Bruxas da Noite: as aviadoras soviéticas que derrotaram o Nazismo

As Bruxas da Noite. Crédito: domínio público/Gruppo Ricercatori Aerei Caduti Piacenza.

A guerra do ponto de vista feminino, por muito tempo, ficou relegada ao esquecimento. Experiências heroicas de cidadãs, que foram estrategicamente importantes para momentos históricos chaves como a derrocada do Nazismo durante a Segunda Guerra Mundial, aos poucos, vão encontrando finalmente a luz merecida para o conhecimento e reconhecimento do público em geral, mesmo que, provavelmente, para muitas delas de forma um pouco tardia. O professor, pesquisador, historiador militar e escritor Carlos Daróz conta nesta entrevista exclusiva para a Intertelas os resultados obtidos com o seu último trabalho “As Bruxas da Noite: as aviadoras soviéticas na Segunda Guerra Mundial”, publicado pela Somos Editora, e realizado em conjunto com a sua filha Ana Daróz, formanda em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e comissária de bordo.

Ele que é bacharel em Ciência Militar, licenciado em História e especialista em História da Guerra pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO) e pelo Instituto de Geografia e História Militar do Brasil narra detalhes da participação das aviadoras soviéticas no combate aéreo contra os nazistas, iniciado em Stalingrado e que terminou com a contraofensiva da União Soviética em Berlim. O cenário histórico vai da formação de um país que passou por transformações profundas desde o fim da Rússia Czarista a implementação do modelo socialista; e da evolução tecnológica que teve a aviação como sua principal fonte de expansão e competitividade entre os países, conquistando o coração de várias jovens, algumas tornaram-se lendas da aviação, ao mundo conturbado do entre guerras.

Crédito: Mariana S. Brites/Revista Intertelas.

Vem a Segunda Guerra, a URSS é invadida, famílias são mortas e as jovens, em sua maioria universitárias, entre seus 18 e 26 anos, não hesitam em participar no combate direto com os nazistas. Aqui temos uma narrativa sobre a vida destas garotas: o enfrentamento do machismo de seus colegas, os abusos sexuais sofridos, o medo no momento do ataque em missões suicidas, mas também da noção sem titubear de sua importância estratégica para a vitória e a coragem, motivada em grande parte pela raiva, ou pelo amor a sobrevivência da pátria, do modelo que as possibilitou estarem na aviação e daqueles que lhe são mais caros: amigos, familiares e, principalmente, da colega que lutava ao seu lado.

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Como chegou neste tema e como foi o processo de formulação da pesquisa até chegar ao livro?

Sou historiador de formação, especializado em história da guerra como fenômeno, ou seja, em tudo que está relacionado com esta questão. Não são apenas as batalhas, ou as estratégias, mas a economia e sociedade e como se relacionam com este fenômeno histórico. Sempre procuro debruçar-me em temas que são pouco explorados, com pouco bibliografia no Brasil. Assim, fiz uma pesquisa sobre a aviação durante a Revolução de 1932, em São Paulo.

Também realizei um outro trabalho sobre a participação do Brasil na Primeira Guerra Mundial, que foi até o momento pouco documentada e conhecida pela sociedade brasileira, diferentemente da Segunda Guerra Mundial, onde há mais material e fontes. Houve o centenário agora da Primeira Guerra em que se rememora, com o intuito de promover uma consciência para que fatos como este não voltem a se repetir. Este livro faz parte de uma série em que pesquiso a aviação militar para o uso da guerra, associado a um outro tema que eu tenho mantido o meu foco atualmente, de forma bastante apaixonada, que é o papel feminino nas guerras.

As mulheres desde a antiguidade como guerreiras, como rainhas, como lideranças, perpassando pela Idade Média e pela Idade Moderna, chegam a Contemporaneidade efetivamente e formalmente sendo inseridas no cenário militar e no cenário da guerra. Este livro escrevi junto com a minha filha Ana Daróz, que está se formando em Letras pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e é aeromoça, comissária de voo. Ela me deu um livro de presente no dia dos pais, alguns anos atrás, escrito pela prêmio Nobel de Literatura Svetlana Aleksiévitch e que tem o seguinte título: “A guerra não tem rosto de mulher”, publicado pela Companhia das Letras.

Crédito: Leia para Viver.

Este livro traz relatos de história oral que ela coletou imediatamente após a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) e a implantação de uma nova ordem na Rússia. Muitas pessoas que ainda não tinham relatado a sua vivência na guerra começaram a falar. Ela fez um trabalho com as mulheres. Não necessariamente com as aviadoras. É sabido que a União Soviética, durante a Segunda Guerra Mundial, foi a única a utilizar as mulheres como força de combate na linha de frente. Foram incorporadas cerca de 853 mil mulheres, obviamente que não apenas de uma vez, isso ocorreu em fases.

