
Russos por todos os lugares e lados, espalhados e infiltrados como agentes, hackers, e pasmem, até golfinhos. Ainda que possa parecer piada, ou tosco, é o que se vê todos os dias em debates e telejornais em todo o ocidente. Não satisfeita a nostalgia de resgatar a década de 1980, a Guerra Fria também parece ter consolidado-se no vocabulário midiático, contudo, junto a isso retorna com força, ainda que sorrateiramente o Mccarthismo. E o cinema tem sido um local profícuo para tais usos que constroem a ideia de um inimigo externo infiltrado, que embora neste caso seja os russos, é expandido de acordo com a abordagem.
Ainda que exista hoje o resgate deste papel dos russos- como ocorreu durante o período da Guerra Fria-, o cinema estadunidense nunca desfez o personagem de inimigo interno, útil tanto a política doméstica, quanto a externa estadunidense para manter um Estado policial. Em 1990, após a desagregação da União Soviética (URSS), os dois novos inimigos dos Estados Unidos, o narcotráfico e o terrorismo deixaram filmes memoráveis, embora não fizessem tanto sucesso quanto os filmes de ficção científica relacionados a invasão de espécies extraterrestres. Filmes como: “Indenpendence Day” (1996), “MIB: Homens de preto” e “Marte ataca” foram sucessos que marcaram a geração com apologia a militarização contra invasores extrarrestres.
Estes filmes retratavam a nova realidade da política externa estadunidense, envolta do neocolonialismo sob a batuta da teoria de ’’choque de civilizações’’. Onde imaginando que estes extraterrestres sempre eram agressivos e visavam destruir a ’’raça humana’’- aqui pode entender-se enquanto ’’civilização’’-, as respostas igualmente agressivas, mesmo belicistas tornam-se justificáveis para a sobrevivencia. Não por acaso, foi neste período em que os Estados Unidos fizeram seguidas intervenções em vários continentes e olhou para o Oriente Médio nos termos de um mundo inteiramente diferente, vendo-o como ’’alienígena’’ ao ocidente.
A partir dos anos 2000, os inimigos internos e externos foram parcialmente postos de lado, e surgiu a partir da crise hegemônica manifestada, especialmente depois de 2008, uma espécie de mal-estar que levou a produção de uma série de filmes apocalípticos, muitas vezes representada por desastres naturais. Contudo, pouco a pouco este espaço foi sendo reocupado por filmes que retomam o tema da espionagem com crescente nostalgia a Guerra Fria. Os russos voltavam a ser retradados como vilões maniqueístas que se infiltram no ocidente mesmo após o fim da URSS, especialmente após a divulgação midiática da operação “Programa Ilegais”, que levou a uma troca de espiões entre Rússia e Estados Unidos em 2010.

Não apenas no cinema, mas em diversas outras áreas, não apenas os russos, como os chineses passam a ser postos como vilões. Noticiários, documentários, longametragens e mesmo jogos eletrônicos miram estes personagens como os grandes inimigos da ’’paz democrática’’. Uma verdadeira cultura obsessiva e aversiva aos russos, onde vendo eles em todas as partes, reativa aos poucos uma velha ferramenta política utilizada pelos Estados Unidos na Guerra Fria para o combate de inimigos internos e externos: o mccarthismo. Por volta deste período, a Rússia já revigorada da ’’Terapia de choque’’ neoliberal, demonstrava que não se submeteria aos ditames do ocidente.
Organizada dentro do grupo BRICS, e uma das fundadoras da Organização para Cooperação de Shangai, mostrava-se no horizonte enquanto desafiadora da ordem unipolar. O cinema tão rápido quanto a estrutura estatal do país entendeu a necessidade da resgatar o velho inimigo sob novas roupagens. Foi assim que rapidamente aparecem filmes como “Codinome Cassius 7” (2011), “SALT” (2010), e mesmo filmes badalados como “Missão imposspivel” e “Velozes e Furiosos”, que inserem russos dentro de seu ambiente de maneira paulatina em posições anti-ocidente.
