
Barricadas, lixos em chamas no meio das ruas, quebra de lojas e grandes protestos acompanhados de repressão policial e militar nas ruas. Uma cena que para a mídia comum seria a descrição da Venezuela, contudo diferente do propagado, ocorre diariamente no Haiti nas últimas semanas em que explodiu uma verdadeira revolta popular que até o momento encontrou pouco eco na mídia em geral. Isso é compreensível, na medida do entendimento de que historicamente o Haiti é caracterizado por golpes de Estado e ditaduras apoiadas pelos países imperialistas, tendo constantemente apagada suas pulsões revolucionárias.
A tradição revolucionária de longa data do país torna este em uma espécie de ’’doença’’ passada a ser esquecida por ter simbolizado uma importante luta anticolonial que ainda está na agenda mundial. O país foi o primeiro da América Latina a conquistar independência e a única rebelião antiescravista caribenha vitoriosa. No início do século XX, o país foi invadido pelos Estados Unidos. O linchamento do presidente Jean Vilbrum, submisso aos estadunidenses pelo repasse das riquezas do país em razão de dívidas, gerou instabilidade e uma guerra civil que, entre intervalos, duraria até 1946, ano que um governo de esquerda chega ao poder. O Caribe é uma parte instável do ocidente historicamente, neste ocorreu às primeiras revoluções antiescravistas, iniciou-se o processo de independência da América Espanhola e a primeira bem-sucedida revolução socialista no ocidente, Cuba.

A crise atual não tem início com o terremoto de 2010 como apontam alguns no meio midiático. Desde o século XIX, o Haiti foi invadido pelos Estados Unidos várias vezes, mas no fim da década de 1980, após três décadas da ditadura da família Duvalier– apoiada no comércio de drogas e com suporte dos governos estadunidenses-, uma revolta popular derruba a ditadura e abre a esperança da democratização do país. Contudo, a eleição de um candidato nacionalista, o ex-padre católico adepto da teologia da libertação Jean Bertrand Aristide, desagrada aos EUA que participam de um novo golpe de Estado liderado pelos militares com ativa participação da Central Inteligence Agency (CIA)- após alguns meses de governo.
Entretanto, como outros militares caribenhos de seu período, o general golpista Raoul Cedras era ligado ao narcotráfico, o que acendia a atenção estadunidense, aqueles dias eram os da guerra às drogas, Pablo Escobar era caçado na Colômbia e Manuel Noriega foi capturado no Panamá. O presidente dos EUA, Bill Clinton ameaça o general haitiano sob as mesmas condições que o ditador panamenho e leva a cabo a Operação Defender a Democracia que força a renuncia do general haitiano e traz de volta a ’’normalidade constitucional’’, com o retorno do exílio de Aristide que ’’termina’’ o mandato- pois não era tão autônomo devido a missão de paz no país- e se mantem na oposição até ser novamente eleito em 2001.
Eleito a contragosto de outro membro da família Bush, Aristide foi novamente ameaçado pelos narcotraficantes e houve uma terrível escalada de violência com o assassinato de lideranças políticas no país ligado ao partido, onde a situação se torna insustentável no início de 2004. Após desentendimentos em relação ao processo eleitoral parlamentar ameaçado pelos grupos paramilitares, Bertrand governava por decretos devido à expiração dos mandatos parlamentares, o que levou a grupos opositores a se somarem as intenções golpistas de grupos milicianos sediados na Republica Dominicana ligados ao narcotráfico.
Desde a desmobilização das forças armadas haitianas em 1995 e a saída da Missão das Nações Unidas no Haiti, comandada pelo governo de Bill Clinton no ano 2000, o país estava instável e sem condições de reestabelecer as forças armadas dissolvidas, onde muitos militares haviam integrado o narcotráfico da República Dominicana, conhecida por sediar uma importante rota de comércio de drogas vinda da América Latina, próxima da Europa e da América do Norte. Para os paramilitares narcotraficantes, o controle do Haiti era hegemonizar a rota caribenha sob a benção estadunidense.



