive no mundo de Murakami. O mundo parece hoje cada vez mais abundante, sofisticado e conveniente, do ponto de vista material. Entretanto, a desigualdade econômica está pior do que no passado. Só que, como tudo isso está meio escondido, parece que não temos problemas. A desigualdade está se tornando cada vez mais sofisticada. Não se trata apenas da sociedade coreana, é um problema mundial”

Da esquerda para a direita o produtor Joon-dong Lee, os atores Steven Yeun, Jong-seo Jeon, Ah-In Yoo, e o diretor Chang-dong Lee comparecem ao Festival de Cannes para a exibição de “Em Chamas”. Crédito: IMDb.

O enredo fala sobre o encontro de Lee Jong-su (Ah-In Yoo) com Shin Hae-mi (Jong-seo Jeon), uma garota que morava em sua vizinhança. Aos poucos eles estabelecem uma relação bastante próxima e íntima. Ao viajar para a África, ela pede para ele vigiar seu gato. Ao retornar de viagem, ela o apresenta a Ben (Steven Yeun), um homem que conheceu na viagem. Uma espécie de triangulo amoroso inicia-se entre os três, além de uma implícita tensão entre Ben e Lee Jong-su que dá o tom de suspense e thriller para a linha narrativa ao longo da estória.

As interpretações e as reflexões sobre a obra são as mais diversas possíveis. Há quem até tenha tentado colocar o conflito entre Coreia do Sul e Norte como foco da narrativa. Apesar dos críticos de cinema e jornalistas em geral sempre tentarem conduzir o público a sua visão e interpretação da obra, saiba que uma das qualidades de “Em Chamas” é justamente a miscelânea de temas e a ambiguidade que torna possível diversos olhares sobre o enredo.

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Na opinião da autora deste texto, a colocação sobre a divisão entre Sul e Norte da península coreana só pode ser levada em conta se fizermos uma análise mais profunda e ampla sobre o conflito social que nos atinge desde sempre como humanidade: a luta entre os poderosos e os dominados, entre o forte e o fraco, entre o patrão e o empregado e etc. E, para quem tem um pouco de conhecimento histórico, não é difícil compreender que o Norte e o Sul da península apresentam propostas de sistemas políticos, econômicos, sociais e civilizacionais que são também o quadro da disputa ideológica, caracteristicamente iniciada na Guerra Fria, mas que continua em voga e talvez mais conflitante ainda atualmente.

Um sistema econômico é muito mais que apenas um conjunto de medidas econômicas, ele possui uma base política e de valores sociais que estrutura as relações de poder e sociais entre as pessoas. Portanto, um mundo governado pela lógica da produção e exploração cruel e desenfreada do trabalho é uma realidade pouco humana que promove competições nada saudáveis, criando um sentimento de mal-estar e constante descontentamento e raiva da vida, em especial entre os indivíduos mais sensíveis. O personagem magistralmente interpretado por Ah-In Yoo, é uma clara imagem do jovem solitário, pertencente ao grupo daqueles que mais são pressionados por um sistema excludente, que almeja viver uma realidade de escritor, mas o contexto o impede a tal.

Foto: IMDb.

Do outro lado, temos o seu rival, vivido pelo talentosíssimo Steven Yeun, que é a representação daqueles que misteriosamente possuem muito, com pouco esforço e tem a inclinação a abocanhar, a possuir, tudo aquilo que o desejo os incitar a ter,. A extremamente sensível garota incorporada pela fantástica Jong-seo Jeon é a figura que transita neste dois mundos e encontra-se exprimida nesta guerra implícita, violenta e silenciosa que se vive todos os dias na Coreia e no mundo. E talvez por isso, surja o seu sentimento de tristeza e a sua vontade de querer simplesmente desaparecer, ainda que tema a morte.

Por fim, através deste filme, é possível mais uma vez perceber que a Coreia do Sul é, em si, um país dividido, sendo esta uma verdade dolorida, muitas vezes convenientemente velada. Afinal, ela é sempre considerada o exemplo bem-sucedido do capitalismo por diversos “mestres” e “sabichões” da economia mundial. Porém, a sétima arte sul-coreana, nos últimos tempos, tem feito questão de salientar e questionar esta visão simplista das coisas. É bastante interessante perceber que, ao menos em seus filmes, há uma constante abordagem do debate antigo que se faz internacionalmente sobre as desigualdades sociais, sobre a exploração cruel dos mais desprovidos, sobre a perversão e violência existente no comportamento e atuação da elite econômica sul-coreana.

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Por isso, este constante mal-estar de uma sociedade que pode não portar armas, mas que faz o estilo passivo-agressivo, podendo ser também explicitamente violenta com os mais jovens e mais fracos. A Coreia do Sul, ao contrário do que se pensa, vive um conflito silencioso e difícil de compreender, que na realidade trata-se de uma guerra centenária e mundial do homem contra ele mesmo.

Fonte: Texto originalmente publicado no site do Koreapost
Link direto: http://www.koreapost.com.br/colunas/cine-coreia/em-chamas-um-retrato-das-angustias-e-pesar-juvenil-neste-inicio-de-seculo-xxi/

Título: Em Chamas
Título em coreano: 버닝 (Beoning)
País: Coreia do Sul
Direção: Lee Chang-Dong
Roteiristas:  Haruki Murakami (conto), Lee Chang-Dong, Oh Jung-Mi
Elenco: Ah-In Yoo, Steven Yeun, Jong-seo Jeon
Duração: 2h28min
Lançamento: 9 de novembro de 2018
Idioma: coreano
Legendas: português

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por Anders Noren

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