Coletes Amarelos: ebulição na França e apreensão em Bruxelas

Em protestos, coletes amarelos seguram faixa com o dizer “A França não está à venda”. Crédito: Jornal I – Sapo.

Desde 1789, a França em um eterno ciclo de revoluções e instabilidades, configurou-se como a maior falha sísmica dos países da Europa ocidental. No ano de 1848, isto é, quando a Europa sofreu o terremoto causado pela Primavera dos Povos, o intelectual e político liberal francês Alexis Tocqueville, em uma sessão parlamentar, referiu-se ao cenário pré-revolucionário na França como uma espécie de vulcão prestes a explodir. Embora dadas as devidas proporções históricas, e as diferenças com o expoente do liberalismo francês, a alusão pode ser feita hoje ao movimento iniciado pelos Coletes Amarelos.

Os Coletes Amarelos diferente de outros movimentos políticos de contestação das últimas décadas na França, mostram-se um movimento pouco definido ideologicamente, porém extremamente organizado. Para além de renovar o que se pode denominar de cultura política, representa também a decadência da atual ordem institucional e política francesa, a partir da palavra de ordem “Renuncia Macron’’, que representa o maior conchavo político de ’’salvação’’ do neoliberalismo capitaneado por Bruxelas e da Quinta República Francesa– a Primeira República foi entre 1792-1804, a Segunda República entre 1848 e 1852, a Terceira República entre 1871-1940 e a Quarta República entre 1946-1958.

“República Francesa – Combate do povo parisiense nos dias 22, 23 e 24 de fevereiro de 1848”. Crédito: britannica.

Um processo que não é possível entender apenas recorrendo ao presente das últimas eleições, e muito menos como se tem feito, inserir apenas na própria conjuntura internacional a culpa, onde Rússia, ou Estados Unidos estariam protagonizando uma disputa ideológica e política. Um recuo na história da Quinta República e a análise de suas bases de forma breve faz-se necessária, pois para além de uma revolta contra as medidas neoliberais, assiste-se na França o colapso da ordem eurocomunista-gaullista e consigo a decadência da República fundada em 1958, isto é, há seis décadas exatas.

Neste período, em plena Guerra Fria, a França estava às portas de uma guerra civil e o império colonial sendo despedaçado. A Indochina e a Argélia estavam em guerra de independência. Esta crise forçou uma mudança rápida de governo com a volta a política de Charles De Gaulle, em maio de 1958, por meio de uma manobra parlamentar golpista, estando as forças armadas francesas em pé de guerra. Neste mesmo ano, nascia a Constituição de 1958– praticamente outorgada- que fortalecia o poder executivo, visando a manutenção do controle sobre o império colonial e da própria metrópole que passava, internamente, por um turbilhão político.

Charles de Gaulle na campanha presidencial francesa de 1958. Para ver o vídeo de imagens históricas clique na foto. Crédito: http://footage.framepool.com

Charles De Gaulle em posição de herói de guerra tornou-se mais um Napoleão na história francesa, que impediu a ascensão dos comunistas franceses frente aos distúrbios políticos da década de 1950, e impôs um regime autoritário que duraria uma década com o objetivo de manter intacto o império colonial na Argélia e na Indochina, e a ordem dentro da própria metrópole. Um dos motivos pelos quais Maio de 1968 ocorreu na França foi o governo autoritário de Charles De Gaulle, algo constantemente desassociado de forma propositalmente politica.

Protesto na França em Maio de 1958 durante a crise política iniciada na Guerra da Argélia. Crédito: http://thewriter.in

As guerras coloniais no Vietnã e na Argélia desgastaram o governo gaullista. Sua manutenção no poder a altos custos rendeu-lhe a renuncia em 1969. Mesmo assim, seus sucessores garantiram a continuidade da política liberal pró-EUA ao longo da Guerra Fria, e mantiveram sua política conservadora. Georges Pompidou e Valery D’Estaing ao perpetuarem por mais tempo a politica do general francês, durante toda a década de 1970, passam ainda a agruparem-se em torno do Partido de Reagrupamento da República, presidido pelo ex-socialista Jacques Chirac, criando um bloco de aliança com a esquerda francesa que perdura até os dias atuais.

As eleições de François Miterrand em 1981 e Jacques Chirac em 1995 solidificam este pacto que transforma a estrutura política francesa em uma espécie de bipartidarismo. O Partido Socialista, cuja sua orientação tem base no trotskysmo, e o Partido de Reagrupamento da República, cuja orientação é no gaullismo, dão início a uma nova era de estabilidade política, porém cheia de contradições. Este grande acordo não somente minou a ação do Partido Comunista Francês, constantemente associado ao stalinismo, como impossibilitou que os setores mais fascistas da França ganhassem força ao longo da década de 1990.