Em fevereiro de 2004, a situação tornou-se insustentável e o golpe veio a partir da entrada dos grupos armados no país, tomando as regiões do interior e rumando para a capital Porto Príncipe. Logo após a fuga de Bertrand, Boniface Alexandre, então juiz presidente da Suprema Corte assumiu o cargo após a renuncia do então presidente. Este jurista era da família do ex-primeiro ministro Martial Celestin (1988), e era uma pessoa de confiança de Washington, fortemente ligado a família Bush. Contudo, mais uma vez como anteriormente, na primeira eleição um governo de esquerda seguiu-se a junta provisória, onde René Preval passou a aproximar-se cada vez mais da Venezuela, onde Hugo Chavez oferecia uma política de cooperação com o país.

O líder venezuelano visita o país em 2007, período que foi assinado um acordo entre o Haiti e a Petrocaribe– empresa petrolífera venezuelana que fornece petróleo subsidiado para aos países do Caribe- garantindo ao país segurança no fornecimento de energia, por meio da venda de barris de petróleo a preços subsidiados. Nesta mesma visita, Chavez faz duras críticas a missão das Nações Unidas capitaneada pelo Brasil, que impôs uma verdadeira ocupação militar sobre o país, inviabilizando o desenvolvimento da democracia, pondo o presidente René Preval sob sérias limitações políticas, a partir de uma concertação entre as diversas forças políticas no país em prol da estabilização política e reestabelecimento da soberania.
Os Estados Unidos e o Fundo Monetário Internacional (FMI) impuseram condições humilhantes ao país que se tornou o principal devedor no continente americano e com os menores índices de desenvolvimento nas áreas de saúde e educação. O Haiti não tinha ainda autossuficiência alimentar, apesar da larga produção agrícola nas mãos de fazendeiros ricos, e os preços altos dos insumos primários fizeram que em 2008 a população fizesse manifestações contra a situação e a presença das forças de ocupação da ONU, cuja reação foi uma repressão tão violenta que causou a renuncia do então primeiro ministro Jacques-Edouard Alexis.

A vitória em 2011 de Michel Martelly, um ex-músico e membro do Partido Reposta Camponesa– ligado aos interesses dos EUA e de fazendeiros exportadores de cerais e frutas- manteve uma estabilidade momentânea. Contudo, afastou-o da orbita venezuelana que tinha tido uma certa proximidade a partir da política de Chavez para com os países do Caribe, e estreitou relações com Washington, em especial com os Clinton. O presidente haitiano tentou reestabelecer a independência do país através da reconstrução das forças armadas que no momento eram submetidas à missão das Nações Unidas.
Porém, Martelly não resolveu os problemas sociais advindos do terremoto e ocupação militar estrangeira, e para piorar acua-se pelas acusações de corrupção. O poder legislativo do país foi tomado por partidos conservadores após controversas eleições em 2015, cujo comparecimento foi de menos de 1/5 da população- registrou-se 1,046 milhões de votos válidos em um eleitorado de 5,871 milhões-, além da participação de políticos golpistas em 2004 ligados ao narcotráfico como o senador Guy Phillipe preso pelo DEA- Órgão para Controle de Drogas.

