
Peter Jackson produziu e dirigiu um documentário soberbo e assustador. Em “Eles Não Envelhecerão” (“They Shall Not Grow Old” – 2018), ele utiliza todos recursos tecnológicos possíveis para trazer do passado os esquecidos soldados de 100 anos atrás, desperdiçados na insanidade do conflito de trincheiras na Primeira Grande Guerra. O filme faz parte dos eventos que celebraram o aniversário de 100 anos do fim do conflito, o primeiro a arrastar uma grande parte do mundo em sua trama, atravessando campos de batalha pela Europa, África e Oriente-Médio. Também foi o conflito que interseccionou o poder industrial e tecnológico com a guerra. Nunca antes a guerra fora tão mecanizada: trens, aviões, artilharia pesada, metralhadoras, rifles de repetição, granadas, armas químicas…
Mas o conflito permaneceu, durante muitos anos, preterido pelo imaginário popular, muito por conta da eclosão da Segunda Grande Guerra, e que trouxe mais brutalidade e horror em uma escala ainda maior que a Primeira. E nada supera, ainda hoje na memória da humanidade, o horror do Nazismo. O diretor Steve Spielberg disse certa vez, ao comentar seu filme “Os Caçadores da Arca Perdida” (1981), que nada superava os nazistas como vilões. Uma iconografia da maldade “perfeita” para a máquina cultural do pós-Guerra…

Ainda que incursões tenham sido feitas nas últimas décadas, materializada na forma de grandes filmes, a mensagem que irradiava deles era a irracionalidade da elite militar aristocrática da época (como em “Glória feita de Sangue” -1954, de Stanley Kubrick, ou mesmo “Coronel Redl” – 1986, de István Szabó), desperdiçando milhões de jovens em uma guerra de trincheiras, caracterizada pelo imobilismo e indefinição militar.
Como se diz nos nossos dias, o conflito não foi “problematizado” pelo cinema, com raras exceções, certamente pela ambiguidade dos propósitos de todas as potências envolvidas. Mas, passados 100 anos do seu término, voltou o mundo novamente a ter interesse no conflito, em especial a Europa. Destaca-se o excepcional canal do YouTube criado pela BBC para discutir todos os aspectos do conflito, dos uniformes dos exércitos aos interesses de cada país envolvido (existe até um episódio sobre o Brasil), passando pelos seus personagens e fatos mais icônicos.
O Inacreditável trabalho de Peter Jackson enfrenta este certo desconhecimento do conflito, investindo em uma linha narrativa corajosa e até certo ponto arriscada. No entanto, não existe uma narrativa professoral, comum aos filmes documentários do gênero. O filme não investe na elucidação de fatos históricos.
Sua preocupação é dar voz aos “Tommies”, como os soldados britânicos eram chamados à época, através da leitura das cartas desses homens. O áudio dos relatos é sobreposto às imagens da época recuperadas e devidamente tratadas digitalmente. Ficamos conhecendo as expectativas, os receios, a certeza que todos tinham no verão de 1914 de que o conflito seria resolvido em semanas.

O filme transborda memória, como se Jackon quisesse resgatar do passado aqueles garotos usados como bucha de canhão nos campos da França. O diretor ainda se conecta com o avô, ex-combatente morto no conflito. Mas é depois de passado 20 e tantos minutos do filme, que a narrativa começa a acompanhar aquele punhado de jovens (e assim os seguimos pelas cartas que vão sendo lidas), para o front das trincheiras no sudoeste do território francês.
Assim, o documentário acaba por transcender a memória, trazendo do mundo dos mortos aqueles “personagens”. Subitamente, a razão de aspecto do filme é expandida; a velocidade dos quadros diminuída e a fotografia recebe uma incrível textura, em um impressionante recurso digital, que faz de uma antiga e “surrada” imagem de cem anos possuir a nitidez e a iluminação dos nossos tempos.
Além disso, o filme encontra leitores/dubladores, com sotaque da região dos soldados exibidos nas imagens, além de sons diegéticos da época, como o disparo de um canhão, de um rifle enfield, do trotar de cavalos e o burburinho das pessoas. O resultado é impactante. Mesmo os relatos sendo lidos intensamente durante todo o filme, incorrendo, no limite, no risco de um certo fastio, o poder das imagens leva o filme pelos dois terços restantes da projeção com inegável energia.
O filme usa imagens de documentaristas que retrataram a vida nas trincheiras, mesmo nos seus momentos mais leves ou “descontraídos”, no rancho, ou em exercícios. E o que sai da tela é tocante: meninos, na sua grande maioria, com os dentes escuros do fumo, descontraídos, assustados, cansados, muitos com o olhar juvenil em brincadeiras com os amigos, o que é praxe em qualquer parte do mundo, em qualquer época, mesmo na guerra. Trata-se de uma obra cinematográfica que contém uma humanidade estupenda e comovente.

São fantasmas que nos assombram com a sua juventude esmagada, fruto da irracionalidade das elites europeias da época. O título amargo do documentário vaticina o que foi o conflito para muitos, mesmo para os sobreviventes: doenças psíquicas e motoras, rostos desfigurados, inválidos… A Primeira Grande Guerra foi o grande pesadelo de uma sociedade surpreendida com a própria capacidade de destruição. O ceticismo que dela emergiu definiu a arte e a sociologia no pós-guerra.
É quando o filme de Jackson novamente nos incomoda. Para além do resgate da memória, ele nos aproxima de um momento na história de profunda indefinição política, do nacionalismo mais esdrúxulo e da inflexão de impérios ascendentes e descendentes. Os feitos técnicos do filme, portanto, não só nos ajudam a humanizar aqueles pobres garotos esquecidos em uma guerra que completa 100 anos, mas também a ressaltar as lições da história.
Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2019/03/11/os-mortos-teimam-em-nos-assombrar-em-eles-nao-envelhecerao/?fbclid=IwAR10VGEB5E9yNue620lUCWOvPtfSL3J8AIhPTn3LQIqSqMy9Eat6FtMoZ9M
Título: Eles Não Envelhecerão
País: Reino Unido, Nova Zelândia
Direção: Peter Jackson
Roteiristas: Peter Jackson
Duração: 1h39min
Lançamento: 1de fevereiro de 2019 (EUA)
Idioma: inglês
Legendas: português
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