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Entretanto, as conturbadas presidências de Nicolas Sarkozy (2007-2012), representando o gaullismo- envolvido em guerras coloniais na África Ocidental e na Líbia- e de François Holland (2012-2017), representando os socialistas – envolvido igualmente nas guerras coloniais, terrorismo e medidas neoliberais-, desgastam ambas as forças políticas que perdem respaldo eleitoral, político e social. O que possibilita a ascensão de Marine Le Pen ao longo dos anos de 2015 à 2017, com uma retórica antissistema e anti imigratória, principalmente em razão do terrorismo.

Neste período, os desgastados gaullistas, envoltos do partido União Por um Movimento Popular desde o governo Sarkozy, buscam uma nova imagem em torno da fundação de um novo partido: os Republicanos. Porém, tensionados, acabaram rachando assim como o Partido Socialista tendente ao neoliberalismo. Os rachas de ambos os partidos formaram então uma nova sigla com a face clara de Partido da Ordem que daria prosseguimento as medidas neoliberais, já em ação no governo Holland. Eis então que nasce o Le Republique en Marché, e a figura de renovação torna-se Emmanuel Macron, ex-ministro da economia de François Holland, e responsável pelas políticas austeras de seu governo.

O Le Republique en Marché era na prática a fusão do gaullismo inclinado ao neoliberalismo, com os socialistas que aderem à agenda neoliberal imposta pela União Europeia. Este partido hoje é esmagadoramente o maior na Assembleia Nacional da França, entretanto a alto custo, pois nas eleições presidenciais, ficou provado que não somente a agenda neoliberal era impopular, mas que tanto os socialistas, quanto os gaullistas perderam a força política que os movia nas últimas quatro décadas. O candidato do Partido da Ordem, travestido de novidade, Emmanuel Macron ganhou o primeiro turno das eleições com uma diferença de apenas 5% para o quarto posicionado, um comunista, inclusive solidário à Venezuela, Jean-Luc Mélenchon, candidato da coligação França Insubmissa. Uma eleição marcada pela polarização, insatisfação e fragmentação das forças políticas francesas desde o último dia do segundo turno.

Jean-Luc Mélenchon. Crédito: Al Jazeera.

A vitória de Macron foi apenas eleitoral. Politicamente, a derrota inicial foi silenciosa, pois mesmo que os números sejam esmagadores contra Marine Le Pen, no segundo turno das eleições, isso era muito mais fruto de cabos eleitorais fora do base do Le Republique en Marché do que a aceitação do projeto apresentado pelo jovem presidente francês. A agenda neoliberal, com as reformas na educação e saúde levadas a cabo pelo mais novo Partido da Ordem contou com amplas mobilizações de oposição de grupos estudantis e sindicalizados franceses. Ainda que tenham conseguido paralisar a privatização das ferrovias na França, as derrotas eram muito maiores do que as vitórias. Isto até o aparecimento dos Coletes Amarelos.

Repressão policial a manifestação na França em maio de 2017 após a posse presidencial de Emmanuel Macron. Crédito: Russia Today.

A fragmentação política causada hoje pelo sistema capitalista nas formas de trabalho e mesmo nas funções impede que trabalhadores e trabalhadoras identifiquem-se enquanto categorias. isso aparece claramente no fenômeno da uberização e a terceirização que vem sendo imposta de forma selvagem em vários países. Os coletes amarelos são uma peça de uso de segurança imposta por lei aos motoristas, o que tornou sua difusão bastante alta. Não é por acaso, a sua escolha para a identificação do grupo enquanto tal e suas pautas de sobrevivência do povo francês em geral: baixa da taxa de gasolina, aumento do salário mínimo, defesa da saúde e educação públicas, dentre outros.

Importante salientar que o aumento da gasolina anunciado pelo governo francês afetava diversas famílias pobres, pois o aumento do preço da energia em pleno inverno, reverbera nos alimentos e afeta diretamente a grande parte da população. Isso se dá também devido ainda a uma crise existente no mercado energético, a partir da guerra comercial existente entre Europa e Rússia há quatro anos, e que leva a alteração constante dos preços do gás e da gasolina. No entanto, o estopim não foi somente isso. O governo francês havia vendido recentemente, isto é, a poucos meses, a empresa Alstom, uma das principais responsáveis pelo fornecimento de energia, transporte e infraestrutura na França. Curiosamente a empresa francesa foi comprada pela estadunirense General Eletric que pretendia controlar o fornecimento de energia no país para competir com a empresa russa Gazprom e a própria alemã Siemens.