Muitas morreram e eram substituídas. Elas ocuparam os mais diferentes cargos como atiradoras de elite, pilotas de aeronave, comandantes em carro de combate, guerrilheiras com o movimento Partisan, que foi estrategicamente muito bem utilizado pela URSS durante a guerra na retaguarda dos nazistas e entre outros. Estas mulheres começaram a contar suas histórias a Svetlana Aleksievitch que fez o livro como uma homenagem. Trata-se de uma obra que todos deveriam ler.

A autora bielorussa Svetlana Aleksievitch. Crédito: VEJA.com/Reuters/Reuters.

Eu já o fiz quatro vezes e confesso que existem passagem que são de tirar o fôlego, tamanho o impacto de alguns relatos. Através deste livro tomei conhecimento dos regimentos aéreos femininos de uma maneira mais substancial, pois já tinha alguma informação anteriormente. E, como se sabe, todo historiador precisa de fontes. Comecei a pesquisa, imaginando que se encontrasse fontes interessantes, com alguma sustentação, poderia realizar uma pesquisa sobre o assunto. E assim comecei. No Brasil, obviamente, não havia nada, mas consegui livros interessantes, em inglês, ou traduzidos para o idioma.

Três obras em específico de duas autoras dos Estados Unidos e uma da russa chamada Liuba Vinogradova que fez um trabalho específico parecido com o da Svetlana, mas com as aviadoras soviéticas durante os anos 1980 e 1990, quando muitas delas ainda estavam vivas. Trata-se de um trabalho de história oral com base nestes relatos em primeira pessoa. A partir destas fontes, fui em busca de outras. Então, pesquisei no arquivo da Federação Russa, no Museu da Grande Guerra Patriótica que, por sinal, estão anos luz a nossa frente em termos de digitalização de documentos pela internet.

Tem muito material já digitalizado disponível. Alguns têm tradução, outros não. E com os que não têm consegui o auxílio de pessoas que me ajudaram e para outros simplesmente utilizei o Google Tradutor. Quando são textos mais técnicos, que trazem mais dados, o Google tradutor consegue ajudar bastante, a exemplo de datas de nascimento, medalhas que as aviadoras ganharam na guerra, o período em que entraram na corporação e assim por diante. Estas fontes documentais facilitaram bastante o trabalho.

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Antes de entrarmos propriamente dito no debate sobre a atuação delas na guerra, vamos falar um pouco do cenário que possibilitou isso tudo. No final do século XIX e início do século XX, diversos fatos e fenômenos históricos ocorreram pelo mundo e promoveram diversas mudanças políticas, econômicas, sociais e até culturais. Neste período, já se debatia sobre o papel da mulher na sociedade, como ocorreu com a Revolução Socialista de 1917, o próprio Vladimir Lenin, líder da revolução, escreveu especificamente sobre este tema. Como este cenário contribuiu para que chegássemos posteriormente a situação em que a União Soviética iria incorporar as mulheres na luta contra os nazistas.

É interessante este recorte temporal que você fez, pois na transição do século XIX para o XX é que vemos de forma mais transparente o surgimento de movimentos feministas em praticamente todo o mundo. Inicialmente na Europa, como classificam alguns autores, com a Sufragistas, as “Suffragettes”. E vemos a mulher reclamando, clamando pela sua posição de direito na sociedade, querendo deixar de ser alguém subalterno em relação ao homem, com poucas oportunidades.

Porém, em que pese os avanços já conquistados, esta ainda é uma batalha muito atual. Contudo, neste cenário histórico, a União Soviética surge como uma vanguarda, porque a Constituição Soviética de 1937 foi o primeiro documento legal que tratou da mulher como sujeito de direitos, em pé de igualdade ou de equidade ao homem, dando direito ao divórcio, à propriedade, à remuneração, o que para muitos países, inclusive os ditos avançados socialmente da Europa ocidental, isso ainda não era um realidade e estava muito distante de ser.

Emmeline Pankhurst, líder das Sufragistas (ao centro), marchando em protesto em Londres. Crédito: domínio públio, BBC.

Até lembro de ler em algum lugar semana passada que na Suíça houve um protesto de mulheres por direitos. Foi dito na reportagem que até a década de 1970, as mulheres naquele país não podiam abrir conta em banco. Veja, estamos falando da Suíça. No entanto, voltando para o nosso recorte, a União Soviética teve esta vanguarda de trazer para mulher, pelo menos legalmente, uma equidade, muito à frente dos demais países. Ocorre que transformações sociais nem sempre, para não dizer quase nunca, consegue-se apenas editando legislações. A sociedade russa pré-soviética e, por assim dizer, soviética, estendendo aos dias de hoje era e é extremamente patriarcal, machista. Então, mesmo com uma constituição progressista para a época, houve muita dificuldade para estas jovens efetivamente ingressarem no serviço militar.

Afinal, são alguns anos de União Soviética e socialismo  contra séculos de mentalidade Czarista, Ortodoxa e Patriarcal. 

Exatamente, de modelo agrário que era base da sociedade czarista, onde a figura do homem diz muito sobre as relações sociais de poder, algo, podemos assim dizer, até bastante semelhante ao Brasil. Contudo, foi um primeiro movimento. Assim, remontamos a Revolução de 1917 e posteriormente a Guerra Civil. Neste período, existiu a primeira unidade militar completamente composta por mulheres, isso ainda durante a Primeira Guerra Mundial, quando a Rússia ainda não tinha saído do conflito, ou seja, entre o último reinado do Regime Czarista e posteriormente ao que viria ser o futuro governo soviético.

Então, uma camponesa chamada Mariya Botchkareva criou o batalhão da morte feminino, um nome, por sinal, bastante interessante. Depois, houve mais 16 unidades semelhantes. Eram unidades de infantaria, de soldadas que eram usadas pelos comandos para constranger tropas masculinas acovardadas ou desmotivadas. Algo do tipo: “queremos atacar determinada posição, mas os homens estão inseguros. Chamem o batalhão feminino que, de forma resoluta, vai para linha de frente e conquista os objetivos“. Estas foram as primeiras unidades militares em combate totalmente femininas na história, no início da década de 1920. Outra questão que possibilitou as mulheres entrarem para a aviação diz respeito ao momento do novo modelo de Estado criado pela União Soviética.

A comandante Mariya Botchkareva (Esq.) e a sufragista Emmeline Pankhurst (dir.) em 1917, durante visita da feminista britânica ao 1° Batalhão da Morte de Mulheres. Crédito: domínio público.

Nós sabemos que a Rússia Czarista era essencialmente agrária e atrasada, se comparada a Europa ocidental naquele momento histórico. A Revolução Industrial demorou a chegar lá. Mas quando o regime soviético foi instalado houve uma preocupação das lideranças soviéticas, sobretudo de Iosif Stalin em modernizar toda a sociedade soviética tecnologicamente, nas suas relações de trabalho e buscar modernidades e novidades para até mesmo mostrar para o mundo que aquele era um regime novo, transformador e que estava melhorando as condições de vida da sociedade local.

Para tanto, duas vertentes foram usadas: a aviação e a formação de jovens. Vivia-se na década de 1920, uma expansão da aviação em todo o mundo. Recordes eram batidos, raids de longa distância eram realizados e a União Soviética entrou nesta dinâmica, em uma verdadeira competição que, se pudéssemos comparar com outros momento históricos, foi algo semelhante a corrida espacial, quando se objetivou ter notoriedade e mostrar que aquela região do mundo não era mais agrária, tinha a sua indústria aeronáutica, tinha seus pilotos e tinha as suas capacidades modernas.

Crédito: domínio púbico/Livro Bruxas da Noite.

Então, a aviação, naquele momento, passou a ser o centro da competição tecnológico-cientifica mundial?

Sim, uma competição por recordes, pois era a principal fronteira tecnológica na época. Isso já começou, na realidade, na década de 1910 e 1920, nos primeiros anos do avião. Tivemos os primeiros a cruzar o canal da Mancha, o oceano Atlântico, a realizar o primeiro voo de circum-navegação, os pioneiros começaram a surgir nesta época. E os soviéticos entraram para este quadro desenvolvendo muito a aviação na década de 1930. O outro vetor foi a formação de jovens. Havia uma preocupação com o futuro da sociedade.

Desta forma, duas organizações em especial ofereceram cursos ligados à aviação para milhões de jovens da URSS. A União da Juventude Comunista do Partido Comunista (a Komsomol) e a Sociedade para Assistência à Defesa, e às Indústrias de Aviação e Química (Osoaviakhim). Estas duas agremiações organizaram cursos em todo o território soviético para formar meninos e meninas, adolescentes e jovens, nas artes de paraquedismo, tiro, aeromodelismo, pilotagem de planador, balonismo e outras atividades esportivas e ao mesmo técnicas. Então, as jovens que em 1942 alistaram-se para lutar contra os nazistas, a maior parte delas começou a voar na década de 1930, ainda adolescentes. Algumas tinham treze e quatorze anos apenas.

Propaganda soviética da juventude do Komsomol. “«Membro do Komsomol, jovem trabalhador, pioneiro!” Crédito: Etsy.

Elas foram incentivadas por estas agremiações. Só para se ter uma ideia a Osoaviakhim em 1936 ou 37 tinha 5 milhões de alunos em toda a União Soviética entre meninos e meninas. A estrutura era muito grande. Juntando estes dois vetores, em 1937, foi quebrado um recorde de aviação mundial em uma voo de maior distância, sem escala, feito por uma tripulação unicamente feminina. Três aviadoras, duas militares e uma civil, pilotaram um avião Tupolev ANT-37 bombardeiro, mas adaptado para a competição, para voo civil, o chamado Rodina (pátria em russo).

A aeronave decolou de Moscou e foi até o oceano Pacífico, até Vladivostok, em um voo de 26 horas e meia. Só que ao chegar sobre a Sibéria, houve uma pane no trem de pouso da aeronave, não podendo este ser arriado. Assim, a navegadora que ficava no nariz do avião provavelmente iria morrer em uma aterrissagem sem trem de pouso, em terreno despreparado. Foi quando a comandante falou com ela pelo rádio, e perguntou se estava em condições de saltar de paraquedas.

O modelo Tupolev ANT-37. Crédito: Wikipedia.

Ela disse que sim e a comandante persuadiu-a a fazê-lo. Esta jovem navegadora chamada Marina Raskova, era uma tenente do Exército Vermelho. Naquela época já era navegadora e pilota de formação. Ela salta de paraquedas. O avião depois consegue pousar em segurança. É feito uma grande operação de busca e salvamento. As duas pilotas do avião são resgatas, mas Raskova fica dez dias vagando pela Sibéria sozinha, tendo de se alimentar de recursos naturais, sobrevivendo até ser resgatada em estado físico bastante debilitado. Esta sobrevivência da Marina Raskova trouxe a ela uma notoriedade muito grande na União Soviética.

Em épocas, completamente pré redes sociais, o movimento era feito por cartas. Ela se tornou uma modelo para as jovens e para o público feminino. Começou a receber cartas de todo o país. Eram meninas dizendo que queriam ser como ela. As três recebem o título de heroínas da URSS e tornam-se as três primeiras mulheres a recebê-lo. Raskova vira uma celebridade nacional, tendo acesso a Iosif Stalin, recebendo o título das mãos dele.

Lembro de sua palestra na comemoração dos 74 anos do dia da Vitória Soviética sobre os Nazistas em que disse ser muita coisa possível graças a ela.

Na verdade, tudo realmente começou com ela. Quando a Segunda Guerra Mundial é deflagrada com a invasão dos nazistas à Polônia em 1 de setembro de 1939, o governo soviético e o alemão tinham acordado no controverso Pacto Molotov-Ribbentrop uma iniciativa de não agressão, que é rasgada em junho de 1941 quando Adolf Hitler invade a URSS. Nos dois primeiros dias, 2/3 da aviação soviética é destruída no solo. Ou seja, boa parte dos aviões foi destruída, mas os pilotos sobreviveram.

Então, isso prova que na época a aviação, que era uma força do exército, não sendo ainda independente, tinha muito mais pilotos do que aviões. Isso desfaz um pouco aquela ideia de que a URSS usou as mulheres por falta de homens. No caso da aviação havia mais pilotos do que aviões. Ocorre que com a invasão e a brutalidade das forças nazistas, diversas mulheres começam a alistarem-se voluntariamente para o combate. E muitas queriam combater voando. Apresentavam os seus diplomas e suas horas de voo, mas, em um primeiro momento, a burocracia soviética não aceita incorporá-las. Existem relatos até no livro da Svetlana que eu reproduzi neste livro. Elas tinham de ouvir coisas do tipo: “olha, não estamos tão desesperados ao ponto de colocar vocês meninas para voarem”.

O diplomata soviético Viatcheslav Molotov (esq.) e o mistro das relações exteriores da Alemanha Nazista Ulrich Friedrich Wilhelm Joachim von Ribbentrop (Dir.) Crédito: domínio público/ stachanovblog.org

Mas é importante esclarecer esta questão, pois as voluntárias eram, de fato, muito jovens, correto?

Em sua maioria elas tinham entre 18 a 26 anos de idade. Algumas eram mais velhas como a Marina Raskova que já tinha seus trinta e poucos anos, porém outras entraram para o combate com 16 anos apenas.

E também é importante salientar a brutalidade dos alemães ao invadir o território soviético.

Exatamente, foi uma espécie de rolo compressor, não apenas para atingir objetivos militares legítimos, segundo as leis da guerra. Houve um verdadeiro massacre contra a população civil. A SS com seus grupos de extermínios matou milhares de judeus, de lideranças do partido comunista e qualquer um que eles acreditassem trazer dificuldades para um novo governo alemão que instalaria ali. Perpetraram verdadeiros massacres a estas populações e entre muitas destas estavam famílias destas jovens.

Sem contar da destruição provocada pela própria guerra. Uma destas aviadoras, a Ievdokia Nosal, que foi a primeira a receber o título de heroína da URSS, morreu em combate pilotando, estava na época na maternidade. Ela tinha acabado de dar à luz e a criança morreu com o bombardeio dos nazistas ao local. Uma viga caiu na cabeça do bebê. Ela saiu da maternidade e foi direito para o alistamento, nem passou em casa. Logo se alistou para poder lutar contra os nazistas. E nos relatos de história oral, suas companheiras relataram que era uma das ou, a que mais, demonstrava ódio pelos nazistas, em razão desta experiência trágica pessoal.

Portanto, muitas começaram a se alistar e foram rejeitas primeiramente pela burocracia soviética. Por isso, elas começaram a escrever cartas para a Marina Raskova, uma figura notória que tinha acesso ao governo. Escreviam que queriam lutar pela pátria e lutar voando. Raskova pegou estas cartas, elaborou uma estrutura de unidades aéreas femininas e levou para a análise de Stalin. Ela ultrapassa toda a burocracia militar, mesmo sendo ainda major, um posto intermediário. Vai a Stalin e apresenta o projeto.

Ele imediatamente aprova a criação de um corpo de aviação, uma unidade administrativa para organizar e prover treinamento. E subordinado a ele estariam três regimentos de aviação compostos unicamente por mulheres. Um regimento de aviação de caça, um regimento de bombardeio diurno e um regimento de bombardeio noturno que ficaria conhecido como as Bruxas da Noite posteriormente.

As Bruxas da Noite. Crédito: domínio púbico/Livro Bruxas da Noite.

Pode-se dizer que o próprio Stalin viu nisso uma oportunidade em defender o modelo soviético?

Sim, em defesa da pátria, mas também do modelo soviético. Ao mostrar, baseado ainda na legislação que existia, que aquele modelo tinha características transformadoras. Ao mesmo tempo que as mulheres passaram a ter direitos, tinham o dever com a pátria. Por isso, era lícito e também lógico que elas combatessem na linha de frente em pé de igualdade.

Isso também contrastou muito com a posição que a mulher tinha no ideal nazista.

Totalmente, no Nazismo a mulher é colocada em uma situação de total inferioridade.

E como inicia o treinamento e recrutamento destas aviadoras?

Foi aberto um processo de seleção não só para pilotas, mas também para navegadoras, pessoal de apoio, mecânicas, abastecedoras de aeronave, pessoal de administração, de modo que a ideia inicial era que os três regimentos permanecessem inteiramente femininos. Contudo, surgiram alguns problemas.

Quais?

O regimento de caça adotou um tipo de aeronave, o Yakovlev Yak-1, que não tinha, em lugar algum, mulheres mecânicas formadas para pilotá-lo. Desta forma, foi necessário selecionar um grupo de mecânicos homens para fazer a manutenção desta aeronave, fazendo com que o regimento 586, por necessidade, passasse a ser misto. Em um segundo momento, este regimento que era composto por dois esquadrões recebeu também um terceiro esquadrão de pilotos homens. O segundo regimento que era de bombardeio diurno, comandado pela própria Marina Raskova, que faleceu em um voo durante uma nevasca, não chegando a entrar em combate, teve um outro problema.

Ele usava a aeronave Petliakov Pe-2, um bombardeiro de mergulho diurno, um dos aviões mais modernos da URSS na época. Só que neste avião, a pilota e navegadora ficavam uma ao lado da outra. Na retaguarda da cabine tinha uma posição para operar um rádio e uma metralhadora. Só que a pessoa que devia ficar ali permanecia em pé e, pela engenharia do avião, precisava ser muito alta.  Bem mais alta que a maior parte das mulheres da URSS. Então foi preciso convocar um terceiro grupo de homens como tripulantes desta aeronave. No entanto, este regimento de bombardeio diurno ficou com a sua maioria mulheres, entre as pilotas e navegadoras.

Mas houve o terceiro regimento noturno que seria composto só de mulheres e que seria o famoso regimento das Bruxas da Noite.

Era o regimento de número 588° de bombardeio noturno que se manteve do início ao final da guerra 100% feminino. Foi o regimento mais bem-sucedido dos três no que diz respeito aos resultados alcançados. Era o que voava com a pior aeronave. Um avião obsoleto, antigo e lento, o Polikarpov 2. No entanto, elas desenvolveram uma técnica quase suicida, onde muitas perderam a vida, mas tiveram grandes resultados.

Era um avião muito vulnerável, um biplano da década de 1920, que não tinha qualquer proteção, com uma capacidade de voo pequena, tendo que operar muito perto da linha de frente e fazer várias viagens, exigindo de muitas tripulações fazer várias viagens durante uma única noite. E a tripulação recordista foi da Nadezhda Popova e a Iekaterina Ryabova que fez doze missões em uma única noite. Ou seja, bombardeia e volta até o amanhecer. Trata-se de um número extremamente elevado. Elas não saiam nem da cabine. Chegavam da missão, a equipe de terra dava um chá para elas beberem, enquanto o avião era abastecido e colocava-se mais bombas para a próxima missão que ocorreria em algumas horas.

E como ocorria este tipo de ataque?  

Em função das limitações do avião, ele se tornava um alvo muito fácil para artilharia antiaérea alemã. Tanto para as metralhadoras, quanto para os canhões. Assim, quando detectado, dificilmente a aeronave furtava-se em ser abatida pelo inimigo. Por esta razão que elas desenvolveram uma técnica bastante original e, ainda que existissem regimentos masculinos com este mesmo avião, esta foi uma característica delas, do regimento feminino. Elas voavam em direção ao alvo.

O inimigo ouvia de longe, mas ao chegar perto deles, elas aproveitaram muito bem a característica que todo o avião biplano possui, o de planar muito bem, e cortavam o motor por alguns minutos. Ficavam planando até lançar as bombas. Então, ligavam os motores de volta, tentando sair o mais rápido possível do contra-ataque. Ou seja, o alemão não conseguia identificar pelo som de onde vinham os aviões. Ouviam à uma longa distância, mas próximo não.

Pode-se dizer que eram quase como pássaros?

Ou como os alemães começam a dizer: pareciam bruxas que apareciam silenciosamente em suas vassouras, apenas planando no vento. Foi assim que estas aviadoras soviéticas ganharam o nome de Bruxas da Noite. No começo, elas ficaram muito ofendidas, mas depois  compreenderam que o apelido foi uma forma de reconhecimento dos próprios alemães, sobre o terror que elas provocavam neles, criando até uma espécie de mito, passaram a incorporar o apelido. Eram aquelas bruxas que planam de madrugada para aterrorizar a todos.

E até existe uma questão que ainda não consegui comprovar, mas é muito provável que seja verdade. Entre os nazistas, quem conseguisse abater um dos aviões das Bruxas da Noite ganhava diretamente a Cruz de Ferro, a principal condecoração alemã nazista. O boato é forte, mas até o momento não achei documentação que comprove isso. Enfim, elas acabaram incorporando este apelido e posteriormente os outros regimentos e as demais aviadoras da URSS que lutaram na guerra também se apropriaram do apelido.

As Bruxas da Noite Rufina Gasheva (Esq.) and Nataly Meklin (Dir.). Crédito: Aircrew Remembered.

Mas também houve perdas?

Sim, tinham momentos que os alemães usavam holofotes e quando conseguiam avistar um avião era praticamente impossível escapar. Muitas delas não usavam paraquedas em razão do tamanho da aeronave e para também não levar muito peso. Elas entendiam da seguinte forma: primeiro voavam muito baixo, o que dificultava saltar e ter tempo para o paraquedas abrir, segundo um paraquedas pesado, ocupava espaço para mais bombas que poderiam ser transportadas. Algumas perderam a vida porque o avião foi atingido e pegou fogo, outras escaparam, mas não tinham como saltar para fora da aeronave.

E como foi o desgaste físico e psicológico nestas missões?

Elas relataram que após a guerra muitas tiveram dificuldade de engravidar, muitas pararam de menstruar em razão da tensão e do desgaste nervoso das missões, que obviamente provocavam um esgotamento físico. Elas dormiam durante os voos. Em uma missão, uma pilotava e bombardeava e a outra dormia. Horas depois, na missão seguinte, elas trocavam de posição. E outra coisa, falamos sempre de heróis e heroínas, o público geralmente gosta destas coisas, mas a vida real é outra história. Havia sim o medo, e muito. Teve um relato de uma delas que conta ter ouvido um barulho durante uma missão e que temia ser uma pane do avião, mas quando percebeu eram os joelhos delas que tremiam e batiam um no outro. Mesmo assim, ela seguiu com o seu dever até o final do guerra.

Lydia Litvyak se prepara para embarcar em seu avião de combate durante a Segunda Guerra Mundial. Crédito: domínio público/Daily Mail.

E estrategicamente como podemos pensar que foi a atuação delas? Por exemplo, os comandantes supremos poderiam ter dito vamos usar as bruxas nesta região, nesta batalha X.

Na verdade, inicialmente todos os regimentos do Exército Vermelho numerados por 500 pertenciam a unidades de reserva, geralmente colocados em combates secundários. E isso mostra um pouco da trajetória delas. Ainda que conseguissem organizar, voar, foram colocadas em uma posição de segunda linha. Dentro da aviação era comum operarem em conjunto com regimentos masculinos. O regimento 587 voou praticamente a guerra toda ao lado de um regimento masculino que usava o mesmo tipo de avião. Tanto que os chamavam de regimento irmão.

Os homens pegavam os aviões delas e usavam sem autorização. Tinham várias atitudes de falta de respeito. Como falamos anteriormente, apesar de um modelo político ter como o seu objetivo transformar os valores sociais, isso na prática, para os indivíduos que compõem a sociedade, leva muito mais tempo. Contudo, após a atuação delas e após os resultados obtidos, elas foram sim adquirindo respeito individualmente e coletivamente. Com exceção do regimento de caça que teve uma série de problemas como de liderança e de insubordinação entre as próprias mulheres, os outros dois regimentos, os de bombardeio diurno e noturno, foram elevados a condição de guarda, a tropa de elite da aviação, tendo até suas numerações modificadas.

O 46° Regimento de Guardas durante uma inspeção perto do fonal da guerra. Crédito: domínio púbico/Livro Bruxas da Noite.

O 587, de bombardeio diurno, tornou-se o 125 e o 588 tornou o regimento 46 de bombardeio noturno de guarda. Elas atuavam enquadradas em grandes unidades, brigadas aéreas e exércitos aéreos. No caso das Bruxas da Noite, elas começaram em Stalingrado, no auge desta batalha. Depois, seguiram a contraofensiva soviética, terminando sua campanha na Prússia Oriental, no coração da Alemanha. A recordista individual de todas elas tem uma foto sobrevoando o portão de Brandemburgo em Berlim. Foi a Irina Sebrova que realizou 1004 missões de combate. Ela e a Natalia Meklin juntas seguiram voando até Berlim.

O corte de cabelo no padrão militar foi uma das muitas questões que precisavam ser superadas pelas mulheres. Na foto as aviadoras Natalia Meklin (Esq.) e Irina Sebrova (Dir.) com suas tranças cortadas. Crédito: domínio púbico/Livro Bruxas da Noite.

E depois de chegar em Berlim e provocar a derrocada alemã, como foi o processo de retorno a casa e a vida normal?

Ocorreram as desmobilizações e isso não apenas na União Soviética, mas sim no mundo todo. Pouquíssimas delas permaneceram nas Forças Armadas. E voando apenas por período muito breve. As unidades foram extintas. A maioria das pilotas e navegadoras eram universitárias quando a guerra começou. Assim, muitas retomaram suas carreiras acadêmicas. Algumas tornaram-se cientistas de grande renome como a Irina Rakobolskaia, subcomandante administrativa, chefe de gabinete, e posteriormente uma das maiores cientistas de astro física do programa espacial russo.

Outras permaneceram na aviação civil, pilotando aviões comerciais. E poucas permaneceram nas Forças Armadas, como tradutoras, pois havia um centro de idiomas. Pelo menos umas cinco permaneceram até a década de 1960 como intérpretes militares. Uma delas, a Polina Gelman, que precisou alistar-se quatro vezes para ser aceita em razão de sua baixa estatura. Ela esteve na crise dos mísseis em Cuba, traduzindo para os assessores militares em espanhol. Algumas tornaram-se escritoras, uma virou cineasta e fez um documentário sobre as Bruxas da Noite e outras simplesmente se tornaram donas de casa.

A navegadora Polina Gelman. Crédito: domínio público/ Pinterest Planespotter & Wiki Editor

E a maior patente que as aviadoras soviéticas obtiveram foi a de major?

Sim foi esta, as que conseguirem chegar a este nível, mas as mais jovens permaneceram como tenente, ou capitãs no máximo. E justamente por serem muito novas, isso impediu que avançassem também, pois a carreira militar leva um certo tempo para progredir, mesmo durante as guerras. E posteriormente as suas unidades foram desmanteladas. A guerra para elas foi longa, porém no tempo histórico é considerado breve.

E na Segunda Guerra Mundial, somente a URSS teve aviadoras?

Em linha de combate sim. Agora Estados Unidos e Inglaterra tiveram aviadoras, mas que desempenhavam apenas um papel de logística. Por exemplo, pegar aeronaves recém construídas na fábrica e levar até os depósitos militares. Ou levar do depósito até a base para entregar. Um serviço mais de retaguarda, mais administrativo. A Alemanha teve a Hanna Reitsch, uma das maiores pilotas de prova do mundo. Ela inclusive foi representada no filme “A Queda – As Últimas Horas de Hitler” (2005), pois mesmo com os soviéticos já cercando Berlim, ela consegue posar um avião na chancelaria do Reich para conversar com o Hitler.

A pilota Hanna Reitsch. Crédito: Ullstein Bild/Getty Images.

As pessoas às vezes não entendem, mas apesar da guerra as pessoas continuam vivendo suas vidas. E ainda sobre o preconceito que elas sofreram dentro do Exército Vermelho você tem relatos para contar, situações que exemplificam estas questões?

No livro da Svetlana há o relato de uma soldada que namorou um colega e eles foram juntos até Berlim. Lá ele a pediu em casamento. Ao fazer a pergunta levou um tapa na cara. Ela achou o cúmulo ele fazer um pedido tão importante naquelas condições. Ela estava toda suja, usando roupas de soldado. Ela afirmou que iriam retornar à Rússia, e, então, ela iria voltar a ser mulher e ele poderia pedi-la em casamento. Depois disso tudo, eles se casaram. Como você falou a vida continua apesar da guerra.

As coisas comuns da vida: o amor, a amizade e etc. Tem uma citação, uma pichação, feita na Alemanha Oriental, em 1945, que coloquei no livro e diz o seguinte: “mesmo em guerra, o amor é tudo o que você pensa? São mulheres para você, soldado Ivan? E o que você teria feito sem nós, Ivan?”, indagava alguém chamada Maria. Ou seja, o cara só queria saber de namorar, mas ele precisava entender que elas estavam lutando também. É a mulher realmente ocupando o seu lugar em meio aquele caos todo. Agora houve muito machismo. Mandaram-nas cortarem o cabelo, coisa que para a mulher russa era algo tradicionalmente muito caro. Houve muitos problemas de abuso sexual, mas não com as aviadoras.

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E isso elas deixaram muito claro. Era uma situação constante no exército o abuso sexual dos chefes, dos colegas, estupros, mas com as aviadoras não há casos relatados. Nisso elas diziam, quando reclamavam dos preconceitos que sofreram, que eram privilegiadas se comparado com as mulheres que lutaram em outras campos das Forças Armadas. Imagina um exército imenso, com milhões, disperso, é muito difícil para os superiores terem o total controle.

Sem falar do contexto de violência e privações que levam a estas coisas. E como falamos antes, a mentalidade czarista machista melhorou muito com a União Soviética, mas ela não foi extinta. Têm certas coisas que precisam de muito tempo para serem transformadas e muito persuasão de quem sofre os preconceitos. As construções sociais precisam de séculos para serem modificadas. Tanto é que a luta das mulheres continua sendo muito atual.

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Contudo, apesar dos preconceitos, elas deixaram um legado.

Certamente, a Bruxas da Noite foram as responsáveis por uma mudança progressiva, mas continua. Nas Forças Armadas da Rússia, a experiência com as mulheres ficou por muito tempo limitada a esta participação na guerra. Só há dois anos, já na Federação Russa foi aberta uma turma de cadetes aviadoras femininas na Academia da Força Aérea em Krasnodar. Agora elas devem estar em seu segundo, ou terceiro ano de treinamento. Mas independentemente, as Bruxas da Noite abriram um caminho para muita gente ao redor do mundo, assim como as pilotas pioneiras da década de 1910.

Elas possibilitaram a participação feminina na aviação não apenas militar, mas sobretudo na civil e esta ousadia tem o seu reflexo até hoje. Neste início do século XXI, disparou o número de mulheres aviadoras em todos os tipos de cargos e campos pelo mundo. Elas são o resultado da coragem e do sacrifício das Bruxas da Noite e de todas as mulheres que enfrentaram uma sociedade muito mais rígida e contrária à predisposição delas de exercerem seus deveres e direitos plenos como cidadãs.

Night Swallows – Episode 1. Russian Tv Series. StarMedia. Military Drama

“Bruxas da Noite no Céu ” (1981), dirigido por Evgenia Zhigulenko

Entrevistas com algumas Bruxas Heroínas da URSS. Por Gunilla Bresky

Night Witches: The Forgotten Heroines of the Soviet Union

 

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por Anders Noren

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