
A proteção ao meio ambiente, o aquecimento global e a busca pela renovação da matriz energética mundial têm sido o foco de várias discussões internacionais. Busca-se uma fonte energética alternativa que não agrida a natureza e logo, para alguns, a energia proveniente de uma reação nuclear, ou seja, através da transformação de núcleos atômicos, tem sido considerada por muitos ativistas e pesquisadores como uma possibilidade de substituição ao petróleo e outros recursos poluentes. Mas o quanto grave esta alternativa pode ser a humanidade, pouco se discute.
“Lembramos da era atômica apenas quando falamos de Hiroshima e Nagasaki, mas ela faz parte do nosso cotidiano. Não são duas bombas no Japão que a resumem. Todos os equipamentos que têm substâncias com elementos radioativos e com os quais convivemos em nosso cotidiano fazem parte desta era”, assim a diretora executiva do International Uranium Film Festival Márcia Gomes de Oliveira abriu o evento que recebeu os sobreviventes da bomba atômica em Hiroshima Takashi Morita e Kunihiko Bonkohara, acompanhados do diretor e ator, e produtor da NAGAI Produções Artísticas e Culturais Rogério Nagai.
Eles estiveram nos dias 25 e 26 de janeiro no Rio, com o apoio do Instituto Cultural Brasil Japão para contar suas memórias aos cariocas. Na ocasião foi exibido ainda o curta documentário “O Sr. Morita” (2016), de direção e produção de Roberto Fernández que conta a história do ex-policial militar e palestrante. Também o grupo de dança do curso técnico da Escola Técnica Estadual Adolpho Bloch – ETEAB/FAETEC fez uma apresentação especial aos sobreviventes, cujo repertório musical incluiu o sucesso do grupo Secos e Molhados, na voz de Ney Matogrosso, com letra de Vinícius de Moraes “Rosa de Hiroshima”.
Desde a ameaça de novos conflitos em que armas nucleares possam ser empregadas a acidentes como os que ocorreram em Chernobyl e Fukushima, assim como a construção de equipamentos militares como o submarino nuclear, o primeiro do Brasil e da América Latina, são temas que o festival trata e busca alertar o grande público. O projeto é o maior evento cinematográfico dedicado a promover a memória sobre os perigos da bomba e acidentes nucleares, e de questões referentes ao lixo radioativo, medicina e ciência. A ideia é informar, recordar e prevenir sobre os perigos que envolvem o uso da energia nuclear, promovendo uma conscientização sobre a questão.
Na mesma linha a Associação Hibakusha Brasil pela Paz, criada por Morita, visa informar os jovens sobre a importância da construção de diálogos na resolução de conflitos e o perigo da radiação para a vida do ser humano. A associação participa do projeto “Sobreviventes pela Paz” , iniciativa que busca através de vários espetáculos colocar em cena: “indivíduos que experienciaram grandes genocídios e, ou suas histórias, no intuito de sensibilizar o público e provocar reflexão sobre a guerra e a importância de se propagar e manter a paz”. Assim, em um espetáculo teatral-documental, os sobreviventes da Hibakusha Brasil pela Paz contam suas lembranças e como fizeram para sobreviver a bomba atômica de Hiroshima, superar dificuldades e recomeçar a vida no Brasil.

Tudo começou quando o diretor Nagai soube que 116 sobreviventes da bomba residiam em solo brasileiro. Assim, teve a ideia de montar uma peça com estas histórias, que são contadas pelos próprios sobreviventes, que atuam, dançam e cantam em cena. A próxima apresentação do grupo será dia 1 de junho em Campinas, São Paulo. “O projeto teve início em 2012 quando eu fazia parte de um grupo teatral, do qual havia sido contemplado por um incentivo da Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo. A pesquisa teve por objetivo abordar toda a imigração japonesa no Brasil, com temas que eram desconhecidos e tabus da comunidade nipo-brasileira. Temas esses que não foram abordados em livros oficiais sobre a imigração e muitas vezes até evitados.
Foram desenvolvidos 10 espetáculos teatrais, colocando os próprios nipo-brasileiros em cena, protagonistas de suas histórias. Minha avó imigrou de Hiroshima para o Brasil ainda bebê, antes da Segunda-Guerra. Eu sempre achei que esta questão foi pouco explorada com profundidade na literatura, cinema e principalmente nas artes cênicas. Decidi abordar o tema, mas a priori com filhos ou netos de sobreviventes. Nunca sequer imaginaria que ainda existiam sobreviventes e ainda por cima aqui no Brasil”.

Desta forma, ele começou um trabalho de pesquisa e montou um roteiro que levou quatro meses para ser elaborado. “A pesquisa total durou um ano. Então, pela primeira vez em 2013, ocorreu um feito inédito no país (e no mundo), estreamos o espetáculo com os próprios sobreviventes da bomba atômica de Hiroshima no palco. Desde então não paramos mais, estamos na 18ª apresentação, sendo visto por mais de 4.000 pessoas em cidades como São Paulo, Curitiba e Bauru. Em junho, iremos para Campinas no interior de São Paulo. Fizemos uma vasta pesquisa e descobrimos para minha surpresa, que nunca ninguém realizou esse feito, nem mesmo no Japão, onde se concentra a maior parte dos sobreviventes de Hiroshima e Nagasaki”. Segundo Nagai, em 2016 a principal TV estatal japonesa NHK fez uma grande matéria jornalística, acompanhando os ensaios, making off, reuniões, até o momento da apresentação.