Sobre a privatização da Alstom, a deputada Clémentine Autain questiona o atual Ministro da Economia e Finanças Bruno Le Maire.

Este fato fulmina completamente a posição de Macron, expondo-o enquanto um vendido e presidente dos ricos. Este foi mais um dos fatos que contribuiram na transformação dos Campos Elísios em um enorme campo de batalha. Em um lado se posicionam cidadãos franceses pedindo a revogação de medidas neoliberais e a saída de Macron do poder, visto como o presidente dos ricos. Enquanto que do outro está um jovem presidente medroso que se escondeu atrás de sua fortaleza a semelhança de um certo Luís XVI acreditando que o tempo era o melhor remédio para evitar a convulsão.

Fortalecidos dia a dia, e tendo ao seu lado cada vez mais apoio do restante da França, os Coletes Amarelos conseguiram reunir em torno de si a opinião popular, mas não a pública midiática e das demais partes da Europa. Muitos governos passaram a ver este movimento com ceticismo. Desnorteada, a mídia ocidental buscava estabelecer uma narrativa para explicar o que ocorria, e se de um lado havia quem culpasse Donald Trump e buscasse colocar este movimento no mesmo palmo da Euromaidan, ocorrida na Ucrânia em fevereiro de 2014, havia quem quisesse acusar o Kremlin, sede do governo russo, de usar diversificadores para desestabilizar a ’’democracia liberal francesa’’.

Macron em discurso na TV em 11 de dezembro. Crédito: LUDOVIC MARIN / POOL / AFP.

Entretanto, neste meio tempo, os Coletes Amarelos arrancaram de Macron tanto o cancelamento do aumento das taxas de gasolina, como também o incremento do salário mínimo na França. Porém, isso não era suficiente, pois Macron ainda está nos Campos Elísios, e a batalha continua, aliás, se expande para além das fronteiras francesas e denota um movimento cada vez mais continental. A Bélgica e a Alemanha viram semelhantes movimentações, embora com menor envergadura e tenacidade que em Paris. Na Grã Bretanha, há poucos dias, pessoas com coletes amarelos foram as ruas pedir a continuidade do processo do BREXIT, visto pelos britânicos como a superação das medidas de austeridade impostas por Bruxelas.

A realidade é que os Coletes Amarelos puxaram um detonador há muito tempo sob pressão não somente na França, como em toda a Europa, onde as medidas neoliberais são o principal alvo da contestação de Bucareste à Lisboa. O caso francês é o mais grave, pois sem base política para governar e paulatinamente sendo abandonado pelos aliados, Macron, que outrora era a renovação social-gaullista e a ’’salvação’’ da União Europeia, agora é um rotundo fracasso que fragmenta ainda mais o cenário político na França, tornando-se um peso morto em um barco ancorado no meio do oceano dentro de uma tempestade.

“Protestos contra Emmanuel Macron levaram Paris a um impasse”. Crédito: The Guardian.

O que leva a apreensão da elite política dominante na Europa, não apenas em consequência de um BREXIT francês, mas por uma nova onda de protestos no continente de caráter contra hegemônico, à semelhança da Primavera dos Povos, ocorrida em 1848, ou algo semelhante ao que aconteceu ao fim da Primeira Guerra Mundial, quando a Europa tornou-se um estado policialesco, contrarrevolucionário para paralisar as convulsões revolucionárias no continente e fora dele. Ideologicamente os Coletes Amarelos carecem ainda de um norte, porém suas pautas abrem possibilidades diversas para o futuro da Europa, em um momento de polarização política onde são indicadas mudança radicais.

Para muitos é irresistível a comparação desses eventos com o que ocorreu no Brasil em 2013, seja para caracterizar a espontaneidade do movimento, ou para refletir sobre isso enquanto um desdobramento do crescimento da onda fascista a nível mundial em terras de uma ’’sólida democracia’’. Entretanto, a coincidência é pouca, as causas parecidas e os resultados podem ser diferentes, pois no Brasil para além de uma manifestação popular acenando por mais direitos como saúde, educação e transporte, 2013 também foi um ponto de inflexão na Guerra Híbrida dos Estados Unidos contra os países do BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul), exatamente logo após a divulgação das informações sobre a espionagem estadunidense por parte do agente da Agencia Nacional de Segurança (NSA), Edward Snowden. Embora também demarcasse o início da decadência do petismo e da própria Nova República (1988-2016).

