
Em tempos de revisionismo e semanas após a comemoração dos 74 anos da vitória soviética sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial, sempre é bom destacar livros e filmografia que resgatam as verdades históricas e se contrapõem à manipulação ocidental. O filme “A Trégua”, de Francesco Rosi, lançado em 1998, é um belo exemplo disso. Baseado no livro homônimo de Primo Levi, trata da trajetória de um grupo de judeus italianos que libertados do campo de concentração de Auschwitz, percorram a Europa toda para retornar ao seu país. O filme mistura drama com um humor corrosivo que caracterizou Primo Levi (representado magistralmente por John Turturro), que escreveu essa mini autobiografia sobre os horrores que viveu na Segunda Guerra Mundial.

Seria mais um filme sobre o Holocausto, não fosse por um detalhe: mostrava um papel significativo dos soviéticos no resgate dos judeus. Foi algo tão inusitado na filmografia ocidental que a grande imprensa reagiu de modo desconexo, pois por um lado não podia desconsiderar a qualidade do filme, mas por outro não podia permitir que os soviéticos fossem retratados como “mocinhos”. No Brasil, foi particularmente dura uma nota da Revista Veja, que buscou desqualificar o filme e o escritor. Mas porque essa reação forte e desproporcional? Qual foi o “pecado” grave desse filme para fazer com que inclusive passasse como um bólido pelo circuito comercial?

O filme inicia com as tropas soviéticas libertando os judeus do tristemente famoso campo de concentração de Auschwitz (Oswiecim, em polonês) na Polônia. Na verdade, tratava-se de um complexo de campos nos quais foram exterminadas por volta de 2 milhões de pessoas (os números seguem sendo estudados), 90% das quais eram judias. Aqueles que não eram executados nas câmaras de gás morriam de fome, doenças infecciosas, trabalhos forçados, execuções individuais ou experiências médicas.
Os soviéticos salvaram milhares de vidas, levando alimentos, cuidados médicos e abrigo para aquelas pessoas que estavam à beira da inanição. Depois, no decorrer do filme, quando os judeus são transportados ao longo da Europa liberada (o campo de Auschwitz foi ocupado pelos soviéticos em 27 de janeiro de 1945, portanto a guerra prosseguia), em alguns momentos vê-se a solidariedade e apoio dos soldados soviéticos aos sobreviventes. Por fim, a confraternização por conta do fim da guerra.

Esses trechos referidos são muito poucos e nem de longe se equivalem à filmografia do Leste Europeu, especialmente soviética, sobre o assunto. Porém, esses poucos minutos foram suficientes para representar uma heresia para a historiografia ocidental que hegemoniza Hollywood e o mercado editorial. Até então, os soviéticos ou eram ignorados pelos filmes clássicos de guerra, ou eram retratados como equivalentes ou piores que os nazistas (caso do filme “Stalingrado” (1993), Joseph Vilsmaier e “Cruz de Ferro” (1977), de Sam Peckinpah).
“A Trégua” não busca falar das proezas do Exército Vermelho, das grandes batalhas, do esmagamento da máquina de guerra nazista. Traz a dimensão humana, do apoio aos oprimidos e massacrados, de que a guerra não visava apenas a derrotar a tirania, mas salvar vidas. Isso por si só já era inaceitável, até porque remete a um outro assunto doloroso para o ocidente. O fato de que por bastante tempo não acreditaram na existência dos campos de concentração nazistas, nos experimentos, no genocídio. Tratavam inclusive como propaganda soviética para demonizar os nazistas.
Quando finalmente foram convencidos por inúmeros relatos, inclusive de testemunhas oculares, de fugitivos, os Aliados ocidentais recusaram-se a bombardear os fornos crematórios, tanto sob alegação de questão estratégica, quanto sob a alegação de que matariam mais prisioneiros do que nazistas. Soa meio cínico para quem bombardeava sistematicamente cidades na Alemanha, deixando-as em ruínas e matando dezenas de milhares de civis, como foi o caso de Dresden. Portanto, pode se dizer sim que o filme A Trégua rompeu o silêncio e a manipulação sobre a participação da URSS na Segunda Guerra Mundial, permitindo uma outra visão fora da historiografia ocidental.
Direção: Francesco Rosi
Roteirista: Tonino Guerra, Primo Levi (autobiografia)
Elenco: John Turturro, Rade Serbedzija, Massimo Ghini
Lançamento: 29 maio 1998 (Brasil)
Idioma: inglês, russo, alemão, italiano, polonês
Legendas: português
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