Breve história do poder popular em Cuba

Crédito: Gestão Educacional.

A Revolução Cubana representou um divisor de águas na história  do nosso continente. Contrariando determinismos geográficos, econômicos e geopolíticos demonstrou que uma ilha com parcos recursos naturais , com toda herança das estruturas coloniais e neocoloniais  e da sua condição periférica  no sistema capitalista mundial, pôde tornar-se um país socialmente mais justo.

Desenvolvendo uma forma de participação política claramente oposta ao modelo liberal  vigente no continente , mesmo estando a poucas milhas dos Estados Unidos. Sua resistência frente às persistentes  pressões dos EUA e sua posição de independência na condução de sua politica interna e externa  – importante observar sua posição soberana na relação com  um aliado tão fundamental  como a União Soviética (URSS), após a revolução – a capacidade de educar todo um povo com qualidade, dando-lhe dignidade, construindo valores , consciência, condição  de intervenção política, além de seu internacionalismo, já estão marcados na história e representam a odisseia da revolução cubana, tornando seu processo  revolucionário ainda mais necessário  de ser estudado.

Escola cubana. Crédito: Jose M. Correa/cmhw.cu

Em que pese diversos problemas – alguns originados do bloqueio econômico organizado pelos EUA e outros por insuficiências  do próprio modelo econômico e político que, de alguma maneira tem relação com o socialismo hegemônico  no século XX, presente nos países socialistas – Cuba conquistou  níveis de igualdade econômica e social, bem como acesso a cultura  bastante singulares no continente. O vigor de sua revolução foi colocado à prova de maneira dramática, no contexto que conjugou a crise, levando ao fim  do socialismo europeu, o avanço do capitalismo neoliberal globalizado e fundamentalmente  o fim da URSS, sua principal parceira econômica,  perdendo o pais 85% de suas relações comerciais.

Era o início  do Período  Especial em Tempos de Paz que tanto sacrifício exigiu dos cubanos. Como uma ilha socialista, com parcos recursos materiais  pôde resistir a toda essa situação, que adquiriu tons ainda mais duros com o aprofundamento do bloqueio econômico por parte dos EUA? É importante lembrar que países socialistas com muito mais recursos e maior desenvolvimento como a Alemanha Oriental, por exemplo, viram seu governo e o próprio socialismo caírem como castelo de cartas,  sem nenhum tipo de resistência popular que o defendesse.

Crédito: Infobae.

Apesar de todas  as imensas dificuldades por que passou o povo cubano e as adaptações do seu modelo econômico durante os anos noventa, época de um  grande avanço das ideias neoliberais na América Latina, foi mantido não só o discurso socialista como , em essência, o projeto socialista em meio a toda pressão política  e econômica dos EUA. Isso nos obriga, principalmente aqueles que estão envolvidos com a construção de um projeto socialista no século XXI, a buscar as raízes da sobrevivência dessa revolução, sendo que essa tarefa  política e  intelectual, sem dúvida, contribui também com uma das necessidades centrais de toda a esquerda: analisar os avanços e limites das experiências socialistas no século XX, notadamente os motivos de sua derrota em diversos países do mundo, bem como a sobrevivência desses projetos em alguns países, como Cuba por exemplo.

Busquei construir os primeiros passos  dessa investigação durante a elaboração da dissertação de mestrado, percebendo que esta resistência tinha origem  na gênese  da Revolução Cubana, que acabou fundando toda uma cultura politica autóctone, contribuindo decisivamente para a manutenção do projeto revolucionário. Um dos elementos fundamentais desse processo e, portanto,  uma das bases dessa resistência,  foi a resolução da questão nacional, posto que foi  o nacionalismo revolucionário que, encontrando o socialismo, possibilitou uma independência real do  país, rompendo com a republica neocolonial até então existente.  Os sentimentos de independência e soberania nacionais  estão umbilicalmente ligados a revolução e ao socialismo. Esse  foi um dos aspectos centrais também presente nos discursos do governo cubano, que legitimaram  toda a política de resistência frente à  pressão contra  a revolução dos anos 1990.