Porém, isso não significa que a França não seja um campo de batalha da Guerra Híbrida estadunidense, mas a posição desta enquanto um país capitalista central suscita no mínimo uma dúvida quanto à participação de elementos externos na desestabilização do governo Macron. É importante lembrar que o alarde de ingerência russa nos países ocidentais vem sendo uma bandeira levantada desde 2016, quando Trump ganha a Casa Branca. Este acontecimento é usado como desculpa para consolidar a perseguição de uma política claramente contra a Rússia a nível mundial, iniciada ainda durante o governo de Barack Obama em 2012.

Quanto à Euromaidan, que desde o início teve claros vernizes fascistas e anticomunistas, este movimento possui uma pluralidade que se aproxima muito mais do movimento ocorrido no Brasil. Esta manifestação está sob ferrenha disputa política, os setores fascistas organizados da sociedade francesa, que historicamente nunca conseguiram chegar ao poder legalmente- exceto quando foram ajudadas pelos nazistas- tentam disputar este movimento, assim como as forças comunistas. O cenário que vislumbra a saída das forças políticas que comandam hoje a União Europeia do poder é o que mais assusta Bruxelas, pois significa não somente o fim desta organização, mas a volta da Europa a mesma posição que possuía no início do século XX, onde suas elites engalfinharam-se  pelo espólio do mundo com o risco de perder seu império mergulhado em revoluções, nas metrópoles e nas colônias.

Documentário “As máscaras da revolução”, produzido pela TV francesa Canal + e dirigido por Paul Moreira, faz uma investigação sobre o caráter fascista da Euromaidan em Kiev, na Ucrânia. A produção incitou protestos dos diplomatas ucranianos. 

A decadência da União Europeia e suas instituições políticas devido ao desgaste causado pelas medidas neoliberais é uma das questões responsáveis diretas por essa situação de fragmentação política na França. Tanto os gaullistas, quanto os socialistas não possuem resposta para este movimento. A própria reação com a taxação de fascista é algo novo no cenário europeu, pois nenhuma das atuais lideranças fascistas, ditas de extrema direita pela mídia ocidental, foi assim denominada até hoje na Europa.

Isso denota uma terrível ameaça a estes grupos dominantes. O perigo às elites é proveniente deste movimento que cresce a cada semana na própria Europa, devido a problemas semelhantes aos da maior falha sísmica do capitalismo central no continente, a França. A decadência do gaullismo neste cenário é devastadora, pois esta força política que sustenta a atual Quinta República desde 1958 sempre foi um dos mais importantes braços para a manutenção da ideia de uma cooperação na Europa ocidental entre França e Alemanha, pilares centrais da União Europeia, o que possibilitou, historicamente, o controle das forças comunistas e fascistas.

“A França de baixo contra a França de cima”, protesto dos Coletes Amarelos franceses. Crédito: open Democracy.

Entretanto, para além disso, a apreensão de Bruxelas também é pelas consequências deste movimento que já começam a aparecer na sua expansão pelo resto da Europa. Aqui podemos voltar a questão inicial suscitada pela afirmação de Tocqueville e indagar, o velho continente estaria hoje novamente sobre um vulcão que volta a estar em atividade após décadas de sonolência? Este tipo de pergunta hoje não custa, especialmente no aniversário de 170 anos da Primavera dos Povos, a maior onda revolucionária européia do século XIX.

Recomendações bibliográficas:

DARAKTCHIEV, Ivan. Macron’s free fall. Publicado no site Strategic Culture em 13 de dezembro de 2018. Disponível no link: https://www.strategic-culture.org/news/2018/12/13/emmanuel-macron-free-fall.html.

JOHNSTONE, Diana. Yellow Vests Rise Against Neo-Liberal ‘King’ Macron. Publicado no site Consortium News em 5 de dezembro de 2018. Disponível no link: https://consortiumnews.com/2018/12/05/yellow-vests-rise-against-neo-liberal-king-macron/.

RICHMOND, Nathan. Live from France: Why the Fifth Republic May Collapse. Publicado no site Utica College Center of Public Affairs and Election Research em 23 de fevereiro de 2017. Disponíel no link: https://www.ucpublicaffairs.com/home/2017/2/23/election-analysis-from-france-why-the-fifth-republic-may-collapse-by-nathan-richmond.

ZARETSKY, Robert. The Last Days of Charles De Gaulle. Publicado no site Foreign Policy em 17 de abril de 2017. Disponível no link: https://foreignpolicy.com/2017/04/17/the-last-days-of-charles-de-gaulle-fillon-republicains-france-elections/.

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por Anders Noren

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