Desenvolvido na década de 1950 para reprimir os movimentos comunistas nos Estados Unidos, e qualquer tipo de dissidência que se opusesse ao stattus quo, o mccathismo ainda que fosse direcionado a política externa, afetou sobretudo as lutas políticas e sociais no país, que viveu sob Estado de exceção durante os anos em que vigorou esta política. Embora, ela jamais tenha saído completamente de moda, seu resgate atual dentro de um cenário de fascistização da sociedade ocidental traz um perigoso precedente não apenas para a sociedade estadunidense, mas para todo o mundo.
Neste cenário é que se insere os seriados “Stranger Things” e “Chernobyl” (2019), o primeiro desenvolvido pela Netflix e o segundo pela HBO, e ambientados na década de 1980, opondo duas sociedades de maneira extremamente radical. A coincidencia temporal de dois sucessos hollywodianos da década atual sugere que as semelhanças curiosas não param por aí, pois elas nos permitem dizer que não se trata meramente de delimitação de inimigos- neste caso os russos- mas a reafirmação do mccarthismo enquanto uma política necessária. Especialmente no seriado “Stranger Things”, onde notoriamente o púbico é mais jovem.

Mas, comecemos por “Chernobyl”, um badalado seriado cheio de polêmicas, e um aberto manifesto contra o socialismo que resgata o mais profundo anticomunismo. Este seriado, não apenas é recheado de esteriótipos sobre os russos e omite informações essenciais sobre a tragédia de 1986, como reproduz velhas propagandas divulgadas ao longo dos anos posteriores a Chernobyl no ocidente.
Os membros do Partido Comunista da União Soviética, e do governo soviético são tratados como meia dúzia de oportunistas, egoístas e carreiristas que não se importavam com nada, exceto a própria imagem. Valery Legasov encarna o ’’bom cientista’’ ’’perseguido’’ pelas autoridades soviéticas, suplantando todos os que estão a sua volta, lutando para diminuir a tragédia em Chernobyl- não existem provas de perseguição da KGB (Comitê de Segurança Estatal da URSS) ao cientista como o seriado aparenta. Outro importante aspecto de ser lembrado é que até o momento do suicídio de Legasov, as investigações sobre o desastre ainda estavam em andamento, portanto não se pode dizer que as autoridades soviéticas ignoraram suas colocações sobre a falha existente nos reatores da série Reator Canalizado de Alta Potência (RBMK) como a narrativa aparentou.

Comparativamente por exemplo, pode-se dizer que o desastre em “Three Mile Island” na Pensilvânia nos Estados Unidos em 1979 poderia ter tido efeitos tão catastróficos quanto Chernobyl- isolada na fronteira com a Bielorrússia-, por se localizar perto das principais cidades da costa leste. Embora com caracteristicas diferentes, o acidente soviético é resolvido com mais efetividade e seriedade que nos EUA, pois a evacuação da região foi feita de maneira mais ordenada e rápida, bem como o tratamento médico que foi dado em Cuba para os afetados pelo desastre. Na Pensilvânia a evacuação foi ordenada apenas no segundo dia de acidente. Nos Estados Unidos não se tem notícias de um mesmo tratamento aos afetados.
Contudo, para além destes fatos, a narrativa do seriado revigora a ideia da necessidade de atenção aos programas científicos desenvolvidos na Rússia, visto que, o país tem uma ’’tradição de cometer erros’’ e levar o mundo a desastres. Ao mesmo tempo, a exaltação da figura de Legasov resgata uma velha ideia ocidental sobre os cientistas soviéticos como vítimas do dogmatismo marxista que praticava uma pseudo-ciência no país desde os tempos de Iósif Stálin com Trofim Lisenko e Evgeni Varga, que teriam vitimado ’’bons cientistas’’ como Nikolai Vavilov e Andrei Sakharov.
O seriado reforça ainda a ideia de que os russos possuem uma tendencia natural ao autoritarismo, visto que ’’o liberalismo não se consolidou ali’’, algo que recentemente foi ’’dito’’ pelo próprio presidente Vladimir Putin durante a Cúpula do G20 em Osaka. Um elemento que foi explorado ao longo de todo o seriado, mesmo durante as reuniões da comissão responsável pela avaliação do desastre em Chernobyl com o então secretário geral do partido, Mikhail Gorbachev, que demonstrava uma posição dúbia não apenas em relação ao desastre, como o próprio ocidente- o mesmo Gorbachev que até pouco tempo era considerado um herói dos ocidentais.
Vale destacar que existe uma cena marcante no início do quarto episódio, onde um soldado do Exército Vermelho ao tentar evacuar uma idosa de uma fazenda próxima a Chernobyl, recebeu uma aparente ’’lição de moral’’, onde ela fez um discurso relativista do fascismo comparando-o ao socialismo. Discurso que levado as últimas consequencias leva a qualquer espectador crer que o ocidente e o liberalismo são a única real sociedade livre, enquanto que o socialismo e o fascismo são duas ideológias retrógradas que ficaram no século XX. Enfim, a culpa dos russos mentirem uns aos outros, existirem oportunistas e carreiristas que propiciaram o desastre no país, é a ’’falta’’ de liberalismo que ainda existe hoje por lá.

Para encerrar, sobre “Chernobyl” (2019), importante é notar o uso do vocabulário técnico e científico para esconder um discurso ideológico anticomunista. Para os expectadores comuns não é uma simples discrição ou discussão da tragédia, mas a reafirmação dos princípios ideológicos da sociedade da época- mesmo que estivesse sob a Perestroika– com tons críticos, onde a tragédia é apenas parte do cenário principal: o de um país em ’’decadência’’. Como nada foge a seu tempo, pode-se dizer que o seriado também é uma crítica ao atual governo russo que sofre iguais acusações, e é presidida por um ex-agente da KGB. Uma justificativa inclusive para o atual clima de Nova Guerra Fria entre a Rússia e o ocidente.
“Stranger Things 3” (2019) por outro lado, assim como “Chernobyl” (2019), resgata aspectos da Guerra Fria, porém de maneira mais aberta, e no quesito aspecto de reflexão das relações leste-oeste nesta última temporada é muito mais profundo e ideológicamente perigoso, não pela caricatura, mas pelo resgate e reforço de tons mccarthistas no cinema. A vilanização dos russos- o recorrente uso do termo russos maus– não merece uma análise tão profunda por ser algo já recorrente no cinema, e que foi discutido anteriormente, porém é importante dizer que os russos já eram personagens a parte neste seriado. Eles nunca estiveram centrais na história, que nas duas primeiras temporadas buscava caracterizar elementos dos anos 80 nos Estados Unidos- período final da Guerra Fria. Nesta última temporada, que por sinal teve um intervalo de dois anos, ocorreu uma virada radical, onde apresenta não apenas uma obssessão sobre os russos, mas a forte acentuação de uma apologia ao mccarthismo na sociedade estadunidense.

Durante a construção das duas primeiras temporadas do seriado, isto é, 2016 e 2017, o clima anti-Rússia da sociedade estadunidense ainda era algo em rápida expansão. Apesar de no fim da presidencia de Barack Obama o país ter sucumbido a uma guerra não declarada com a Rússia, em especial a partir de 2014, por ocasião do Golpe de Fevereiro de 2014 na Ucrânia. É durante o ano de 2018 que o clímax das tensões chegam no estado atual das coisas, quando o Consulado Geral da Rússia em São Francisco foi revistado pelo FBI no fim de 2017- uma grave violação da Convenção de Viena-, cidadãos russos são presos nos Estados Unidos acusados de espionagem no início de 2018, e o Russiagate chega ao ápice, apesar de existirem sérias dificuldades na consolidação da narrativa de ingerencia russa nas eleições. A terceira temporada de “Stranger Things” consome-se nesta conjuntura.
Neste seriado, também é possível ver a imagem do ’’bom cientista’’ que ficou vislumbrado pela sociedade de consumo estadunidense como uma criança. Onde a ciência desenvolvida pelos soviéticos mais uma vez é demonstrada como ’’irresponsável’’, apenas oriunda de povos que desconhecem a liberdade liberal ocidental. Outros aspectos como violencia, tortura e mesmo ausencia de inteligência e ênfase na força- caso da luta entre o Sheriff Hooper e o soldado russo que tomou conta do seriado-, não merecem muita profundidade. Porém, dois aspectos merecem uma análise mais profunda e reflexiva: o nacionalismo estadunidense, bastante ressaltado no seriado, que temporalmente se passa próximo do principal feriado do país, o 4 de julho; e o ideal Mccarthista, que para além de se apresentar de duas formas diferentes, é enfatizado de maneira deliberada.
O nacionalismo estadunidense é algo que sempre foi associado a ideia de cruzada civilizatória, luta pela ’’liberdade universal’’, ’’paz democrática’’, entre outros conceitos que formam a ideia do Destino Manifesto, existente desde o fim do século XVIII, colocando este país na vanguarda da defesa da liberdade- que se confunde com o ocidente e o liberalismo. O lançamento do seriado próximo a data principal do país, o Dia da Independencia, com elementos como luta contra os russos e espécies ameaçadoras advindas de um ’’submundo’’ pela sobreviencia do país, é uma reafirmação poderosa do nacionalismo.
Curiosamente, o único político que aparece no seriado, o prefeito da cidade de Hopkins, é quem permitiu a entrada dos russos com o uso das antigas instalações laboratoriais de experimentos científicos. A sátira aqui é bem clara, pois o único político nos EUA hoje acusado de ’’permitir’’ a entrada de russos espiões no país, pois foi ajudado pelos mesmos, é ninguém menos que o presidente Donald Trump. Ora, importante é sempre lembrar que apesar de ambientado nos anos 80, o seriado é norteado por muitas das referencias e contradições históricas atuais.

Em um raciocínio mecânico e rápido, pode-se resumir esta terceira temporada na seguinte narrativa: o portal entre os dois mundos do seriado apenas foi aberto por que os russos infiltrarem-se na cidade, a partir da permissão do prefeito, o que leva a conclusão de que todos os problemas advem dessa questão. Igualmente em mais um raciocínio rápido e comparativo, pode-se dizer que todos os problemas que ocorrem na sociedade estadunidense advem da presença dos russos, com da permissão das autoridades do país, que vendidas ao Kremlin, não são capazes de defender os interesses do povo estadunidense. Logo, isto significa que os cidadãos livres da sociedade estadunidense- como seus jovens e pessoas comuns- podem e devem defender o país contra os agentes internos e externos, mesmo que o governo omita-se. Aqui é que chega-se ao Mccarthismo.
Ele é apresentado de duas maneiras diferentes ao longo da temporada do seriado, sendo a primeira, mais aberta, isto é, os agentes infiltrados russos que devem ser desbaratados seja onde for que estiverem, e isso, apenas quem pode fazer é o cidadão comum, pois as autoridades estão corrompidas. Enquanto que a segunda maneira de sua apresentação é bem mais sutil, mas nem por isso menos tendenciosa, onde elementos de um submundo a partir da abertura do portal teriam ressucitado e adentrado em ’’hospedeiros’’ para a formação de um exército que tomasse a cidade e o mundo a partir de uma infiltração sorrateira.
Importante é perceber que os dois vilões- os russos e os elementos do submundo- nunca se encontram ao longo do seriado, mesmo que possuam objetivos semelhantes em alguma escala. Em virtude do inimigo comum, os cidadãos e adolescentes em torno da personagem “Onze” na cidade de Hopkins levantam-se contra estes ’’invasores’’. Logo, apesar de diferentes, em uma retórica simples e única, é possivel dizer que ambos os vilões apenas desejam destruir a sociedade estadunidense, e que cabe aos cidadãos comuns combater as ameaças estrangeiras infiltradas. Esta não é apenas uma metáfora do atual momento político dos Estados Unidos, mas o reforço de um discurso de Estado policial contra os elementos não estadunidenses, talvez até atividades antiamericanas; um princípio mccarthista.
Durante ainda a presidencia de Harry S. Truman, o Comitê de Atividades Antiamercianas– criado para combater o socialismo durante o fim da década de 1930- foi fortalecido mesmo com o fim da Segunda Guerra Mundial, onde o senador Joseph Mccarthy ganhou notoriedade na sua cruzada contra o comunismo. Professores, médicos, sindicalistas, políticos, atores e cantores foram afastados, presos e mesmo expulsos do país por suspeita de ligação com o comunismo, o próprio casal Julius e Ethel Rosemberg foram executados por suspeita de espionagem do projeto “Manhantan”, no auge do mccarthismo.
O Ato de Segurança Nacional de 1947, criou no país uma série de aparatos de segurança policialescos que visam prepará-lo interna e externamente contra o comunismo, considerado uma ameaça ao ’’mundo livre’’. Ressalte-se que o mesmo não era apenas encarnado no Partido Comunista da América, mas toda a tentativa de subversão a ordem política estadunidense, isto é, atividade antiamericana. As lutas sociais contra o fim da segregação racial nos Estados Unidos e mesmo as manifestações contra as intervenções na Coreia e Vietnã eram consideradas atividades antiamericanas.
De acordo com o historiador Luiz Alberto Moniz Bandeira, apesar dos Estados Unidos terem contribuído no combate ao nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial, isto acaba por abafar internamente estas ideologias dentro de seu sistema. Porém, de alguma forma, elas continuam a adentrar no Estado e transparecem em determinadas situações, como foi no período mccarthista. O Estados Unidos conservou no pós-guerra o máximo que pode de instituições de caráter fascista, como as leis Jim Crow de segregação racial, o Comitê de Atividades Antiamericanas, e mesmo atraindo para a órbita do ocidente antigas lideranças fascistas dentro e fora do país- Pietro Badoglio, Francisco Franco e entre outros.

Curiosamente, quem resgata a ideia de agentes infiltrados, atividades antiamericanas e a necessidade de cidadãos comuns estarem atentos a estrangeiros não é Trump e nem os republicanos, mas os próprios democratas com a sua histeria antirussa. Não se pode esquecer que a bandeira da ingerencia russa nas eleições de 2016, os pedidos de intervenção nos países do Oriente Médio e a guerra de sanções econômicas hoje, todas são oriundas dos democratas que usam tais acusações contra Trump apenas como retórica eleitoral para as próximas eleições presidenciais de 2020. Contudo, o mccarthismo é a sua principal arma.
Se para alguns pode parecer um grosso exagero dizer que o seriado reforça, inclusive apologeticamente o mccarthismo, basta ver a posição de protagonismo dos adolescentes e jovens. Na década de 1930, os regimes fascistas tinham um grande apelo a juventude para ser os olhos e ouvidos do país na luta contra a subversão, onde filhos denunciavam pais e parentes que discordassem ou duvidassem do regime. O que podem pensar o jovem e criança que veem seus iguais combatendo russos e elementos de outro mundo, se não que podem e devem defender o país contra ameaças externas? Se isso não parece algo tão gritante quanto a adultização das crianças e jovens ao longo do seriado, então a questão passa apenas por uma mera figura de linguagem?

Esta narrativa perigosa, ufanista e com caracteres fascistas que transparece não se trata do mesmo anticomunismo caricato da Guerra Fria da década de 1980. Se trata de um poderoso mccarthismo que após ser alimentado dia após dia na atual década, torna-se em um monstro com controle cada vez menor, e que tende para o fascismo clássico em uma geração inteira no ocidente marcada pelo encontro de diversas crises.
O 11 de setembro de 2001, apesar de ter conseguido criar um consenso autoritário nos Estados Unidos para a aprovação de leis de exceção, não conseguiu o mesmo com a Guerra ao Terror, utilizada com abertas intenções imperiais. A execução de Bin Laden em 2010 encerrou a perseguição global e arrefeceu a Doutrina Bush, que desde então não possuiu uma substituta a altura apesar da tendencia mccarthista acentuar-se com cada vez mais força. Pois, as instituições estadunidenses trabalham com a ideia de um Estado de exceção permanente onde as regras constitucionais são rasgadas e a institucionalidade entra em um estado crítico cada vez mais a vista de todos.

No período em que o mccarthismo vigorou nos Estados Unidos, Einsenhower, general da Segunda Guerra foi responsável por violações a liberdades individuais por ocasião da ação do Comitê de atividades antiamericanas; John Kennedy viveu sob a Crise dos Mísseis e foi executado por motivações ainda desconhecidas; Lindon Johnson esteve sob intensa turbulencia política e foi obrigado a ceder ao movimento negro que reclamava o fim das leis de segregação racial no país; e Richard Nixon que fora antigo membro do Comite de atividades antiamericanas não conseguiu concluir o segundo mandato. Isto significa que entre a presidencia de Harry Truman (1945-1952) e de Ronald Reagan (1980-1988), os Estados Unidos passaram por um período de instabilidade política e constitucional em virtude da política mccarthista que apenas vai arrefecendo a medida em que a URSS sofre um processo de enfraquecimento.
Para encerrar, Stranger Things ambienta-se em um período de extrema convulsão social nos Estados Unidos que é ignorada. O governo Reagan, apesar de ser o mais estável desde Truman, foi marcado por greves, desemprego, militarização e mesmo uma tentativa de assassinato do próprio presidente com menos de um ano de governo. Diferente da narrativa do seriado, em 1980 o American way of life estava sob ferrenho ataque e contestação, apenas com a desagregação do socialismo na URSS a partir de 1990, e o triunfo da retórica neoliberal é que ocorreu uma maior estabilização política. Esconder este cenário nos Estados Unidos não significa omitir críticas ao governo Reagan, mas ao próprio modelo político do país, apesar das críticas aos seus governantes. Aqui se encontra a diferença radical e ideológica entre “Stranger Things” e “Chernobyl””, mas que se complementam como narrativa.
Enquanto o seriado ambientado na União Soviética é uma crítica liberal ao socialismo que resgata elementos para criticar também o atual governo russo- que não tem nada de socialista, mas é visto como não liberal- para justificar uma agenda da política externa dos Estados Unidos para com os russos; o seriado ambientado na Era Reagan é uma crítica a mesma agenda interna e externa do EUA, porém sem a mesma contestação ácida ao sistema capitalista, tratado como o ’’melhor do mundo’’, apesar dos pesares, onde para se manter precisa da obstinação de seus cidadãos, encarnada no mccarthismo, frente à crescente ameaça russa e outros elementos estranhos a sociedade ocidental.
Seria esta crescente ascensão do fascismo nos Estados Unidos, a chamada Nova Guerra Fria e o retorno da política mccarthista conexas de alguma forma com a crise hegemônica do ocidente e das próprias instituições do país por ocasião do Estado de exceção permanente a partir dos anos 2000? Qual será o destino final desta caminhada é dificil dizer, apenas no futuro pode-se ter maior certeza, inclusive de afirmar se o ocidente está hoje sob regimes fascistas sem ter consciência.
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Documentários:
“Chernobyl blast: Valery Legasov’s battle”. Produzido por RT (2008).
“Causa Justa Niños de Chernobil“. Produzido por Telesur (2012).
“Kholodnaya Voiyna- Film Pervyy”. (Guerra Fria- Primeiro Filme.) Produzido por Zvezda (2015).
“Responsable de la eliminación de residuos radiactivos de Chernóbil: ’Tragédia fue obra del ser humano’’. Entrevista com o general Nikolai Tarakanov. RT (2016).
“Russia Watching”. In: Cross Talk. Produzido por RT (2015).
“New McCarthyism”. In: Cross Talk. Produzido por RT (2015).
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