A asfixia social e o poder de libertação no longa “Um Homem Ideal?”, de Carles Alberola

Crédito: Divulgação/Fênix Distribuidora de Filmes.

Em um mundo pós-moderno, caracterizado e regido por valores bastante líquidos, para lembrar o filósofo e sociólogo Zygmunt Bauman: “as relações escorrem pelo vão dos dedos”, a vida é medida pela ideia de ter sucesso (enriquecimento material talvez) o quanto antes, não importante se de forma sólida, ou não. Talvez não apenas as relações entre os indivíduos, mas a vida deles em si, deva ser uma espécie de experiência fugaz, sem necessariamente qualquer significado.

Bauman era um pessimista da pós-modernidade, mas independentemente de opiniões a respeito de um, ou outro pensamento filosófico, a maturidade e a velhice fazem parte do processo natural da existência, quando esta não é interrompida abruptamente, que imprime ao ser humano talvez o período mais importante de transformações e compreensões de si próprio. Como sociedades em um passado antigo já demonstravam, estas fases da vida  de uma pessoa apresentam significados e razões únicos em si e que não necessitariam de justificativas para existirem, mas que a sociedade pós-moderna cada vez mais almeja anular.

Crédito: Fênix Distribuidora.

A maturidade, assim como a velhice, não são apenas um acúmulo de experiências, e sim períodos únicos que proporcionam vivências, consciências e entendimentos diversos de tudo o que ocorreu na juventude, possibilitando ao humano uma capacidade maior de modificar o seu universo e a sua realidade com tais conhecimentos aprendidos em situações do passado. Sabendo disso, é também importante ressaltar que ao espaço vasto do universo, o conceito de sucesso criado pelos homens, seja ele qual for, não tem a mínima importância.

Em outras palavras, as galáxias, assim como os planetas e talvez os seres que neles habitem, pouco ligam para esta ideia do que venha a ser bem-sucedido, ou não. Da mesma forma, a vida em si, que tem seu próprio curso, independente das nossas vontades, também não quer saber se alguém tem sucesso, ou não.

Crédito: Divulgação/Fênix Distribuidora de Filmes.

De forma que uma reflexão sobre o porquê da necessidade de criação de uma ideia completamente abstrata como o “sucesso”, que acaba por incitar o estabelecimento de regras sociais e demandas que levam os indivíduos a construir toda uma vida em busca de alcançá-lo, precisa ser feita. Afinal, literalmente, tal conceito acaba mais por controlar e conduzir a vida de milhares de indivíduos, a limitar seus reais potenciais, fazendo-os competir e entrar em conflito com eles mesmo e com os outros ao redor, tornando-os mais individualistas e autodestrutivos, a medida que seus organismo passam também a desenvolver doenças psicossomáticas de toda ordem.

Questões existenciais como esta estão bastante presentes na comédia espanhola, mais especificamente produzida na região de Valência e falada neste dialeto, “Um Homem Ideal” (M’esperaràs?). Dirigido por Carles Alberola, com a produção da Albena Produccions e a ser lançado no Brasil pela Fênix Distribuidora, o filme tem um roteiro repleto de engenhosidade e citações de clássicos. Com um formato que provém do teatro, algo que segundo o site El Diário espanhol o diretor já teria realizado em produções teatrais e televisivas anteriores, este filme apresenta um indivíduo enfrentando os dilemas da maturidade em uma realidade social que mais o oprime e o impede de concretizar os seus reais anseios e vontades. Porém, acima de tudo, o limita a poder desenvolver todos os aspectos de sua personalidade, do seu ser.

Crédito: Divulgação/Fênix Distribuidora de Filmes.

Contudo, esta mesma sociedade que impõe regras e conceitos, passa a também ser contestada por aqueles dispostos a não aceitar rótulos e que ousam enfrentar e transformar os códigos sociais nos atos mais simples do dia a dia. Como o próprio diretor salientou ao jornal espanhol: “o filme fala sobre a capacidade de mudar nossa existência e lutar para mudar o que não gostamos”. Assim, o enredo gira em torno de um encontro às cegas, organizado por Jaume (Alfred Picó) e Raquel (Cristina García), amigos do aspirante a escritor e professor de filosofia Rubén (Carles Alberola), que possui uma personalidade um tanto neurótica e depressiva.

Separado já há dois anos e amargando outras derrotas na vida, ele terá nova chance de tornar realidade sonhos e anseios ao conhecer a mulher convidada Pilar (Rebeca Valls), irmã de Raquel. Provocante e contestadora, ela é capaz de colocar o relacionamento dos três de cabeça para baixo, impulsionando mudanças em suas vidas que eles mesmos acreditavam não serem já possíveis.

Esta obra, que é o primeiro filme de Carles Alberola e foi baseada na peça de teatro homônima, que ganhou o Prêmio Palanca e Roca de Teatro no Prêmio Literário Ciutat Alzira em 2013 (publicado pela Editions Bromera), tem como objetivo manter a unidade em tempo e espaço, enfatizando ainda mais o ambiente teatral. Desta forma, o cenário torna-se um protagonista importante, no caso o apartamento do intelectual, onde grande parte do cômodo é tomado por livros, quadros, objetos de todos os tipos, manuscritos, trabalhos acadêmicos, filmes e cds, em uma desordem típica de quem vive e respira conhecimento. A iluminação que em grande parte é distribuída pelo cômodo, em especial as prateleiras auxiliam a dar vida a este apartamento que fala e esconde segredos, sendo provavelmente o quinto personagem da obra.

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A química e interpretação do trio de amigos contrasta um pouco com a da jovem Pilar que parece uma estranha no ninho, desprovida de sentimentos profundos para as provocações que incita. Contudo, é ela que traz à tona temáticas como suicídio, depressão, traição de toda ordem, problemas de aceitação e outros. E mais, é a ela que cabe a tarefa de promover as crises necessárias para transformar vidas que até então se encontravam amarradas pelas convenções e pela suposta aparência de felicidade e objetivos conquistados.

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Assim, com uma atuação um pouco exagerada, característica que também se pode atribuir aos demais atores, Rebecca Valls, junto ao teor cômico, irônico e até sarcástico do roteiro aborda estas questões e provoca mudanças, que serão importantes especialmente para o protagonista da história. Com um orçamento limitado de pouco mais de 400.000 euros, “Um Homem Ideal” além de refletir sobre a existência e questionar os códigos morais e sociais impostos, lembra que para muitas pessoas, por traz da aparência de uma vida feliz, que atingiu um suposto nível de sucesso, há, na realidade, indivíduos asfixiados e que no fundo almejam desesperadamente serem de alguma forma salvos das amarras abstratamente impostas.

Somado a isso, há a vida líquida da pós-modernidade que acentua tal situação e não os faz criar bases sólidas, para que desenvolvam todas as potencialidades que poderiam em conjunto com outros humanos. O filme estreia nos cinemas brasileiros no dia 3 de outubro.

Título em português: Um homem ideal?
Título em valenciano: M’esperaràs?
País: Espanha
Direção: Carles Alberola
Elenco: Carles Alberola, Alfred Picó, Cristina García, Rebeca Valls
Duração: 89 min
Lançamento: 2017 (Espanha)
Idioma: valenciano (uma das principais variantes dialetais do catalão)
Legenda: português

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por Anders Noren

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