Game of Thrones: o espectro da revolução e da tirania sob a visão liberal

Crédito: The Public Medievalist.

A cinematografia em diversos momentos expõe os princípios basilares de uma sociedade ou uma determinada visão acerca de conceitos políticos como tirania, despotismo, autogoverno e revolução. O seriado produzido pela HBO, Game of Thrones – Jogo dos Tronos – ao abordar estes temas, expõe nu o liberalismo ocidental e reafirma seus princípios norteadores contra qualquer alternativa política e social via revolução. A última temporada do seriado Game of Thrones, alvo de controvérsias e críticas dos fãs, consuma toda uma narrativa realizada desde os primeiros episódios do seriado que poucos olhares atentos enxergam.

A sensação de frustração dos espectadores devido ao papel assumido, especialmente pela personagem Daenerys Targaryen, que de rainha ’’quebradora de correntes’’ tornou-se uma tirana insana, levou a um misto de sentimentos visto nas redes sociais, que perpassam desde aqueles que concordam com o final, embora com críticas, a até mesmo os que acusam os diretores David Benioff e Daniel Weiss de machismo. Pois, acabam por elevar outros personagens masculinos a condição de lideranças ’’racionais’’, mediante ao temperamento ’’mais passional’’ de Daenerys.  Contudo, para compreender este final nada incrível, e nem novo, é preciso recorrer aos fundamentos basilares da sociedade ocidental que explicam o desenvolvimento e o fim do seriado.

Crédito: Pinterest Mike Miles.

Em primeiro lugar, o seriado baseia-se na série de livros do escritor George R. R. Martin, “As Crônicas de Gelo e Fogo”. Os livros foram obras escritas em um determinado período, e possuem sua própria relação temporal, perpassando a leitura ideológica do autor subordinada a sua relação com o mundo. Portanto, é natural que com o seriado cinematográfico sendo dirigido por outras pessoas, em um período histórico diferente, haja adaptações e mudanças, fazendo com que a série não seja necessariamente fiel aos livros. Também é importante nunca esquecer a pressão hollywoodiana por audiência, que neste caso, tem considerável peso nos rumos tomados pelo seriado.

Em segundo lugar, é importante saber que tanto David Benioff, quanto Daniel Weiss são membros de famílias aristocráticas de ascendência alemã nos Estados Unidos. O primeiro foi autor do roteiro de um dos maiores sucessos cinematográficos dos anos 2000, o filme “Tróia”. Um filme que destaca uma visão ufanista de ocidente, e evidencia o debate existente no cinema naquele período entre os ’’inimigos’’ e os defensores da civilização, expondo de maneira forte como em outros filmes da época, a ideia levantada por Samuel Huttington no período pós-Guerra Fria, em sua obra ’’Choque de civilizações’’, isto é, a inevitabilidade de um conflito entre não ocidentais e ocidentais. Benioff ainda é filho de Stephen Friedman, que para além de sócio da gigante Goldman Sachs, foi assessor do Conselho Consultivo de Inteligência Presidencial dos Estados Unidos de 2005 à 2009- segundo governo George W. Bush.

Crédito: Mercado Livre.

Diferente é a ascendência do escritor George Martin, que embora de família imigrante também, não era rica. Ele a exemplo de Daniel Weiss começou a carreira na ficção científica literária que fazia grande sucesso nas décadas de 1960 e 1970, devido às missões espaciais dos EUA e URSS. Contudo, a semelhança de vários autores e diretores, volta-se para a Idade Média na década de 1990, e escreve os livros que deram vida ao atual seriado Game of Thrones. Alguns importantes dados sobre os livros de Martin e da série devem ser levados em consideração para a compreensão dos rumos da produção:

1- A obra do escritor ainda não foi inteiramente publicada, tendo sido dividida em sete partes divulgadas paulatinamente desde 1996, onde o último livro foi publicado em 2011, justamente quando o seriado teve início. Ou seja, o seriado terminará antes mesmo de todos os livros serem conhecidos, estando condicionada aos roteiristas da série, e não somente ao autor.