Outro aspecto importante que contribui para  a compreensão da manutenção do projeto revolucionário está na sua vinculação com a democracia. Afinal,  a vitória da revolução teria garantido a amplas parcelas do povo cubano uma real democracia que se distanciava daquela já vivida pela ilha. Esta que certamente não se encontrava nos modelos de democracia que os Estados Unidos buscavam sempre defender e impor ao país  desde a vitória da revolução e notadamente, nos anos noventa. Assim, a  defesa do  seu sistema político  e a democracia que ali foi construída também esteve presente nos discursos do governo e articulou ainda a resistência naquele período.

Porém, como a Revolução Cubana foi definindo o significado da democracia e como se construiu o sistema político em Cuba? Sabendo que ambos buscam  um distanciamento  claro do modelo liberal burguês, ate que ponto é possível dizer que ele potencializa a participação popular  e vai ao encontro das formulações marxistas, em torno da participação e gestão dos  trabalhadores em busca  do autogoverno comunista ? Este trabalho busca encaminhar algumas pistas em torno dessas perguntas , percebendo, ressalto,  a Revolução Cubana como um laboratório  de experiências  para o socialismo do século XXI.

Democracia  e Socialismo

Karl Marx e Friedrich Engels  apresentaram a necessidade da ruptura revolucionária para o início da construção da sociedade comunista. Esta ruptura ocorreria através de uma revolução com alma social, tendo como centro a realização da  emancipação humana que destruísse as relações capitalistas e o Estado burguês, criando as condições práticas e concretas para o fim da dicotomia estado e sociedade civil.  Seria então iniciado um longo processo de construção da sociedade comunista, onde ainda existiriam sobrevivências da sociedade anterior e o proletariado, organizado em classe dominante, efetivaria esta transição para a sociedade sem classes através da ditadura do proletariado.

Karl Marx e Friedrich Engels. Crédito: Significados.

Essa fase, onde ainda estariam presentes várias características econômicas e ideológicas da sociedade capitalista, a presença da divisão do trabalho e do Estado, foi comumente chamada de fase inferior do comunismo ou socialismo, seria uma etapa de transição relacionada à preparação das condições materiais que pudessem permitir a consecução do objetivo comunista, uma sociedade sem classes e consequentemente sem o Estado enquanto um poder de opressão. Os agentes políticos fundamentais de toda esta transformação seriam as organizações criadas pelas classes trabalhadoras, como os partidos operários, os sindicatos, as cooperativas, ou seja, os órgãos que foram gestados ainda no capitalismo em função do seu próprio desenvolvimento e a pressão das lutas proletárias ou após o fim do estado burguês.

Crédito: Quora.

Estas novas instituições seriam  capazes de construir nesta etapa socialista  uma forma planejada que possibilitaria um grande aumento das forças produtivas,  a autogestão dos produtores associados capaz de fazer com que o Estado perdesse sua necessidade de existência, enquanto instituição de dominação.   Essa dominação  estaria voltada nesse período contra  a resistência da burguesia, sendo esse Estado dirigido por um governo de cunho popular apoiado e controlado por essas instituições que conformariam o poder do proletariado. Os escritos de Marx sobre a transição socialista e a sociedade comunista podem ser encontrados na análise da Comuna de Paris e em algumas passagens da Crítica ao Programa de Gotha , da própria Ideologia Alemã. Ou sobre a guerra civil na França, quando faz uma avaliação da Comuna de Paris.

Contudo, é preciso dizer que correspondendo ao próprio materialismo  histórico que tinham como base, nem Marx, nem Engels elaboraram sistemática e detidamente como se desenharia esta estrutura política, só apontando as linhas bem genéricas do processo. Vladimir Lenin, vivendo  a revolução socialista como dirigente e contribuindo para a estruturação politica do sistema soviético, teve  condições mais claras para refletir sobre esse processo de transição apontado alguns aspectos importantes em torno da  sobrevivência do mercado e as relações do partido como as entidades da classe. Mesmo em meio a todas as dificuldades de uma revolução fortemente acossada tanto interna, quanto externamente, sem ter como companhia  outros processos semelhantes pela Europa.

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Vladimir Lenin. Crédito: Russia Today.