Buscando evitar uma crise maior que possibilitasse um novo golpe, Martelly renuncia as intenções de competir para um segundo mandato em 2015 e também a presidência antes do processo eleitoral, indicando para a corrida o empresário Jovenel Moise, fazendeiro exportador de bananas, homem de confiança dos Clinton. Ocorreram diversas irregularidades nesta eleição, denunciada por todos os partidos da oposição envoltos de três forças políticas: as neoliberais do partido Liga Alternativa para o Progresso e Emancipação Haitiana, liderada por um ex-aliado de Jean Bertrand, Jude Celestin– partido de centro-; as de esquerda dentro do partido Plataforma Filhos de Dessalines, liderado por Jean-Charles Moise– partido nacionalista de orientação dessalinista, que é uma vertente ideológica anti imperialista do nacionalismo haitiano-; e por fim a social democracia liderada por Marysse Narcise, líder do partido Famni Lavalas– partido de centro esquerda criado por Bertrand na década de 1990.
As manifestações em 2016 foram duramente reprimidas pelo governo provisório em que Jocelerme Prevet, então presidente do senado haitiano, contornou a situação e manteve a estabilidade na base de um Estado autoritário com apoio das forças militares da ONU. Apenas no fim de 2016, com a nova eleição para presidente as coisas aparentemente se acalmaram, no entanto ocorreu mais uma vitória duvidosa de Jovenel Moise com 55% dos votos, mas de apenas 18% do total eleitorado haitiano. Porém, não houve nenhuma contestação nova por parte dos partidos ou da comunidade internacional, e aparentou-se estar resolvida a questão haitiana, a ponto de com o desgaste das forças de ocupação da ONU ter sido restaurada as Forças Armadas em setembro de 2017, seguida da saída da missão das Nações Unidas.
O governo neoliberal de Jovenal Moise diminuiu o subsídio governamental ao preço do petróleo dado pela Petrocaribe e passou a deixar nas mãos do mercado mundial a fixação dos preços, o que levou a uma alta no ano de 2018 que se tornou insuportável para o povo haitiano. Contudo outros problemas tensionam ainda mais a situação, mais da metade da população haitiana é analfabeta, cuja a escolarização da mesma é ainda menor em um país em que 90% das escolas são privadas. O povo haitiano vive com menos de U$ 2 diários, 70% da população não tem trabalho e a expectativa de vida é de 63 anos.

Em julho de 2018, a capital Porto Príncipe entra em ebulição e por pouco o governo não cai, Moise recuou das reformas impostas pelo FMI, salvando seu cargo, mas sacrificando a estabilidade do governo, onde o primeiro ministro Jack Guy Lafontant renúncia. Entretanto, mais uma vez o incêndio foi apagado provisoriamente, pois em novembro explodem novos protestos contra os escândalos de corrupção do governo haitiano, ligados ao desvio de subsídios dados pelo governo venezuelano por meio da Petrocaribe. Essas manifestações que de início são convocadas pela oposição liberal, nomeadamente fazendeiros e partidários das políticas do FMI contra os subsídios da petrolífera venezuelana esvaziam-se rápidamente.
A oposição liderada pelos fazendeiros não teve eco nas manifestações populares depois de novembro, porque ao longo dos últimos meses exigiam a imposição de mais medidas do criticado FMI, e no passado apoiavam a manutenção da igualmente criticada ocupação militar no país. As forças de oposição de esquerda, onde destaca-se Jean-Charles Moise, um dessalinista vem ganhando apoio no país e condições de barganha frente a um governo corrupto e desacreditado, cujo crivo eleitoral não passou nem de 1/5 da população. Nas últimas semanas o governo perdeu completamente o controle, escolas foram fechadas em todo o país e os consulados estrangeiros pararam de funcionar junto com os serviços públicos.