2- Outro dado importante é que a série tem por base a Guerra das Duas Rosas– um conflito originado das lutas pela sucessão dinástica entre duas casas nobres inglesas, York e Lancastre no século XV-, o que denota fundos históricos para a construção do seriado, cuja base é a formação da Inglaterra no período moderno- um dos berços da pensamento ocidental.

Assim chega-se aos últimos episódios, onde ocorre a revelação final do caráter de Daenerys Targaryen a despeito de toda a expectativa para o fim feliz onde ela e John Snow terminassem reinando conjuntamente, ou apenas ela. No entanto, esperar isso de todo um cenário no seriado construído em torno de Daenerys é um equívoco. Aqueles que possuem uma memória mais ’’fresca’’ talvez lembrem como Daenerys matou de maneira fria todos os chefes dos Dothraki– espécie de tribo de origem asiática-, crucificou os senhores de escravos na cidade de Meereen- localizada no continente fictício de Essos-, ou como executa Randyll Tarly– pai de Sammuel Tarly, amigo de John Snow- junto com o filho, na temporada anterior por negar-se a reconhecer Daenerys como rainha.

Logo, a execução de lorde Varys e a prisão de Tyrion Lannister, braço direito da rainha- uma espécie de conselheiro real-, para não falar da destruição da capital Kingslanding, não eram os únicos, e nem seriam os últimos atos ’’desmedidos’’ da ’’rainha mãe dos dragões.’’ A construção desta personalidade violenta e tirânica em Daenerys é recorrente na mesma medida em que ela é construída como a rainha ’’quebradora de correntes’’, desenvolvendo entre os telespectadores uma espécie de dualidade moral que reforça aspectos de conceitos políticos liberais sobre a tirania, associada à ideia de Revolução- uma ideia de base jacobinista.

Tyrion Lannister e Lorde Varys pouco antes da execução. Crédito: mondrian.mashable.com

Isso leva a uma narrativa clássica liberal de determinados conceitos políticos como tirania, despotismo e autogoverno que é muito forte ao longo de todo o seriado, perpassando desde o golpe sucessório que gera a instabilidade geral, realizado contra a casa Baratheon, ao exemplo clássico de despotismo de Geoffrey e Cersei Lannister sobre as províncias rebeladas após o golpe, em especial o norte por causa da execução de Need Stark– chefe da casa Stark que governa a região. Apenas mergulhando no pensamento liberal é que se obtêm respostas deste cenário final do seriado que explica em grande medida a sociedade ocidental.

Porque Daenereys é construída como contraponto a Cersei Lannister, e na hora da mudança radical- revolução-, a mesma se prova a implacável tirana? Simples escolha dos diretores ou uma afirmação político ideológica sobre valores construídos ao longo do seriado? Recorrendo-se aos pensadores clássicos liberais europeus dos séculos XVII à XIX para refletir sobre a construção de Daenerys, e sua a relação entre Estado, liberdade e indivíduo é possível uma resposta profunda que explica tal opção dos diretores, e que tem como modelo a análise profunda do filosofo esloveno Slavoj Zizek sobre a trilogia do herói Batman de Christopher Nolan.

Batman e o vilão Bane em Batman, O Cavaleiro das Trevas Ressurge. Crédito: http://www.casasbahia-imagens.com.br

Importante é ressaltar que a pedra angular do liberalismo é o direito a propriedade nos sentidos infinito e finito, que tem como premissa que a verdadeira sociedade liberal é aquela em que apenas um grupo de homens pertencentes à comunidade dos ’’livres’’ possui amplo poder de propriedade e de autogoverno. A liberdade liberal não é submissa a nada, mesmo a um monarca, reflexão que tanto Montesquieu, quanto John Locke propõe ao pensar a separação de poderes e o parlamentarismo como melhor sistema político para os ’’povos livres’’.

Segundo os mesmos, apenas servos e escravizados submetem-se a senhores, que neste caso precisam existir para que haja a comunidade dos ’’homens livres’’. Não é por acaso que John Locke é um ávido defensor do escravismo atlântico, e Montesquieu- ainda que crítico do escravismo- porém apenas no caso da metrópole- defende um novo modelo de colonização nas posses francesas nas Américas, o que viria a constituir o conceito de colônia atual associada à exploração, que deveria possuir diferenciado status político. Partindo do ponto de vista liberal, os conceitos de tirania, despotismo e autogoverno são determinados pela relação com a propriedade no sentido infinito.

