
Com o objetivo de incentivar a promoção de pesquisa e produção de conteúdo científico em estudos referentes ao continente asiático, o Centro de Estudos Asiáticos da Universidade Federal Fluminense (CEA-UFF) realizou o I Simpósio Fluminense de Estudos Asiáticos da UFF: Faces da Ásia de 9 a 12 de setembro, no Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da UFF, em Niterói, Rio de Janeiro. O evento foi em grande parte constituído por mesas redondas e temáticas, onde os palestrantes submeteram comunicações que abordaram uma ampla gama de questões que englobavam diversas áreas, a exemplo da cultura à política.
“Creio que este primeiro simpósio cumpriu o seu objetivo em incentivar esta área de estudo e dizer a todos que se interessam que é possível seguirem com suas pesquisas e que seus projetos são estratégicos tanto para a produção de conteúdo acadêmico em si, quanto para a formulação de conhecimento geral no Brasil sobre a Ásia”, salientou Mateus Nascimento, especialista em estudos do Japão na Era Meiji. Para a sua primeira edição, a iniciativa visou ainda promover a rede de contatos entre pesquisadores e cientistas da área de humanas que atuam normalmente de forma um pouco isolada no Brasil.

Conforme levantamento realizado pela Revista Intertelas, a partir do cronograma de atividades disponibilizado pela organização do simpósio, foram ao todo 54 trabalhos apresentados durante as mesas temáticas. Entre estas, 16 abordaram temas referentes ao Japão, seguido de China com 13, Índia com 7, Coreia do Sul com 5, Oriente Médio com 3, Rússia com 2, trabalhos que abordavam simultaneamente Japão/Coreia do Sul com 3, e os demais Birmânia/Brasil, Japão/China, mulheres asiáticas, Malaia (hoje Malásia) e estudos luso-asiáticos tiveram um trabalho apresentado respectivamente.
Através destes números percebe-se o amplo espaço de atuação para a área de estudos asiáticos no Brasil. Porém, diversas dificuldades ainda necessitam ser vencidas. “O currículo das faculdades de humanas no Brasil ainda é muito eurocentrado. O aprendizado, assim como a pesquisa são centrados especialmente na Europa Ocidental ou nos Estados Unidos. Nós também acabamos tendo uma espécie de Orientalismo didático, repassado através de um olhar destes países”, explicou Nascimento.

O especialista ainda comentou que a Ásia é vista também sob uma perspectiva negativa. “Eu diria que a historiografia que existe atualmente é abusiva, pois ao mesmo tempo que ela praticamente desconsidera o estudo da área, ela também inviabiliza um olhar sob uma perspectiva menos violenta dos acontecimentos históricos. Por exemplo, o meu foco de estudo é o Japão da Era Meiji. O que normalmente se fala sobre este período é que o Japão se ocidentalizou. E se chegou a uma conclusão que esta suposta ocidentalização ocorreu de cima pra baixo, ou seja, que o Japão não teve voz. Quando vemos os documentos e a constituição imperial do Japão na época é claro que houve um esforço de adaptação, mas isso não quer dizer que os japoneses não tivessem poder de conduzir esta situação na época”, enfatizou.
Segundo Nascimento, também é frequentemente esquecido que as culturas estão interconectadas. “Ninguém vive como se estivesse em uma ilha. Até quando pensamos em uma identidade nacional, ou coisa parecida, nós acabamos levando em consideração outros povos e outras realidades para saber o que há de diferente e semelhante, por exemplo. Portanto, o Japão não era uma ilha culturalmente intocada. É verdade que houve uma necessidade de adaptação, que o Estados Unidos foi superior militarmente e tal, mas os japoneses acabaram fazendo uma reformulação aos seus moldes, seguindo posteriormente um caminho próprio, no que diz respeito ao campo econômico e cultural ao menos”, concluiu.

Não é apenas o Japão que tem conceitos e ideias formuladas sobre sua história, cultura e imagem através de uma perspectiva ocidental, que não tem muita relação com a realidade, ou com a forma que os próprios japoneses enxergam a si próprios. Países como China e Rússia, além dos equívocos, ou de serem vistos da forma como o ocidente almeja compreendê-los, enfrentam a posição de serem o lado da balança que mantém o equilíbrio de poder no cenário internacional, tanto no campo militar, quanto político-econômico. Para muitos grupos de poder no ocidente, estes países são vistos como inimigos, mesmo que concretamente apenas limitem uma hegemonia, ou uma unipolaridade que o centro ocidental localizado na aliança do Atlântico Norte (EUA e Europa Ocidental) quer que se perpetue por anos à frente.
No dia 9 de setembro, o cônsul geral da Federação da Rússia no Rio de Janeiro, Vladimir Gueorguievitch Tokmakov, em um convite realizado pela organização do evento e pelo CEA abriu os trabalhos do simpósio com uma palestra salientando os conceitos e objetivos da política externa da Rússia. “O que nosso país objetiva é fornecer as condições externas mais favoráveis para o desenvolvimento econômico e social interno. O que significa ter um ambiente externo seguro para os nossos cidadãos e para as atividades dos nossos operadores econômicos”.