Contudo, no início, o também ator demorou para conquistar a confiança dos sobreviventes. Com muita insistência, eles acabaram concordando. Assim, o grupo já percorreu mais de 40 países, divulgando a cultura de paz. Nagai ainda conta que no começo, durante a sua pesquisa, teve dificuldade de lidar com a situação. Sendo muito sensível, os relatos acabavam por atingi-lo de certa forma. Teve problemas de insônia, falta de apetite, vômito e chorava muito com os relatos que ouvia. Foi preciso buscar um certo distanciamento para continuar com o projeto. Mas o esforço teve resultado, contando em grande parte com a dedicação incansável dos próprios sobreviventes à causa. “Bonkohara, uma vez, fraturou a coluna, tentando levantar um piano em sua casa. Mas, mesmo assim, fez o espetáculo com um colar cervical, com dores e até dançou como planejado”, conta ator.
O espetáculo fala do período anterior, durante e depois do ataque nuclear. Particularidades da vida dos sobreviventes também são inseridas na narrativa, incitando uma conexão maior com o público. Atualmente, há negociações para levar a peça para Nova Iorque, Buenos Aires e Rio de Janeiro. E, ainda que já estejam com idade avançada, nenhum dos participantes parece destinado a interromper as atividades. “Com meus 95 anos, posso dizer que sou um homem de muita sorte. O mundo precisa de paz e esta é a minha meta de vida: passar a mensagem de um mundo que viva em paz, sem armas nucleares. Testemunhei a bomba de Hiroshima. Cheguei no Brasil e pude ter uma vida feliz. Serei sempre agradecido aos brasileiros por terem acolhido a todos nós”, conta Morita, ex-soldado militar que servia em Hiroshima no dia que a bomba foi jogada sobre a cidade.
“Em março de 1945, minha família mudou para Hiroshima. Eu tinha cinco anos na época. Na hora do ataque nuclear, estava com o meu pai. Vi um clarão que pareceu surgir do nada, e depois o telhado e as janelas do escritório onde meu pai trabalhava voaram para longe. Nós estávamos todos machucados, sangrando, mas voltamos para casa. Ela tinha permanecido intacta, apesar da explosão. A bomba caiu a 600 metros de nossa residência e, por isso, a temperatura estava alta. As pessoas machucadas, com partes dos corpos queimados, a pele praticamente solta, pediam ajuda, pediam por água. Minha irmã e mãe não voltaram para casa, então saímos para procurá-las.
Pela cidade, em especial onde a bomba caiu, tudo estava queimado. Dentro de um bonde, tinham pessoas carbonizadas. Havia cinzas por toda parte. Uma das memórias que mais me impactou e que nunca esqueci foi a do rio Otagawa, local onde caiu a bomba, que estava cheio de corpos. Locais onde tinham casas, viraram um deserto de cinzas. No dia seguinte, meu pai decidiu que devíamos ir para o interior, onde meu irmão mais velho estava estudando. Na saída, lembro dos soldados recolhendo corpos para serem queimados”, relata Bonkohara que se emociona com suas lembranças.
O projeto, segundo Nagai, visa também mostrar que a cultura brasileira é bem diversificada, múltipla, criativa e rica. “O Brasil tem uma diversidade enorme, mas infelizmente pouco é mostrado e valorizado pela sua própria população e governo. Digo isso por experiência própria, pois durante nossa apresentação no Sesi de Curitiba, em setembro do ano passado, vieram duas americanas só para assistirem ao espetáculo, uma de Nova Iorque e outra de Nova Jérsei que ficaram sabendo do evento através do Facebook. Elas nunca estiveram no país antes”.
A causa dos sobreviventes ainda enfrenta muitas dificuldades em razão dos constantes revisionismos históricos, ou omissão da geração atual e passada em contar aos mais novos as graves consequências de uma guerra, assim como da energia nuclear. No próprio Japão, atualmente, parece haver um certo desconhecimento sobre os horrores da bomba e da guerra. “O governo atual japonês é conservador e almeja tirar a base americana do país e restabelecer as forças armadas japonesas. Lembramos que ao perder a guerra, a constituição do país foi mudada pelos norte-americanos, proibindo haver forças armadas de ataque e bombas nucleares, apenas um exército mínimo para defesa. Há várias ONGs no Japão hoje contra o armamento e as usinas nucleares. Contudo, o desconhecimento do passado entre os mais jovens ainda é muito grande, pois nas escolas japonesas e estadunidenses não se ensina sobre isso.