Apesar da maioria dos liberais ver o autogoverno dos ’’homens livres’’ como o ideal, desde Locke até John Stuart Mill, o despotismo será por vezes considerado importante para o avanço da sociedade. Adam Smith, um dos cânones do liberalismo defende o despotismo para dar fim ao sistema escravista, assim como o liberal inglês Stuart Mill defendeu a ditadura militar dos nortenhos sobre os confederados nos EUA, porque garantia o progresso da sociedade sulista. Apenas a tirania é considerada a pior forma de governo, advinda e aplicável apenas a povos subalternos que ’’não gostam’’ da liberdade ou não são ’’livres’’.

Foi aqui inclusive onde nasceu a definição de despotismo esclarecido, que é utilizada apenas para algumas monarquias absolutas europeias do século XVIII, pois ali existia em parte a liberdade liberal- isto é: o respeito ao direito de propriedade pelo monarca. Apenas os países não europeus eram considerados tiranias- povos não ’’apegados à liberdade’’-, porém alguns ficam em uma espécie de limbo conceitual devido a indefinições históricas- caso do absolutismo na Rússia que possui variações. O próprio conceito de tirania modificava-se de maneira parcial neste período, onde para além de abarcar a clássica ideia grega de um governo autoritário de base popular, passa a ser identificado com um governo que viola as liberdades liberais, onde um homem ou grupo sobrepõe sua liberdade individual sobre os demais iguais livres.

Na definição liberal para a tirania, o despotismo e o autogoverno existem precondições, onde apenas reinam determinados modelos de governo entre povos que se apegam, ou não a liberdade. E é aqui que chegamos no Game of Thrones. No seriado, Daenerys jamais foi constituída enquanto uma rainha natural de Westeros– continente onde residem os Sete Reinos. Seu exílio e casamento com o líder dos Dothraki, a adoção de outros modos culturais de vida, inclusive proclamando-se como rainha de povos estrangeiros, contrapõe sua personagem de maneira imagética e ideológica a todos que vivem nos Sete Reinos. Este contraponto é exposto na maneira como é tratada a vida nas cidades estrangeiras e em Westeros, com a aparição de temas como escravismo- algo que não existe nos Sete Reinos-, a prática de execução- algo que ocorre em Westeros apenas com Need Stark-, jogos violentos entre outras coisas.

Imagem da crucificação dos senhores de escravizados em Meereen. Crédito: gameofthronestourcroatia.com

Significativo é o período onde Daenerys reina na cidade de Meereen, pois ali aprende a utilizar a prática de execução e violação de liberdades individuais em nome da ordem- algo que não é alvo de reflexão em várias análises. Sempre é bom lembrar que para os liberais, a tirania é uma forma de governo que apenas triunfa entre povos não livres. Tyrion inclusive chega mencionar isso na conversa com John Snow, na prisão, no último episódio, ao comparar a maneira como Daenerys tratou os povos de Westeros à semelhança dos senhores de escravizados em Ástapor– cidade de Essos- e Meereen. Logo, existe um entendimento que Daenerys não estava libertando Kingslanding– capital dos Sete Reinos-, mas subjugando pessoas livres como fora feito nas outras cidades conquistadas.

Curioso é observar a feição natural dos habitantes de Meereen e Ástapor, que varia de árabes para africanos, que não existem em Westeros, assim como os Dothraki. Nestes locais inclusive são reforçados estereótipos construídos historicamente sobre estes povos, como por exemplo, o exótico e traiçoeiro árabe, e o escravizado e ’’passional’’ africano- vale lembrar que na Idade Média o escravismo não era étnico-racial como aparenta no seriado.

Crédito: Watchers on the Wall.