Após Lenin, vemos que o movimento comunista em geral  deixou de abordar com devida profundidade a esfera da política e seu funcionamento, e contraditoriamente isso aconteceu nos próprios  países socialistas principalmente , sendo predominante a visão de que o simples desenvolvimento técnico industrial, ou seja, o desenvolvimento das forças produtivas, levariam a uma democratização crescente, com o fim das classes sociais e do Estado. A história mostrou que tal não aconteceu, e que muitos dos problemas  da construção do socialismo e ate mesmo o fim dessas experiências em vários países, devem-se a problemas  da esfera política,  onde os partidos tornaram-se vanguarda de forma apriorística.

Acabaram por confundirem-se com o próprio Estado, tendo pouca socialização da política, gerando privilégios, formalismo , uma burocratização da vida social e o afastamento da politica como atividade de emancipação humana. Assim, várias experiências  socialistas caíram por terra, sem a defesa por parte da classe que deveria ver como seus tanto o governo, quanto o  Estado socialista. 

Como então Cuba,  país  colonizado e neocolonizado, periferia do sistema capitalista, sem ter nenhum tipo de indústria de ponta, e fortemente acossado pelos EUA, poderia desenvolver o socialismo e sua democracia proletária popular em meio a tamanha  dificuldade? Seria possível que Cuba do ponto de vista histórico construísse um socialismo radicalmente diferente do soviético, sendo este o modelo predominante no século XX e ainda levando em conta às profundas relações que a ilha constrói com todo o campo socialista?  

Participação Politica e Poder Popular no projeto Comunista

A Revolução Cubana de 1959 derrubou a ditadura e Fulgencio Batista, fiel aliado dos EUA, tendo  um caráter nacional, popular e democrático. O nacionalismo de cunho revolucionário, que acabou desdobrando-se no anti-imperialismo, buscava superar a república neocolonial  e estabelecer a soberania e independência real do pais. Um dos aspectos mais impressionantes da revolução era a massiva e incisiva participação popular que se tornava cada vez mais presente, com a aplicação das medidas de caráter democrático. Porém, ainda dentro da ordem capitalista, como o congelamento de aluguéis, o confisco de propriedades da burguesia ligada a Batista que fugira com a vitória da revolução e a reforma agrária que vai acabar atingindo empresas americanas.

Fulgencio Bastista. Crédito: MSNBC.com

Certamente a aplicação das medidas democráticas e revolucionárias vão criando  embates mesmo entre  aqueles grupos políticos e classes até então unidos contra a ditadura de Batista  e definindo o significado da democracia. Embora, desde os primeiros discursos houvesse um acento na democracia entendida como justiça social-   como direito ao trabalho, ou seja, com uma dimensão fortemente marcada na igualdade de direitos sociais de todos os seres humanos, ainda era uma visão liberal de democracia, e bem demarcada contra qualquer ideia de socialismo ou comunismo.

Contudo, os embates políticos vão operando uma radicalização nos discursos, dando um caráter mais classista e tal pode ser visto quando Fidel questiona dois pontos centrais do pensamento liberal: a igualdade de oportunidades e as eleições, acabando com o processo já se definindo como socialista, por defender, o povo armado e o governo popular:

“Como es que se da la igualdad de oportunidades? Puede tener la misma oportunidad el hijo del campesino que está descalzo, que no va a la escuela y no recibe una educación, que el hijo del señor que vive en cualcuier barrio de personas acomodadas, que desde que nació tiene relaciones,…..En primer término, somos e nos consideramos mucho más democratas que esos que están hablando de elecciones como antes, y nosotros queremos elecciones completamente distintas a las de antes, porque esos quieren politiquería y nosotros queremos que cuando las elecciones vengan, aquí todo el mundo esté trabajando, aquí la reforma agrária sea una realidad….”

“La democracia que existía aquí era el derecho de se comprar libremente las conciencias, era el derecho de corromper al pueblo, era el derecho de la oligarquía gobernar, nunca el derecho del pueblo. Y la democracia que nosotros vamos a implantar es una democracia donde el gobierno sea de verdad un gobierno del pueblo, y que el gobierno del pueblo no sea el gobierno de la oligarquía, sino un gobierno de la mayoría del pueblo”…

“Dudan que seamos democráticos? Bueno, pues entonces yo enplazo a esos que dicen que no somos democráticos a que les den armas a los estudiantes, a los campesinos y a los obreros. Yo los emplazo. Porque los campesinos, los obreros, los estudiantes, los sectores humildes del país son mayoria. Álguien niega eso? No, nadie nega eso. Pero nosotros les damos algo más que voto: les damos los fusiles, fusiles com prueba absoluta de su respaldo, de su confianza, de que se interpreten los intereses de la mayoría. … Cuando el pueblo tiene fusiles, cuando un gobierno le da fusiles al pueblo, ese gobierno sí es democrata, y esa es la prueba suprema. …”

(Castro, Fidel. El Pensamiento de Fidel Castro. La Habana. Editorial Ciências Socialies, 1983, pág 402, 422 454)

Fica bem nítido,  que  a visão de democracia passa de um liberalismo democrático radical e humanismo abstrato para a defesa da democracia com caráter, um caráter de classe, na medida em que se aprofunda a quebra do Estado burguês e o processo assume uma orientação anticapitalista. Neste contexto, a ideologia e a teoria que vão dar todo o arcabouço desta nova fase da revolução, não poderiam ser algo diferente do socialismo e do marxismo.  Porém, que socialismo e qual marxismo serviriam como mais adequados teórica e ideologicamente, levando em conta as particularidades cubanas? 

Que tipo de planejamento econômico socialista seria o mais adequado para o desenvolvimento das forças produtivas em um país com parcos recursos naturais e bloqueado pelo seu maior parceiro comercial? Que tipo de Estado socialista e sistema de participação politica construiria as condições para um participação politica organizada cada vez mais profunda, democrática e socialista, em meio a tantas agressões externas e a contrarrevolução interna que ainda se fazia presente?

Crédito: Jurídico Internacional – WordPress.com

Nesse espaço de tempo, entre os anos 1959 e 1961, vão sendo criadas e remodeladas diversas organizações de massa que,  indubitavelmente, nasceram dessa radical participação popular, acabando também por defender o projeto revolucionário, como a Nova Central de Trabalhadores Cubanos, os Comitês de Defesa da Revolução, a Federação de Mulheres, e etc. Sem contar o próprio processo de aglutinação das forças políticas  que construíram a Revolução – o Movimento de 26 de julho (M26), o Diretório Estudantil e o Partido Socialista Popular (PSP)– nas Organizações  Revolucionárias Integradas e posteriormente no Partido Unido da Revolução Socialista de Cuba (PURS), experiências que contribuíram para a formação do novo  Partido Comunista de Cuba em 1965.

Curiosamente, o nível de debate que foi feito sobre qual seria a melhor alternativa para  Cuba dentro de uma perspectiva socialista giraram em torno de um modelo econômico mais centralizado e outro que defendia a autonomia financeira das empresas- não foi o mesmo sobre  que configuração política assumiria o Estado socialista. Neste período, a intensa participação popular, dava-se com base na “democracia  direta”- o povo participando dos comícios, junto com os dirigentes revolucionários e nas organizações de massa recém criadas que nos referimos- sendo também a fase do guerrilheirismo  administrativo, como chegou a mencionar o Che Guevara.

Sem dúvida, a razão disso foi, por um lado, as urgências econômicas vividas pelo país e a necessidade de combate a contrarrevolução, mas também isso demonstrou  um certo desprezo, presente em várias correntes do marxismo,  para com a reflexão do funcionamento da  esfera política na construção do socialismo, como se a socialização via estado da propriedade e o planejamento econômico já fossem suficientes para  desenvolver o socialismo e consequentemente, democratizar a gestão da sociedade e do Estado. O que não impediu um embate bastante interessante durante a formação do novo Partido Comunista entre Anibal Escalante, membro do PSP, e boa parte da direção revolucionária, esta mais favorável a um partido onde houvesse uma participação muito mais direta dos trabalhadores em seus locais de trabalho, na escolha dos membros do partido.

Contudo, seja na formação deste novo partido comunista, ou na própria construção dos novos órgãos de poder, percebemos o quanto a participação popular na revolução acabou por marcar positivamente a construção do socialismo em Cuba. No início dos anos sessenta, a fim de dar um mínimo de organicidade administrativa ao novo Estado cubano e, simultaneamente, incorporar as recém formadas organizações de massa a gestão de Estado, foram formadas as Juntas de Coordenação Execução  e Inspeção (Jucei) nos Municípios e províncias da Ilha . Em 1966, as Jucei foram substituídas pelas administrações locais formadas cada uma, por um  comitê executivo.

Cada comitê era formado  pelo presidente e secretários, vários deles ligados às organizações de massa, sendo também integrados por dez delegados eleitos pela população, selecionados em assembleias nos centros de trabalho e bairros. O presidente do órgão da administração local era eleito em assembleias do partido comunista, já apresentando como partido dirigente.  Além da  participação popular de base na gestão do Estado, outro elemento importante foi a prestação de contas a que eram obrigados a apresentar à população e com ela debater conjuntamente as etapas seguintes.

Contudo, mesmo com pontos  positivos na experiência  prática, o adiamento da discussão do novo Estado e seu funcionamento, algo  tão  central na transição  socialista e, de certa maneira, também  marginalizada  em vários países socialistas, concorreram para o insucesso de algumas metas econômicas apontadas, como a safra dos dez milhões  de toneladas de cana. Portanto, colocou-se como necessidade clara a organização do Estado cubano com a preocupação de ser uma instituição socialista, diferente do Estado burguês, onde a participação de massas fosse mais vigorosa,  organizada e estruturada, no intuito de potencializar a participação do povo na gestão.

Este experimento inicia-se na província de Matanzas e logo se estende o todo o país, ganhando o nome de Poder Popular, sendo legitimado pela Constituição do país em 1976. Organizado em cada município, passando pelas províncias e tendo seu ápice na Assembleia  Nacional do Poder Popular que elege o Conselho de Estado, órgão dirigente do país. A partir daí, os índices  de participação eleitoral do povo cubano são realmente impressionantes em um país onde o voto não é obrigatório, todos superiores a 95%.

Quais os pontos positivos dessa experiência?  Sem duvida, um dos mais interessantes é o fato da população,  na sua circunscrição eleitoral, indicar seus candidatos a delegados, independente deles fazerem parte ou não do partido comunista, ou das chamadas organizações  de massa em um processo, onde não ha qualquer envolvimento financeiro. O segundo aspecto é a prestação de contas e a possibilidade de revogar os mandatos- e isso aconteceu diversas vezes- o que aproxima muito mais a população do parlamentar, que não é um político profissional, e impondo-lhe  obrigações.

Em pleno processo de crise econômica e de desgaste da imagem do socialismo mais que nunca tido como totalitário e antidemocrático com o fim da URSS e o leste europeu, Cuba realiza  algumas reformas políticas importantes que vão democratizar todo esse processo. São criados os conselhos populares, órgãos de gestão nos municípios e o partido comunista, que vão descentralizar a administração local e vinculá-la à população de forma mais direta . O partido comunista, único e dirigente na forma de lei, que se torna também martiano- referência a José Martí, herói da independência do país- que já  não participava da indicação de qualquer candidato, passa a deixar de participar também das comissões de candidatura, na verdade comissões organizadas, durante o período eleitoral para estruturar as eleições .

Outro avanço democrático importante deu-se com a eleição direta dos deputados provinciais e nacionais. Pois, ate então, a eleição, após a escolha direta em nível municipal, era feita de maneira indireta, com a assembleia municipal, votando em candidatos provinciais e esta, elegendo a assembleia nacional. A organização desse sistema eleitoral bem diferenciado foi colocado na época como uma das marcas da revolução, um dos elementos que garantiam a participação política, a proximidade do povo com seu governo na gestão do Estado e a superioridade da democracia socialista cubana.

Crédito: Curiosidades de Cuba – WordPress.com

O resultado das primeiras eleições realizadas no início dos anos 1990, após as mudanças  realizadas, foram encaradas como plebiscitária da revolução e do socialismo, servindo para legitimar ainda mais a revolução e o governo em um contexto de extrema dificuldade, como apontou Fidel:

“Eles falam de democracia, e valeria a pena que meditassem sobre o que nós estamos fazendo. … Sentimo-nos orgulhosos, também de que no meio de uma situação, difícil, no meio de um Período Especial, nos submetamos à prova dessas eleições que pressupõe que a revolução conta de maneira franca e plena com a maioria do povo. E a revolução não conta só com a maioria do povo; não conta só com a quantidade mas conta com a qualidade”

(Discurso de Fidel. Granma Internacional, número 8,  8 de março de 1993).

