
Fazia tempo que eu não me empolgava com um filme de Oliver Stone, até assistir seu “Snowden” (2016). Este filme conta a trajetória do já famoso analista de dados da Agência Central de Inteligência (CIA – em inglês), Edward Joseph Snowden, e sua corajosa decisão de denunciar, através de jornalistas combativos e independentes, as ações do monstruoso sistema de vigilância global da Agência Nacional de Segurança (NSA- em inglês). Snowden ainda denunciou a virtual quebra de privacidade de basicamente toda a comunicação de voz e dados de pessoas, empresas e governos do mundo!!! Sim, do mundo…
O filme de Stone é surpreendentemente sóbrio, para um realizador caracterizado por uma frenética narrativa, de cortes rápidos, zooms e toda sorte de maneirismos. E, devidamente, contido nas suas experimentações estéticas, foca na condução competente de uma história poderosa sobre um jovem brilhante e autodidata. Um indivíduo movido por um idealismo patriótico (e inocente, acrescentaria), que ingressa nas forças de segurança do país, sensibilizado pelo 11 de setembro. Como muitos jovens estava disposto a dar a vida para defender o país. Inicialmente no exército, onde não possui o vigor físico necessário para a vida de soldado, Snowden encontra na CIA (e demais aparatos de segurança) o local ideal para dar vazão ao seu talento com computadores, programação e análise de dados.

O enredo narra esses saltos na vida do personagem de forma econômica e fluída. E a interpretação de Joseph Gordon-Levitt é brilhante, desde a caracterização da voz até os trejeitos físicos de Snowden, traduzindo a racionalidade e a timidez do personagem de forma admirável. Recomendo o excelente documentário “Citzenfour” (2014), de Laura Poitras. O filme de Stone dialoga e respeita, admiravelmente, o documentário de Poitras, retratando com fidelidade os diálogos entre o jovem analista e os jornalistas, escolhidos a dedo (dentre eles o Bravo Glenn Greenwald, que mora no Brasil e que, inclusive, denunciou o golpe sofrido por Dilma Rouseff).
A história é um prato cheio para Stone, obcecado pela investigação da tragédia americana, ou seja, os caminhos tomados pelo gigante do Norte (em especial da sua tecnocracia) e a sua acelerada e progressiva distância das expectativas e promessas que constituem os mitos nacionais estadunidenses, de terra prometida da democracia e esperança. De fato, Stone acreditou nesses mitos. Como alguém nascido e crescido nesse sistema de crenças, ele experimentou as grandes contradições morais do discurso épico da civilização americana. E até lutou numa guerra (a do Vietnã), provavelmente tomado por esse patriotismo onipresente.
Como cineasta, é inegável a força e coesão de sua obra. Podemos discutir seus filmes, e a oscilação natural de alguém com uma vasta cinematografia. No entanto, ele é incansável na investigação e na denúncia ao estabelecimento militar-político-financeiro estadunidense, sua frieza corrupta e tecnocrática, verdadeira antítese do mito clássico americano. O “drama” de Stone, homem progressista e liberal, revela-se na estrutura narrativa de vários de seus filmes mais importantes. É importante discutir o padrão bem definido em várias de suas tramas, que emula a sua própria jornada, de soldado numa guerra tipicamente imperial a um artista incomodado com os rumos do seu país.
Esse padrão revela personagens que despertam do modelo mental no qual estão submetidos. Em um segundo momento, são tomados por uma fúria contestadora. Entre a desilusão e o despertar de consciência, desenvolve-se o arco dramático de personagens icônicos da cinematografia de Stone, verdadeiros Alter Egos do cineasta, como o soldado Chris Taylor (Charlie Shenn) de “Platoon” (1986), o iludido Bud Fox (novamente Charlie Sheen) de “Wall Street” (1987) e o ativista Ron Kovic (Tom Cruise) de “Nascido em 4 de julho” (1989). O inocente e idealista Edward Joseph Snowden junta-se, portanto, à galeria de personagens onde, cada um ao seu jeito, contam um pouco da trajetória do próprio cineasta, que dedicou praticamente toda sua cinematografia na denúncia dos delírios sociais e imperiais estadunidense.
Uma sociedade que, sob suas ácidas lentes, transformou-se em uma nação de exageros consumistas e psíquicos. Do conservadorismo extremado em “Talk Radio” (1988), passando pelo asfixiante mercado financeiro de “Wall Street” (1987), ou mesmo sua sequência, em 2010, até a espetacularização da mídia (retratada de forma alucinada em “Assassinos por Natureza” de 1994) e os atos imperiais estadunidenses, de interferência em países estrangeiros, como “Salvador” (1985), “Platoon”(1986) e “Nascido em 4 de julho”(1989). Por isso, ao assistir “Snowden”, que repito, é o filme mais sóbrio de Stone em anos, lembrei de um de seus projetos mais combatidos e detratados pela crítica: “Alexandre”, de 2004.
Foi o filme mais caro de Stone (algo como US$ 150 milhões). Criticou-se o elenco estrelar (Anthony Hopkins, Colin Farell, Angelina Jolie, Jared Leto e Val Kilmer, entre outros), suas interpretações, a duração do filme, a narrativa entrecortada de flashbacks, a estética particular de Stone e até a homossexualidade de Alexandre retratada no filme. Pouco se notou, à época, que aquele filme era o vórtex fílmico de Stone, onde todos os outros convergiam. Era a leitura política do cineasta, através do uso de um personagem clássico e épico, suficientemente rico em camadas, para que, dessa forma, pudesse discutir seu próprio país, os Estados Unidos da América.

Alexandre, enquanto general e líder de um império em expansão, incorporou as nações conquistadas, seus códigos e ritos, incorporando-as ao modo de vida de grego. Essa expansão militar, travestida de campanha civilizatória helênica, para subjugar e converter os bárbaros ao modo civilizado (e grego), transformou-se numa experiência rica e singular. Sem dúvida alguma, Alexandre influenciou (e muito) o mundo antigo. Os Romanos o idolatravam. Alexandre, fundamentalmente, marchou por uma ideia: um mudo livre da ignorância e submetido (de bom grado) ao civilizado mundo grego.
A tragédia americana, segundo Stone, é esse potencial desperdiçado, de uma nação de imigrantes, do novo mundo, enriquecida e dinamizada pela convergência de povos e culturas, destinada à expansão do mundo livre, que se converte, aos poucos, num império imperfeito. Uma nação liderada por uma tecnocracia fria, e por vezes, ignóbil (daí sua obsessão por presidentes americanos, como nos filmes “Nixon”, de 1995, e “W.”, de 2008). Portanto, munido dessa ambição, Stone lançou-se na aventura do seu filme mais complexo, sua visão geopolítica particular através de um épico intenso e nada óbvio, mesmo considerando o tradicional arco dramático de uma cinebiografia.
Eu defendo (e muito) “Alexandre”contra seus detratores. Adoro a trilha sonora de Vangelis, que soube capturar o tom épico e intimista do personagem. A fotografia de Rodrigo Prieto é também digna de nota, com suas grandes tomadas épicas em campo aberto, em especial nas grandes (e bem construídas) sequências de batalhas. E eu até defendo as interpretações exageradas de Farell ou Jolie. Com “Snowden”, o velho cineasta volta em forma para fazer aquilo que faz de melhor: mergulhar nas entranhas do império, denunciar suas mazelas e procurar, por fim, sua redenção moral.
Fonte: texto originalmente publicado no site O Beco do Cinema
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2016/12/11/stone-e-a-busca-de-redencao-para-a-tragedia-americana/
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