Cersei Lannister, em contraponto a Daenerys, também é construída negativamente no seriado, pois é a grande arquiteta do caos do período autoritário e das guerras. A ambição por igualdade e poder, algo que apenas ’’homens livres’’ não possuem, causou todas as tragédias ocorridas desde a execução de Need Stark, na primeira temporada. Portanto, deste ponto reside sua posição de vilã déspota, mas não tirânica. A ação de Daenerys dentro do ponto de vista liberal em equiparação a Cersei, torna-a um mal pior, pois a rainha ’’quebradora de correntes’’ trata ’’homens livres’’ como súditos, algo que apenas poderia advir de uma posição tirânica, isto é, de pessoas que não gostam e nem respeitam a liberdade dos iguais.

Chega-se então ao ponto crucial, onde não somente os ideais ’’igualitários e libertadores’’ carregados por Daenerys, mas a sua maneira tirânica de governo e origem estrangeira que ’’condena’’ a ’’Revolução’’, que a mesma propõe. Diria Immanuel Kant, que não há como equiparar pessoas auto esclarecidas e não esclarecidas. isto é, os apegados à liberdade e os que se sujeitam a outros homens. Cometer execuções e violações a liberdade em um governo tirânico fora de Westeros é diferente de fazer isso sobre Kinglanding, pois a tirania apenas se aplica a povos não livres. Aqui se retorna a associação do conceito de revolução com tirania, a dualidade jacobinista que o liberalismo vê algo demoníaco.

Immanuel Kant. Crédito: Aventuras na História – Uol.

Assim, o ocidente é considerando o portador da liberdade liberal e do autogoverno de ’’homens livres’’, e que no seriado se referencia em Westeros, podendo ser possível dizer, sem medo de errar, que ao associar à ideia de revolução a tirania,  reafirma-se o ocidente e o liberalismo como a única via civilizatória possível, consolidada não na ideia de liberdade estendida, mas de autogoverno dos ’’povos livres’’. O que Tyrion, no último episódio, chamou de quebra da roda, isto é, o sistema que sustenta o Reino dos Sete reinos, foi construído não pela ’’revolução’’ de Daenerys, imposta pela tirania, mas pelo autogoverno das casas que não se submeteriam mais a um rei por hereditariedade, mas por livre escolha entre iguais.

Significativo é ver o tom revolucionário nos personagens que acompanham Daenerys, e seu posterior abandono. Tyrion, antes de ser preso, disse há não muitos episódios atrás, em uma conversa com lorde Varys, que jamais trairia a rainha por achar que ela abarcava todos os seus ideais, isto é, um mundo diferente- porém o jacobinismo o afastou de Daenerys. Tyrion que era o mais odiado da família por sua condição física de anão!

Tyrion Lannister. Crédito: The Atlantic.

Nunca se deve esquecer que o exército dos imaculados era formado de ex-escravos, que igualmente acreditavam na liberdade, porém devido à condição de estrangeiros não livres, viam apenas na tirania o meio para isso. O próprio John Snow, que até poucas temporadas não passava de um bastardo que cresce no seriado mediante a uma história particular, apenas agora tinha tornado-se um potencial candidato ao trono de ferro, por sua ascendência direta do último rei Targaryen, embora igualmente acreditasse em Daenerys.

Cena da escolha do rei no conselho das casas nobres dos Sete Reinos. Crédito: cnet1.cbsistatic.com

Contudo, ele se afasta ao perceber a tendência jacobinista. Eis então que a trama polariza entre habitantes de Westeros contra os estrangeiros no fim, e expõe nua não apenas uma luta entre casas, mas entre ideologias! O que escolhem John e Tyrion frente à tirania? Uma reforma política sem a revolução, levada a cabo por Daenerys. Não é por acaso, a escolha de Brandon para o trono, muito menos com o objetivo de trazer alguma representação liberal- caso alguém esteja com isso em mente-, pois ele representa o triunfo do autogoverno dos livres que preconiza Locke. Ele era natural de Westeros- nem nascido ou criado por estrangeiros-, não era um Targaryen, nem um Lannister, não almeja ideais ’’revolucionários’’ e ambições despóticas, e mantém a ideia de linhagem e tradição como guias das relações com a ideia da monarquia eletiva.