Essa crise também pode ser atribuída às sanções estadunidenses a Venezuela, pois boa parte das empresas venezuelanas de energia e especialistas residentes no país que ajudavam na reconstrução após o terremoto de 2010 tinham dificuldades de trabalhar devido a Guerra Econômica, e como outras empresas energéticas não cobriam o subsídio e muito menos os serviços prestados, a crise energética que o país viveu durante a primeira metade dos anos 2000 retornou. Curioso é perceber que foi a partir de 2015, quando os Estados Unidos começaram a sancionar a Venezuela é que diversos países que comercializavam com os venezuelanos passaram a ter dificuldades econômicas, especialmente os países caribenhos que tinham subsídios por meio da Petrocaribe, caso do Haiti.
Entretanto, o Haiti acabou sendo um ’’efeito colateral’’ dessa Guerra Econômica à Venezuela, pois tanto John Bolton, assim como Mike Pompeu e Donald Trump não sabem o que fazer. Uma nova intervenção poderá custar recursos- que já são parcos- e que no momento são direcionados para confrontar Caracas, mas permitir o colapso de um governo aliado é ainda pior, pois pode servir de exemplo para o fortalecimento de uma nova onda anti-imperialista no Caribe, podendo incendiar de novo a América Latina.
No Haiti desnuda-se de maneira mais radical a hipocrisia das ’’soluções humanitárias’’ do ocidente. Na Venezuela, o presidente democraticamente eleito, legítimo e constitucional, Nicolás Maduro Moros, reconhecido pela União Africana de Nações (UAN), a ONU e diversas outros países da comunidade internacional sofre uma tentativa de golpe sob a alcunha de líder tirano e sanguinário, o que ’’levaria’’ a necessidade de uma intervenção estrangeira capitaneada por Washington para evitar um ’’desastre humanitário’’. Solução já adotada no Haiti várias vezes e que hoje vive uma crise intensa ignorada e posta a nível local, no máximo regionalizada sem ao menos citar as ações estadunidenses no processo.
Se Donald Trump, ou qualquer outro líder internacional quer contribuir para a resolução da crise econômica na Venezuela, basta derrubar as criminosas sanções econômicas que prejudicam inclusive a países terceiros como já descrito. Qualquer atitude que fuja a isso e clame por uma intervenção estrangeira nos mesmos moldes do Panamá, Iugoslávia, o próprio Haiti e mesmo a Líbia, será apenas uma espécie de ’’remake’’. Se hoje o Haiti encontra-se nessa situação de colapso, isso se deve ás décadas de colonialismo estadunidense por meio das ingerências políticas, militares, econômicas e da atuação do FMI que puseram o país na posição de mais pobre de toda as Américas.
O Haiti, como todos os países já citados, mostra o quão improdutiva são as intervenções militares marcadas pela ’’defesa da democracia’’, ’’guerra ao terror’’ ou ’’guerra as drogas’’. Um modelo de relações internacionais dos Estados Unidos que não apenas utilizam bastante do chamado Hardpower– poder bélico-, como também se constitui de um forte ideal colonial sobre o mundo não ocidental. Uma denúncia feita já na década de 1990 por intelectuais como Domenico Losurdo e Luiz Alberto Moniz Bandeira, e que hoje vemos os resultados em um mundo mergulhado no caos.
Em meio a tudo isso, é sintomático o colapso do governo fantoche haitiano em meio às tentativas de se intervir na Venezuela, utilizando o mesmo modelo implementado no Haiti, durante os anos 1990. A narrativa do ocidente de defesa da democracia por meio do uso da força da ocupação militar sob outrem demonstra apenas seu lado mais sombrio. Trata-se de uma ação imperialista violenta sobre a América Latina em que o Haiti é hoje o que Venezuela pode vir a ser no futuro.
Referências
DIÁRIO CENTRO DO MUNDO. Por que os Estados Unidos combateram a ajuda de Chávez ao Haiti. 2013. Disponível em: https://www.diariodocentrodomundo.com.br/por-que-os-estados-unidos-se-incomodaram-com-a-ajuda-de-chavez-ao-haiti/. Acesso em 20 de fevereiro de 2019.
HAITI NEWS: ELECTORAL ZAPING. Números sobre as eleições legislativas de 2015. 2015. Disponível em: https://www.haitilibre.com/en/news-14916-haiti-news-electoral-zapping.html. Acesso em 28 de fevereiro de 2019.
IVES, Kim. O desdobramento da revolução no Haiti está diretamente vinculado à Venezuela. In: Opera Revista Independente. Traduzido por Leonardo Justino. 2019. Disponível em: http://revistaopera.com.br/2019/02/23/o-desdobramento-da-revolucao-no-haiti-esta-diretamente-vinculado-a-venezuela/?fbclid=IwAR2nvW9gt3ikVfcbMZxWXHNEIEGo–ub7if_6_SlPu4tDMP7cET2pcLG2bM. Acesso em 24 de fevereiro de 2019.
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PROVISIONAL ELECTORAL COUNCIL. Resultados das eleições presidenciais haitianas de 2016. 2016. Disponível em: https://drive.google.com/file/d/0B56RZ3-JtuHxZW8zNHp4TVlwdzg/view. Acesso em 28 de fevereiro de 2019.
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