É difícil o algoz ensinar às vítimas e seus descentes sobre os horrores do passado. Este revisionismo histórico atual também é um grande perigo. Esse projeto não tem objetivo mostrar uma outra visão sobre o Japão daquela época, ele é fiel ao que ocorreu. Foi uma decisão equivocada do governo do Imperador Hirohito em optar pelo militarismo-expansionismo. Assim, o objetivo é relatar o resultado das decisões que foram tomadas: entrada na Segunda-Guerra e duas bombas nucleares sob seres humanos, em sua maioria crianças, mulheres e idosos. Nosso intuito é mostrar a visão da vítima através de sensações, imagens e uma narrativa poderosa no palco, como se o público fosse transportado para o local e horário. Com esta grande catarse, com alto poder de sensibilização busca-se atingir profundamente a ‘alma’ do espectador e despertar sua consciência para a insanidade da guerra e a importância da cultura de paz”, explica o diretor Nagai.
No entanto, a Associação Hibakusha Brasil pela Paz obtém bastante apoio de sobreviventes residentes no Japão, que como eles, são contrários a bomba atômica e as usinas nucleares. Em especial, pessoas que residem na cidade de Tóquio, Osaka, Nagasaki e Hiroshima seguem dando suporte às iniciativas dos sobreviventes residentes no Brasil. Sabe-se hoje que o ataque nuclear em si não era necessário, pois o Japão já não tinha condições de continuar com a guerra. Contudo, a bomba foi um aviso direto aos soviéticos, iniciando uma nova fase da história: a Guerra Fria.
“A bomba nuclear foi um teste em seres humanos, tanto que elas obtinham diferentes constituições. A de Hiroshima era de urânio enriquecido e a de Nagasaki tinha plutônio. E as duas cidades têm geografias diversas. Nagasaki é praticamente toda em relevo, já Hiroshima é plana e cortada por rios. Hiroshima tinha aproximadamente 400 mil habitantes. E Nagasaki tinha cerca de 260 mil habitantes. Então se tratou de um teste em cenários diferentes. No livro Hiroshima e Nagasaki: Testemunho, Inscrição e Memória das Catástrofes, a psicóloga Cristiane Izumi Nakagawa cita relatos do próprio alto escalão norte americano falando ao presidente Harry S. Truman que não era necessário jogar a bomba. Foi um conselho do próprio General Douglas MacArthur. Então, é curioso que o Estados Unidos não tenha estado no banco dos réus após o fim da guerra”, salienta o diretor Nagai.
Além do ataque nuclear, o Japão teria outro desastre que marcaria a vida de outra cidade no país. O acidente nuclear de Fukushima Daiichi deu-se na Central Nuclear de Fukushima I, em 11 de março de 2011, em razão do derretimento de três dos seis reatores nucleares da usina, que foi atingida por um tsunami, provocado por um maremoto de magnitude 8,7. “Eu estive no quinto aniversário do acidente de Fukushima, na cidade. Com a crise econômica, os jovens estão preocupados em ter emprego e se falar sobre o acidente nuclear atrapalha conseguir uma colocação, então não se comenta sobre este assunto. O governo japonês é a favor da energia nuclear e há poucos pesquisadores e universidades falando sobre as consequências da energia nuclear como o câncer. Então, a situação é bastante complicada”, conta a diretora do Festival Uranium Márcia Gomes de Oliveira.

O evento cinematográfico, que luta para ter patrocínio até hoje, chega no seu décimo ano de programação, alertando sobre o perigo da energia nuclear. Para celebrar a data, pretende-se comemorar com uma apresentação do projeto “Sobreviventes pela Paz”. O festival também endossa a iniciativa de Rogério Nagai em sua Petição Internacional que almeja buscar apoio popular e pressionar os países que não assinaram o Tratado de Não Proliferação Nuclear, a participar dele.
Na mesma linha, o ex-vereador de São Paulo, co-fundador do Fórum Social Mundial, e ganhador do Prêmio Right Livelihood Award (conhecido como Nobel Alternativo) Chico Whitaker tem uma petição, já com mais de 14 mil assinaturas, que visa pedir auditoria de Angra 3, que, segundo o documento, está sendo reconstruída com tecnologia defasada da década de 1970, e as paredes de concreto da usina, não tem a espessura necessária. “Há outras questões importantes como os mais de 3 mil testes de bomba atômica no mundo. No Brasil, há uma barragem de rejeito de urânio em Minas Gerais que pode causar acidentes, já imaginou um brumadinho radioativo? Por isso, o Festival Uranium de Cinema salienta que esta discussão é de todos, da dona de casa às autoridades políticas”, relata Oliveira.
O projeto “Sobreviventes pela Paz” planeja seguir com suas atividades. Conforme Nagai: “as palestras sempre ocorrem e sempre irão ocorrer enquanto os sobreviventes estiverem vivos. Essa foi a promessa que eles me fizeram, pois eles encaram isso como missão de vida: passar para a próxima geração o que aconteceu com eles, para nunca mais ocorrer no presente e no futuro. A missão deles é também a minha missão, como artista e cidadão. A experiência é das melhores possíveis, pois além de se sentirem muito úteis, com o espetáculo atingem um número maior de público, promovendo interatividade com elementos musicais e audiovisuais em cena. No teatro consegue-se acessar camadas muito mais profundas e complexas de emoção, coisa que em uma palestra seria impossível”.
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