A própria Yara Greyjoy, chefe das Ilhas de Ferro– conjunto de ilhas habitadas pelos homens de ferro-, membra do conselho que escolhe Brandon como rei, e até então fiel Daenerys pelos mesmos princípios revolucionários, adere à proposta vendo não apenas a impossibilidade de manter-se fiel a rainha morta, como vê na monarquia eletiva uma saída por respeitar os direitos dos homens das Ilhas de Ferro, considerado ’’povo livre’’ e digno de autogoverno. Algo que, por exemplo, não foi concedido ao exército dos imaculados que saem de volta para Essos.

Daenerys Targaryen frente a seu exército no último episódio. Crédito: http://www.telegraph.co.uk

A vitória ’’revolucionária’’ de Daenerys tratava-se também de reforçar a posição feminina, contudo significa o triunfo de tudo aquilo que o ocidente busca contrapor-se, reforçando a ideologia liberal racista- inclusive colonial de porta voz das liberdades individuais, incumbido de uma missão civilizatória. Neste sentido, a representatividade dos negros chegou a ser parcialmente discutida na mídia, mas de maneira rasa, cuja centralidade foi apenas em uma discussão de representatividade, em uma matéria que poucos irão lembrar no jornal The Guardian que relembra críticas no mesmo sentido feitas em 2017 ao seriado.

Contudo, aspectos centrais como o simbolismo imagético das relações político-ideológicas, oriundas de uma ideologia colonial de sólida base liberal não foram levantadas, deixando o debate raquítico- algo que se vê também agora. Para os liberais, a instituição de um governo de respeito à liberdade individual, isto é, o triunfo do autogoverno dos ’’povos livres’’,  contrapõe-se ideologicamente à revolução, que não apenas é ruim, mas associada à tirania, não sendo um sistema admissível para ’’homens livres’’. O liberalismo vê como ameaçador a igualdade entre povos submissos e livres, cuja base está na origem étnico-racial, que inclusive justifica o término de Brandon no trono, que sempre foi um dos personagens mais marginalizados na disputa do poder.

O artigo do jornal inglês “The Guardian” tem o título: “Não há negros no Games of Thrones: por que a fantasia na TV é tão branca:?”. Para ler o artigo em inglês, clique na foto. Crédito: The Guardian.

A máxima de que o melhor governante é aquele que não quer o poder encaixa aqui perfeitamente, pois abre alas para parafrasear-se Henry Thoreau. Outra máxima, que o melhor governo é  aquele que menos governa. O reforço da violência, irracionalidade e submissão como símbolos de povos não ocidentais, portanto não liberais, é levantado o tempo inteiro no seriado entre aqueles que não habitam Westeros. Detalhes que a cada episódio são trabalhados pelos diretores da série, como já visto na biografia pessoal, são entusiastas da ideia do livro “Choque das Civilizações”. Isso leva a uma premissa conclusiva sobre o seriado, onde o mesmo busca reforçar a importância e superioridade dos valores culturais, políticos e ideológicos da sociedade ocidental frente a outros povos, ou o impedimento de qualquer tipo de mudança da tradição.

Muitos telespectadores acharam chocante a última temporada justamente neste ponto, pois entusiastas da revolução social, não conseguiram enxergar a moral liberal deste termo conceitual construída não apenas com Daenerys, mas todos aqueles que vinham com ela. Os diretores tinham este objetivo desde o início, pois como já dito a rainha ’’quebradora de correntes’’ não muda em curto prazo, o que leva a bem sucedida transmissão da mensagem de que o liberalismo e o ocidente são a única via possível de desenvolvimento histórico e civilizatório- mesmo por ocasião de uma pessoa despótica no poder como Cersei.

Henry Thoreau. Crédito: Projeto Colabora.

O despotismo de Cersei, advindo de sua posição feminina em ’’busca de poder’’, é mais ’’admissível’’ que a tirania de Daenerys, pois enquanto a primeira respeita parte das liberdades individuais e regras de Westeros, a segunda desconhece as tradições, sendo incapaz de tratar os habitantes como ’’homens livres’’. Qual a conclusão possível disso tudo? Pessoas não livres são incapazes de governar com base nas leis ou tradições. Apenas os ’’homens livres’’, isto é, o ocidente consegue reformar e governar sem a necessidade de revoluções, por meio do autogoverno, algo impossível entre povos que não valorizam a liberdade e impõem mudanças por meio da tirania, violando as liberdades individuais dos ’’homens livres’’.