“Estes objetivos devem ser alcançados através do respeito ao direito internacional que leva em conta alguns preceitos fundamentais como o respeito à soberania e à autodeterminação dos povos, a não ingerência nos assuntos internos e a solução pacífica de controvérsias. Visamos a constituição de uma ordem multipolar e a formulação de uma agenda internacional conjunta que respeite as particularidades e a soberania dos povos. Também é preciso enfatizar o respeito à Carta da Organização Nações Unidas (ONU) e às prerrogativas do Conselho de Segurança“, explicou Takmakov.
Segundo o diplomata, a Rússia sempre defendeu o papel central da ONU na coordenação dos assuntos mundiais. Conforme Tokmakov, a Rússia considera a organização internacional uma plataforma única e de importância incontestável para a realização de um diálogo em termos legais, no intuito de resolver e encontrar soluções conjuntas para problemas que afetam a todas as nações.

“Tentativas de minar o papel da ONU são perigosas, pois podem conduzir a um desmantelamento de toda a arquitetura das relações internacionais que foi construída após a Segunda Guerra Mundial e evitando novos conflitos de tal envergadura. Ao levantar esta questão é preciso lembrar que a Rússia observa com imensa preocupação as tentativas atuais de distorção de fatos históricos, em especial os referentes ao resultado do desfecho ocorrido na Segunda Guerra Mundial. Também é importante enfatizar que sempre estaremos inclinados a participar de ações conjuntas que visem a proteção dos direitos humanos, mas, ao mesmo tempo, condenamos veementemente o uso dos diretos humanos como desculpa para interferir nos assuntos internos dos países”, enfatizou.
Takmakov ainda salientou a importação da participação em organizações regionais e processos de integração econômica como a Comunidade de Estados Independentes, constituída depois do fim da União Soviética, sendo a maior associação de integração regional no espaço ex-soviético e plataforma para a implementação de um Tratado de Segurança Coletivo, além de uma união econômica. São também estratégicas para a Rússia a Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (APEC), a União Econômica da Eurásia, a Organização para a Cooperação de Xangai, o G20 e o BRICS.

O diplomata ainda destacou parcerias estratégicas que promove com vizinhos e países da região a exemplo de China, Japão, Vietnã e a Península Coreana. Ainda que existam contendas importantes como é o caso da disputa entre Rússia e Japão sobre a soberania das Ilhas Curilas, as trocas comerciais e culturais permanecem de extrema importância para ambos os países, assim como a participação conjunta para a busca de soluções que afetam toda a região. Na mesma linha, o governo da Rússia busca promover uma política que acabe com impasses políticos como os presente na Península Coreana, mas é contra medidas como sanções econômicas e outras iniciativas impositivas.
Conforme apresentado pelo cônsul, a Rússia é plurinacional. São 85 unidades que constituem a Federação, das quais 26 estão localizadas na parte asiática do país. Territorialmente é o maior país do mundo, localizado na Europa e na Ásia. Deste vasto espaço de terra, 75 % localiza-se na parte da Ásia que vai dos Montes Urais, que separa da parte europeia, até o Oceano Pacífico. Da população que soma 148 milhões de pessoas, 22% habita na parte asiática. Ao norte do país e ainda em seu lado asiático estão localizados 80% dos recursos energéticos e 85% dos recursos hídricos e madeira da Rússia.

Somado a isso está 75% de água doce e grandes reservas de diamante e ouro, além das maiores reservas de matérias primas e químicas, de metais ferrosos e não ferrosos. A Sibéria ocidental responde por 60% de reservas de turfa e produz 70% do petróleo e 90% do gás extraídos na Rússia. A indústrias químicas e de base voltadas a produção de energia, além de importantes ramos da engenharia mecânica estão bem representados na região. Ainda nesta parte asiática do país está um dos maiores símbolos nacionais o Lago Baikal, uma grande reserva de água doce que é mencionado em obras literárias e outras formas de expressão artística e identitárias da Rússia.
Os vínculos com a Ásia vêm de séculos desde que a Rússia permaneceu por dois séculos sob o julgo do poder Mongol. Ivan III, após livrar-se do julgo uniu os principados russos e expandiu os domínios para além do rio Volga, constituindo o Império da Rússia. “No reinado de Ivan IV Vasilyevich, que não era terrível, iniciou a conquista da Sibéria. A ideia de que Ivan era terrível é uma criação do Ocidente, que parece querer perpetuar a noção de que a Rússia é um país horrível, onde se mata indiscriminadamente”.

“Não é assim. Enfim, com Pedro I, o Grande, houve a responsabilidade de defender o território de invasões que ocorreram anteriormente e, assim, foi estabelecida fronteiras com a Ásia Central. O Tsar ainda interessado em promover rotas comerciais para as Índias e a China, além de conquistar a parte desconhecida da América do Norte, teve de explorar o extremo oriente, conquistar terras e construir uma infraestrutura”, informou o diplomata.
Ainda como exposto em sua palestra, ao longo dos anos, um dos resultados destas iniciativas, continuadas em reinados subsequentes foi a construção da conhecida linha férrea Transiberiana (1891-1904) que existe até hoje, ligando praticamente todo o território russo. A construção da ferrovia fez com que o governo fornecesse terras aos imigrantes e os provesse de ferramentas para o cultivo da região. Eles também foram isentados de impostos e serviço militar. De 1887-1903 foi feita a ferrovia sino-oriental, construída a partir do ramo sul da ferrovia Transiberiana, o que aumentou a influência do Império da Rússia sobre o extremo oriente. Em 1922 foi fundada a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) que inclui a parte da Ásia Central de importância estratégica para o bloco.

Tais informações que são consideradas básicas para os que almejam tornarem-se especialistas em estudos da Rússia são ainda do conhecimento de poucos. A mesma situação acontece com outros países não apenas da Ásia. Na mesma linha de trazer conhecimento que busque fomentar a compreensão da Rússia e de sua identidade aos brasileiros, o historiador e especialista em Rússia Prof. Ângelo Segrillo da Universidade de São Paulo (USP), coordenador do Laboratório de Estudos da Ásia da mesma instituição acadêmica, explicou sobre o debate interno no país disposto no seu livro “Rússia, Europa ou Ásia” (2016, Prismas).
Ele afirma que a Rússia é uma fonte rica de estudos importantes porque é difícil classificá-la, porque se trata de uma discussão que nem os próprios russos chegaram a um denominador comum. “Existem três escolas de pensamento Ocidentalistas, Eslavófilos e Eurasianistas. A primeira afirma que a Rússia faz parte do mundo ocidental, já os Eslavófilos acreditam que a influência ocidental trouxe grandes problemas ao país, e os Eurasianistas acreditam que ela faz parte dos dois mundos. Também precisamos fazer a diferença que existe na questão de nacionalidade da Rússia que divide entre russos étnicos e outros povos que nasceram em território da Rússia, por isso ela é chamada de Estado Multinacional, onde a nacionalidade é transmitida pelo sangue, no conceito jurídico ‘Jus sanguinis’ e não ‘Jus soli’, nacionalidade determinada pelo local de nascimento como ocorre no Brasil e nos EUA, que são Estados nacionais”, explicou o professor.

Segrillo ainda lembrou das dificuldades que ainda existem para ampliar e consolidar os estudos em Ásia no Brasil e sugeriu que o próximo passo seja unir os núcleos e centros de pesquisas acadêmicos para promover um encontro nacional. Durante o encontro de grupos que buscaram analisar os resultados do simpósio levantou-se a importância da construção de obras de conhecimento básico que sirvam como manuais aos graduandos que futuramente visem tornarem-se pesquisadores e especialistas na área.
De uma forma, ou de outra o continente asiático vem ganhando cada vez mais proeminência a ponto de publicações jornalísticas que tem grande influência sobre a elite econômica e parte intelectual brasileira como o Financial Times terem já anunciado que o mundo se prepara para viver a Era Asiática. A China já é o principal parceiro comercial do Brasil. Índia, Japão, Coreia do Sul e Rússia estão entre as 20 maiores economias do mundo junto com a brasileira.
A Coreia do Sul tornou-se o segundo maior parceiro comercial do Brasil na Ásia, com um montante de US$6 bilhões de investimento alocados no mercado brasileiro, principalmente nos setores eletrônico, automobilístico, petrolífero e siderúrgico. Apesar do atual cenário, o estudo da região encontra dificuldades não apenas do público em geral, mas do próprio meio acadêmico.
Nascimento ressalta que é preciso ainda modificar a forma como ocorrem a produção de conteúdo internamente nas instituições de ensino, estudo e pesquisa. “Buscamos a construção de um conhecimento que não seja apenas centrado em uma relação professor e academia. É preciso que este conhecimento seja inclusivo tanto para os demais grupos e integrantes do universo acadêmico, como os próprios graduandos, quanto para o público em geral, que não está relacionado com às universidades diretamente”, sublinhou o pesquisador.
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