O fenômeno do festival de cinema do BRICS

Crédito: http://www.china.org.cn

O BRICS, originalmente um termo acadêmico, agora tem o tipo de apelo político que o economista Jim O’Neill nunca poderia ter imaginado quando cunhou a sigla BRIC em 2001, para descrever um grupo de economias emergentes que ele via como estágio semelhante em seu desenvolvimento (Brasil, Rússia, Índia, China e depois a África do Sul). Esse agrupamento tornou-se uma entidade política que realiza cúpulas internacionais regulares e, desde 2014, possui sua própria estrutura financeira, o Novo Banco de Desenvolvimento, com o objetivo de fornecer uma alternativa ao Fundo Monetário Internacional e ao Banco Mundial, dominado pelos Estados Unidos.

Após alguma incerteza com o resultado da eleição para a presidência do Brasil em 1º de janeiro de 2019, com a vitória de Jair Bolsonaro, que, juntamente com os principais membros de seu gabinete, criticou abertamente a diplomacia sul-sul, a 11ª cúpula anual do BRICS, programada para ser realizada pelo Brasil em 2019, acontecerá de fato em novembro, em Brasília. E, apesar da dissolução do Ministério da Cultura por Bolsonaro e dos cortes no financiamento para o setor cinematográfico, o Brasil honrará a missão de sediar o que nos últimos quatro anos tornou-se um complemento cultural da cúpula: o festival de cinema do BRICS.

Dependendo da fonte que se lê, foi o presidente chinês Xi Jinping ou o primeiro-ministro indiano Narenda Modi que, na cúpula de 2015 em Ufa, na Rússia, sugeriu a organização de um festival anual de filmes do BRICS, com o primeiro sendo realizado em Nova Délhi em 2016 para coincidir com a hospedagem da Índia na cúpula anual. No ano seguinte, um evento muito mais ambicioso e de alto nível foi realizado na cidade de Chengdu, sudoeste da China, em 2017.

Aqui as cerimônias de abertura e encerramento foram transmitidas ao vivo, o evento ganhou seu próprio site e os filmes vencedores do festival, incluindo o brasileiro “Nise: Coracao da Loucura” (2015), foram distribuídos no circuito de filmes da China. O festival também estreou a primeira das cinco coproduções propostas do BRICS: “Where Has Time Gone” (vários, 2017), produção executiva (e parcialmente dirigida) pelo premiado cineasta chinês Jia Zhangke e envolvendo contribuições de nomes consagrados no cinema mundial de Países do BRICS, como o brasileiro Walter Salles.

O 3º festival em Durban, em julho de 2018, procurou manter o impulso estabelecido pelas duas edições anteriores, mas trabalhando dentro de consideráveis ​​restrições orçamentárias e em um contexto de incerteza política que afeta vários Estados membros do BRICS (a Índia não enviou um membro do júri para o festival), tendo seu impacto limitado. O festival ocorreu dentro da programação do Festival Internacional de Cinema de Durban, que, sem dúvida, foi beneficiado financeiramente com uma quantidade expressiva de recursos, mas também pouco destaque foi dado aos filmes do BRICS, que mais estavam perdidos na programação do festival da cidade.

A segunda coprodução do BRICS, “Half the Sky” (2018) estreou em Durban: neste filme, cinco diretoras dos países do BRICS fizeram um curta-metragem cada, com foco nas experiências das mulheres em seus países de origem. O financiamento para o 4º festival de cinema dos BRICS havia sido garantido antes das eleições presidenciais de 2018 no Brasil, com responsabilidade administrativa sendo concedida à Universidade Federal Fluminense, em Niterói, trabalhando com a prefeitura e agora sendo supervisionada pelo recém-formado Ministério de Cidadania.

O programa elaborado pelos organizadores do festival, bem como a vertente competitiva regular (dois filmes recentes por Estado membro que competem por diversos prêmios) incluem uma série de filmes clássicos, um seminário sobre preservação de filmes, cursos de história de cinema de cada país do BRICS para cineastas iniciantes, com duração de uma semana e um mercado de filmes.

Como principal foco institucional do intercâmbio cultural entre o florescente bloco comercial do BRICS, os festivais de cinema do BRICS até o momento demonstraram que entre os países do bloco existe atualmente uma curiosidade considerável, mas as relações culturais concretas permanecem na melhor das hipóteses em fase provisória e correm o risco de serem ofuscadas pela tensão política. Todas as edições até agora do festival de cinema do  BRICS concentraram-se em grande parte na produção individual de filmes dos países do grupo, com discussões envolvendo trocas culturais limitando-se a apresentações de institutos de cinema e financiadores nacionais sobre possíveis estratégias de produção e marketing ou eventos ad-hoc.

Certamente, resultados concretos dessas discussões surgiram ao longo dos últimos três anos, incluindo a assinatura de acordos de coprodução onde eles ainda não existiam (por exemplo, entre a África do Sul e o Brasil e entre a África do Sul e a China, ambos em 2018). A existência de acordos formais de coprodução não garante, porém, um aumento do intercâmbio cultural (considere, por exemplo, os tratados de filmes subutilizados do Brasil com a Índia e o Reino Unido). Além disso, não há como negar que a China é a principal força motriz da interação cultural como parte dos festivais, que correm o risco de criar um diálogo enviesado, no intuito de responder aos interesses comerciais da China.

No atual clima político, é difícil dizer qual o impacto, se houver, do 4º festival de cinema do BRICS sobre as relações entre o Brasil e os outros países membros. No entanto, em um nível pequeno, mas ainda importante, o festival parece oferecer um recorte muito necessário para a comunidade cinematográfica brasileira atualmente difamada de diretores, funcionários da universidade e estudantes e audiências cinematográficas.

Stephanie Dennison

Natural da Irlanda do Norte, viveu no Rio de Janeiro e hoje mora em Yorkshire e leciona na Universidade de Leeds, onde vem desevolvendo pesquisas nos últimos 20 anos. É professora de estudos brasileiros e membro fundadora do Center for World Cinemas and Digital Cultures. Ela é co-autora com Lisa Shaw de dois livros sobre cinema brasileiro e editou publicações sobre cinema latino-americano e cultura popular. Ainda co-editou juntamente com Song Hwee Lim, o trabalho “Remapping World Cinema” e lidera uma rede internacional de pesquisa que examina o cinema como um recurso de soft power nos países do BRICS.

Tradução:

Alessandra Scangarelli

Jornalista (PUCRS), roteirista, pesquisadora e tradutora. Especialista em Politica Internacional (PUCRS) e Mestre em Estudos Estratégicos Internacionais (UFRGS). Foco de análise e atuação: relações internacionais e estudos do audiovisual russo e asiático.

Deixe seu comentário

por Anders Noren

Acima ↑

%d blogueiros gostam disto: