Bacurau: o Brasil em um futuro distópico a partir de um presente pessimista

Crédito: GGN.

O inventário de filmes distópicos brasileiros não é muito extenso, e muito menos famoso, porém a partir de “Bacurau” (2019), um novo repertório pode ter sido inaugurado. A inovação da história aliada as tensões emocionais e sociais expressadas ao longo do filme- sem se tornar algo clichê-, revela um constante pessimismo, que deu o tom do filme do começo ao fim. Bacurau é possívelmente, um dos mais importantes filmes nacionais das últimas décadas, não apenas em aspectos estéticos e ideológicos, mas sociais e políticos.

Com uma linguagem simples e direta, Kleber Mendonça e Juliano Dornelles rompem com diversos paradigmas ideológicos e históricos do Brasil em grande estilo. Uma série de questões foram abertas ao longo do filme, que de maneira suave, mas profundamente reflexivas foram perceptíveis ao público. No afã de crítica ao governo atual brasileiro, devido ao tom crítico do filme, muitos dos grandes jornais e revistas, atribuiram por vezes uma alcunha, não apenas simplista da obra, mas desprovida das demais problemáticas que o filme desenvolve, em uma atitude ideológicamente consciente.

Uma primeira questão a destacar-se antes de tudo, é que Bacurau foi produzido em parceria entre empresas cinematográficas francesas e brasileiras, que contou com a participação no elenco tanto de atores nacionais, quanto internacionais. Sonia Braga e Udo Kier, renomados internacionalmente compõem um elenco com uma série de outros atores e atrizes que dentro da atual década destacam-se na cinematografia nacional. Os próprios diretores, Kleber Mendonça e Juliano Dornelles já haviam destacado-se na produção de “Aquárius” em 2016, quando ganharam importantes prêmios nacionais e internacionais- um filme igualmente crítico da sociedade brasileira.

Bacurau, contudo, possui não apenas uma projeção nacional e internacional muito maior, como consolida a importante posição já adquirida pelos diretores. Os riscos existentes em produções cinematográficas de caráter distópico sempre são muito grandes, pois em Hollywood, a nível de comparação, produziu-se milhares de filmes e seriados com esta caracteristica, porém muitos ’’floparam’’- para utilizar uma gíria comum-, justamente porque eram clichês. Na maioria destas produções, a tecnologia desenvolvida pela humanidade aparece como uma ameaça que impõe um sistema autoritário sobre o planeta- como em “O Exterminador do Futuro” e “Matrix” que deram vida a famosos seriados como “Black Mirror”-, ou se desenha um cenário apocalíptico, cujo o pós colapso da civilização é a sobrevivencia competitiva entre as pessoas- “The Walking Dead” e “The Hundred”.

Fugindo destes espectros, Kleber Mendonça e Juliano Dornlles, traçam a distopia longe destes pressupostos, cuja aparência e questões são muito mais próximas às temáticas nacionais. A democracia, a relação entre povo e política, o papel histórico do nordeste, a relação entre as elites brasileiras e o povo brasileiro, além da imagem do ocidente imperialista e suas ações orientadas pelo colonialismo. Bacurau neste sentido, repensa o Brasil a partir do nordeste, e a distopia futurista a partir de um forte pessimismo do presente.

Sobre alguns aspectos especiais do filme, é importante destacar que existe uma conceitualização de Brasil e de povo brasileiro, que se confundem com o povo e o povoado de Bacurau. Elementos como simplicidade e solidariedade a partir de uma heterogeneidade de pessoas é o que caracteriza a comunidade com aspectos múltiplos e plurais. A matriz dessa sociedade é africana e indígena principalmente, tendo sido apresentada com o próprio nome da cidade de origem indígena, e na própria matriarca da região, de origem afrodescendente, “Dona Carmelita” (Lia Itamaracá). Embora pareça como coadjuvante da história principal- isto é, o conflito entre os brasileiros e os mercenários estrangeiros-, a simbologia desta personagem e o seu destino no enredo pode simbolizar muito mais que isso, pois não somente é a partir desse ponto que o cenário principal desenrola-se, mas ocorre uma espécie de ’’imortalização’’ desta personagem.

Crédito: IMDb.

Outro ponto significativo no filme é o resgate histórico da figura do cangaceiro de maneira positiva, não apenas por meio da caracterização do personagem “Lunga” (Silvero Pereira), mas pela montagem do próprio museu de Bacurau, que aparece em uma cena, onde se pode ver retratos e instrumentos que ressaltavam a importancia histórica do cangaço. O cangaço ’’criminoso’’ cede lugar a uma ideia de movimento de resistência social, cujo apoio popular é visível, algo que vagamente lembra outro cineasta nordestino, Glauber Rocha que em 1963 trouxe tons parecidos no filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”.

Esta resistência também vem do próprio povo comum, pois apesar do respeito e liderança exercida por “Lunga”, em nenhum momento fica clara a figura de um ’’herói’’ no sentido hollywoodiano, mas sim de uma liderança política, social e regional importante. Algo que nos leva a outro importante elemento do filme, que é a inexistencia de um persongem principal, ou um grupo menor de personagens principais bem delimitado. A dispersão dos personagens elevam todas e todos ao papel de heróis e heroínas, celebrados enquanto o povo brasileiro que resiste aos ataques internos e externos. Em especial, o povo nordestino é caracterizado dentro deste ’’papel’’ social e histórico de trincheira de resistência popular, onde o povo, em oposição a outros filmes, não é visto como passivo, submetido ao tradicional coronelismo, mas é acima de tudo ativo em defesa de seu próprio direito de existir.

Lunga interpretado por Silvero Pereira. Crédito: https://revistacult.uol.com.br

No momento em que a política institucional aparece, na figura do prefeito “Tony Junior” (Thardelly Lima), o problema não é corrupção- isto é, no sentido de roubo de dinheiro público-, pelo contrário, é o abandono do povo e a indiferença a seu destino. A exemplo, o prefeito Tony Junior ainda é retratado como um clássico tirano, em razão da exploração violenta, opressão ao povo e de seus laços excussos com grupos criminosos internos e externos.

Embora hoje, tal cenário possa ser chamado por alguns mais fanáticos anticomunistas de ideologia marxista ’’barata’’, na verdade é um pressuposto não apenas liberal dos mais clássicos possíveis, como reinvindica não apenas para o nordeste, mas o povo brasileiro como um todo a condição de legitimidade política para derrubar governos que violem as liberdades liberais. É importante entender isto, pois se trata de um divisor de águas do filme, pois a relação de mudança na política não é associada a uma revolução no seu sentido clássico oriunda da Revolução Francesa– isto é, o Jacobinismo-, mas a resistencia no sentido contratualista lockeano, oriunda da Revolução Gloriosa.

Sônia Braga (ao centro) é Domingas. Crédito: IMDb.

Revolta e derrubada, não significam revolução. Os cidadãos e cidadãs de Bacurau defendem-se legitimamente a partir do abandono das autoridades, e não articulam ou planejam a derrubada do prefeito, sendo um movimento que foi acima de tudo ’’natural’’ e justificado- autodefesa. A fronteira entre o ilegal e o legal torna-se tênue em momentos de convulsões políticas e colapsos institucionais, que embora o cenário de Bacurau pareça calmo, o povoado era refúgio de pessoas que lutavam contra um governo autoritário que aparece em alguns momentos do filme, mas não é muito abordado e aprofundado, deixando esta outra questão em aberto.

A profundidade desta contestação dos diretores é ainda maior, a medida em que, observando a posição contrastante de resistencia do nordeste, se resgata as memórias históricas do bicentenário das grandes revoluções e revoltas do século XIX, em um primeiro momento contra o Império Português, e depois contra a monarquia brasileira no Rio de Janeiro. Estas revoltas eram carregadas desta ideologia contratualista, pois tratadas como ’’adjacências coloniais’’ por muito tempo, as regiões norte e nordeste reivindicavam um stattus equânime ao sudeste que apenas foi parcialmente conquistado na república com a adoção do sistema federativo.

Barbara Colen interpreta Teresa. Crédito: IMDb.

Contudo, dada a crise atual do pacto federativo no país, oriundo da quebra constitucional e seguidas violações dos últimos três anos, a crescente xenofobia e mesmo o fortalecimento do racismo em virtude do retorno a um projeto de Estado nação que privilegia o polo sul-sudeste, cresce entre os nordestinos o temor de receber não apenas um stattus inferior na ordem política do país, como um ’’tratamento colonial.’’  O resgate do imaginário social das revoltas e da ideologia lockeana de revolta, não é apenas uma crítica ao governo atual brasileiro, mas a ordem federativa republicana constituida a partir do polo sul-sudeste do país, que curiosamente aparece na figura dos dois forasteiros brasileiros- oriundos do sudeste- que junto com o prefeito ajudam os mercenários estrangeiros a cercar e entrar em Bacurau. Seriam eles a representação metafórica de uma elite submissa aos interesses estrangeiros, e que no fim é vista como inferior pelo próprio ocidente, tanto quanto o resto do país? É algo a se pensar.

Crédito: IMDb.

Por fim, e não menos importante, cabe discutir o papel dos mercenários estrangeiros em Bacurau, algo que embora pouco claro, assume um aspecto muito mais importante para o desenvolvimento do filme do que se pode pensar em um primeiro momento. Seu papel de antagonismo assumido em relação aos brasileiros, onde agem de maneira racista, demonstrando atitudes coloniais de maneira aberta e a própria caracterização imagética dos mercenários, vestidos como se fossem caçadores em uma savana, refletem um certo imaginário colonial.

O mercenário Michael interpretado por Udo Kier. Crédito: https://jconline.ne10.uol.com.br

Este cenário lembra um arcabouço político e ideológico sobre os interesses e ações estrangeiras no Brasil, cuja origem é interna e externa. A naturalidade ocidental destes estrangeiros, suscita ainda mais questionamentos, pois seu aparecimento em um cenário de crise no país- período em que o filme remete em algumas cenas- com a permissão das autoridades e mesmo apoio das elites, reflete uma preocupação dos produtores com a ação de forças políticas externas no país. Uma preocupação que inclusive não é infundada, dada as novas guerras coloniais do século atual em que grupos mercenários agem livremente pelo mundo para defender os interesses de países centrais do capitalismo- uma prática constante desde o século XIX dos Estados Unidos na América Latina, por exemplo.

Kleber Mendonça e Juliano Dornelles brincaram imagéticamente com o antagonismo entre os brasileiros e mercenários diversas vezes no filme. Os mercenários tinham alta tecnologia, eram profissionais, civilizados- no conceito liberal- e racistas, enquanto que os brasileiros eram fracos, porém organizados, mas não civilizados- no conceito liberal. Estes elementos são expostos em diversas cenas, contudo, sem caricaturas ou mesmo reforço de esteriótipos, mas críticas inteligíveis e sabiamente desenvolvidas. No filme, o povo de Bacurau assume um  protagonismo que por exemplo jamais ocorreria em um filme de faroeste estadunidense- um estilo também vagamente presente.

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É exatamente por isso que o filme fugiu de aspectos clichês tradicionais e torna-se algo crítico e reflexivo. Não existe um estilo bem definido, ou uma história fechada em sentidos tradicionais cinematográficos- isto é, início, meio e fim-, pelo contrário ela é aberta a interpretações e conjecturas. Este misto diverso é o que tornou esta produção uma das mais importantes obras cinematográficas do momento, onde Hollywood se encontra em uma crise existencial, e não consegue mais desenvolver obras sem fazer refilmagens de obras bem sucedidas há décadas atrás principalmente em razão da lucratividade das franquias, e a concentração das produções em mãos de poucas empresas.

No futuro, talvez ao explicarem o atual momento de crise institucional, constitucional, social e político brasileiro, professores e professoras de história, usem o filme Bacurau como um exemplo de fonte histórica. Talvez este pessimismo reflexivo também esteja abrindo alas para outras produções cinematográficas nacionais ricas na próxima década com a entrada em cena de uma série de jovens diretores. Todavia Bacurau também é um manifesto, não apenas de diretores e artistas nordestinos, mas de toda uma geração preocupada com o futuro do país. Se para as produções distópicas tradicionais hollywoodianas o grande medo do futuro são as máquinas e o próprio instinto humano, para estes produtores brasileiros, o temor recai sobre a dominação colonial estrangeira.

Referências:

COELHO, Marcelo. Bacurau, ou o ’bolsonarismo’ às avessas. In: Folha de S. Paulo. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelocoelho/2019/09/bacurau-ou-bolsonarismo-as-avessas.shtml. 2019.

FOLHA DE S. PAULO. ’Bacurau’ estreia evocando resistência em país que descamba para a ultraviolência. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2019/0/8/bacurau-estreia-evocando-resistencia-em-pais-que-descamba-para-ultraviolencia.shtml. 2019.

LOCKE, John. Second Treatise of government. 2008. Disponível em: http://www.earlymoderntexts.com/assets/pdfs/locke1689a.pdf.

LOPES, Caio. Crítica/ Bacurau. In: Observatório do Cinema- UOL. Disponível em: https://www.observatoriodocinema.bol.uol.com.br/criticas/criticas-de-filmes/2019/08/critica-bacurau. 2019.

MERTEN, Luiz Carlos. Crítica: Filme ‘Bacurau’ reabre com brilho a vertente do faoreste futurista. In: O Estado de S. Paulo. Disponível em: https://www.cultura.estadao.com.br/noticias/cinema,critica-filme-bacurau-reabre-com-brilho-a-vertente-do-faroeste-futurista,70002830333. 2019.

MILÃO, Diego. Uma crítica do filme Bacurau, por Diego Milão. In: O Cafezinho. Disponível em: https://www.ocafezinho.com/2019/09/10/uma-critica-do-filme-bacurau-por-diego-milao/. 2019.

SHENKER, Daniel. Crítica: Bacurau. In: O Globo. Disponível em: https://oglobo.globo.com/rioshow/critica-bacurau-23904641. 2019.

YAGUE, Gregorio Belinchón. ’Bacurau’, a distopia brasileira contra o Governo de Bolsonaro. In: El País. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/05/16/cultura/1558003152_749841.html. 2019.

 

 

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por Anders Noren

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