Cersei Lannister. Crédito: s2.glbimg.com

A visão machista das mulheres que gera a crítica ao final do seriado não pode ser entendida, sem levar em consideração aspectos centrais da ideologia liberal que tem como premissa tratar outras pessoas como propriedade, impondo aos povos não ocidentais e não liberais a posição de submissos, e neste caso as mulheres também- mesmo as metropolitanas. Ora, não se deve esquecer as atitudes ’’passionais’’ tanto de Daenerys, quanto de Cersei que cometem coisas inadmissíveis no ocidente, como por exemplo, incesto que chega a ser admitido no interior das famílias nobres, mas a culpa e a maldição recai sobre as mulheres- Cersei foi amaldiçoada por isso.

Porém, o inadmissível é que as mulheres queiram levar consigo outros povos para uma mudança mais radical que anule mesmo a tradição dos ’’homens livres’’, ao submetê-los a tirania. Embora ambas sejam criticadas, o mais pesado bombardeio recai sobre Daenerys, pois apesar dos ’’desvios’’ de Cersei, a ’’revolução’’ levada a cabo por povos estrangeiros era muito mais perigosa. O triunfo do autogoverno sobre a revolução, ‘‘tirânica’’ por ’’natureza’’, não é apenas um simples jargão que pode vir a resumir a série, mas toda a tradição política ocidental desde a Revolução Gloriosa de 1688– caracterizada por ter ocorrido sem execuções.

O horror do ocidente pela mudança radical, acompanhado de um culto ao reformismo liberal contra o jacobinismo, também não se trata de uma recusa a mudanças radicais que gerem mortes e destruição, mas de rechaço a mudanças estruturais radicais geradas por questionamentos mais profundos, como foi o caso da Revolução Francesa– de onde nasceu inclusive o termo jacobinismo para caracterizar períodos revolucionários sangrentos. Neste caso, o autogoverno é a saída, que embora seja diferente de democracia, tanto no seriado, quanto no ocidente confundem-se dentro liberalismo propositalmente.

Pasmem que tal sinônimo solidifique a posição do ocidente no topo da ’’progresso humano’’, cuja construção ideológica no seriado traz uma narrativa poderosa. Uma construção que elevada a níveis mais extensos chega a ponto de cogitar que existam monarquias democráticas, imperialismos benfeitores e repúblicas democráticas cuja participação eleitoral popular ampliada é considerada tirania. Porém este já é outro tema.

Referências:

LOSURDO, Domenico. Contra- História dos Liberalismo. Editora Ideias & Letras, Aparecida-SP, 2006

Não existem pessoas negras em Game of Thrones: Porque só tem brancos na história?. In: The Guardian. Disponível no link: https://www.theguardian.com/tv-and-radio/2019/apr/06/there-are-no-black-people-on-game-of-thrones-why-is-fantasy-tv-so-white. Publicado em 6 de abril de 2019.

MILL, John Stuart. Sobre a liberdade. Coleção Saraiva de Bolso, Rio de Janeiro, 2011

_____. Utilitarianism. The Floating Press, Auckland-Nova Zelândia, 2009.

MONTESQUIEU, Charles Louis de. O Espírito das Leis. Editado por Martins Fontes, São Paulo, 2005.

HUTTINGTON, Samuel. O Choque de Civilizações. Editado por Objetiva, São Paulo, 1997.

SMITH, Adam. Lectures on jurisprudence. Editado Clássicos da Liberdade, Indianápolis-EUA, 1982.

ZIZEK, Slavoj. Ditadura do proletariado em Gotham City. In: Boitempo. 2012. https://blogdaboitempo.com.br/2012/08/08/ditadura-do-proletariado-em-gotham-city-artigo-de-slavoj-zizek-sobre-batman-o-cavaleiro-das-trevas-ressurge/.

Cinema:

“Batman Begins” (2005), Christopher Nolan.

“Batman: o Cavaleiro das Trevas” (2008), Christopher Nolan.

“Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge” (2012), Christopher Nolan.

“Game of Thrones: 8º Temporada” (2019), David Benioff e Daniel Weiss.

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por Anders Noren

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