Seria então esse sistema de participação politica eleitoral em Cuba realmente condizente com a proposta comunista de término do distanciamento entre Estado e sociedade? Estaria Cuba no caminho correto da autogestão social comunista, seguindo os pressupostos de Marx e Engels quando examinaram a Comuna de Paris? Que aproximações e distanciamentos temos entre o sistema politico cubano e aqueles desenvolvidos nos países socialistas?

Temos claro que a revolução cubana não pode ser vista de forma abstrata. Tratava-se de um país com baixo nível de desenvolvimento das forças produtivas, sem riquezas naturais e potencialidade energética, que enveredou pela construção do socialismo, tendo a cerca de duzentas milhas o império estadunidense que sempre ingeriu nos assuntos internos da ilha. A construção do Estado socialista, um instrumento de dominação, sem dúvida, teve tanto a atribuição de construir a defesa do país, quanto também de incorporar a população ao processo de tomada de poder, seja pela participação eleitoral ou, em outras formas de participação, na gestão do Estado, para que fossem  construídas condições de autogoverno comunista.

Não é um processo simples e retilíneo, levando em conta todo o contexto internacional, os limites estruturais do país e a força do modelo  hegemônico soviético, que também marcou a revolução principalmente a partir dos anos 1970 . Logo, há várias características do socialismo cubano que, apesar de ter também sua feição própria, muito relacionada à cultura cubana,  ainda lembram alguns aspectos do socialismo chamado de socialismo real. Uma concepção  centralizadora – provavelmente uma necessidade em certos aspectos que acaba prejudicando a vida politica e social- que ainda está presente, apesar dos esforços, apresentado o partido como único dirigente da nação cubana, do Estado e das entidades de massa.

Há que se lembrar que foi o caráter autóctone e heterodoxo da revolução que deram  um fôlego maior ao processo, possibilitando que a revolução e o socialismo sobrevivessem a certos fenômenos negativos, provocados pelas contradições do próprio processo revolucionário e pela inevitável e inegável influência do chamado modelo soviético que predominou na ilha nos anos setenta.  E assim nos referimos não somente aos símbolos nacionais e a cultura do país que sempre integraram a politica e a ideologia revolucionárias após 1959 , mas ao desenvolvimento de valores  próprios  da revolução e do socialismo cubano.

A leitura feita pela revolução e seus dirigentes do marxismo, muito condizente com a década de 1960, em que se deu maior ênfase na ação do sujeito da história, na certeza que a consciência e os valores socialistas devem ser elementos centrais mesmo na primeira fase da construção comunista, distanciando-se de uma leitura mecânica centrada nas forças produtivas e no seu desenvolvimento como base da construção da consciência. De acordo com a visão cubana, o novo homem e a moral comunista não poderiam ser desprezados ou só desenvolvidos posteriormente. Isso explica o acento na constante defesa referência aos valores e incentivos morais na construção do socialismo, o exemplo a ser dado pelo revolucionário, incluindo o dirigente, e a visão de solidariedade e igualdade, até muitas vezes excessivamente radical, formaram esse ethos socialista cubano que o diferenciou das experiências que se desenvolveram na URSS.

Todos esses elementos somados à constante inciativa de fortalecimento das organizações de massa, participação da base nos processos de decisões com a escolha de delegados e até membros do partido, desde seu local de trabalho ou moradia,  contribuíram na lubrificação do sistema politico, freando um maior processo de burocratização, formalismo e distanciamento do governo e do partido da população, Assim, incorporou-se de forma crescente os trabalhadores ao processo de decisões. Certamente essa democracia socialista, forma do Estado cubano, tem que ser ainda mais enriquecida, aperfeiçoando-se os métodos de escolha de candidatos ao poder popular, desenvolvendo mais poder de decisão das organizações dos trabalhadores na gestão do Estado, além de uma maior descentralização política. Porém, sem duvida a experiência cubana tem que ser levada em conta para a construção do socialismo no século XXI.

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por Anders Noren

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