
Um(a) cidadão(ã) médio(a) sem qualquer consciência política é uma arma com grande potencial de destruição. Uma capacidade que é prejudicial, ou até mortal, não apenas para a sociedade como um todo, mas para ele(a) mesmo(a) e para aqueles que lhe são mais caros. Das diversas temáticas inseridas em um filme como “O Barbeiro do Presidente” (2004), de Lim Chan Sang, que está disponível para ser assistido no Netflix, pode-se facilmente salientar que esta é uma das que mais se destaca.
Sung Han Mo (Song Kang Ho) é um simples barbeiro, que possui uma loja no bairro do presidente, a Casa Azul. Politicamente não muito versado, concentrado em viver o seu dia-a-dia, ele prefere seguir as opiniões e reflexões políticas de seus conhecidos, do que as suas próprias, independentemente das consequências que estas podem vir a ter futuramente. Em tempos de turbulência sistêmica a ingenuidade, o individualismo e a passividade são escolhas perigosas.


O cenário político do filme começa em 1960, quando o primeiro presidente da Coreia do Sul Syngman Rhee é derrubado após acusações de fraudes eleitorais. Tal situação impulsionou uma manifestação estudantil, a chamada Revolução de Abril e, posteriormente, resultou no voto unânime da Assembleia Geral para que o presidente renunciasse. Rhee ficou conhecido por sua inclinação anticomunista, tendo suprimido e perseguido diversos grupos políticos. Apenas no conhecido Massacres das Ligas Bodo pelo menos 100 mil pessoas foram executadas por suspeita de serem adeptas do comunismo.
O golpe militar que o sucedeu e instauraria a ditadura Park Chung Hee teria a mesma perseguição não apenas aos comunistas, mas a qualquer opositor ao governo. Apoiados pelos Estados Unidos, os governos subsequentes coreanos apenas foram perder em parte o seu caráter autoritário em 1988, quando houve a primeira eleição direta e a Coreia do Sul começa realmente a observar um crescimento e desenvolvimento econômico significativo.
Contudo, apesar das sérias perseguições durante os “anos de chumbo” da ditadura de Park Chung Hee, interpretado no filme por Jo Yeong Jin, Han Mo tem outras preocupações. Sua esposa Min Ja (Moon So-ri) dá à luz a um menino. Sua barbearia vai muito bem e um dia o chefe Jang Hyeok Su (Son Byong Ho) do Serviço Nacional de Inteligência Sul-Coreano entra em sua loja e ordena que ele atenda o presidente. Logo Han Mo torna-se uma das pessoas mais importante em seu bairro, mas tal privilégio terá graves consequências em especial para os seus amigos, alguns deles apoiadores de Park Chun Hee, e para o próprio filho de Han Mo.
Como em todo filme cujo enredo apresenta uma crítica social extremamente dura, mas que ao mesmo tempo não abre mão do entretenimento, Lim Chan Sang ao utilizar aspectos cômicos, torna este trabalho cinematográfico uma comédia dramática com grande dose de ironia e sarcasmo. Assuntos polêmicos e chocantes como fraude eleitoral, paranoia, perseguição política e tortura ao mesmo tempo que acabam, de certa forma, amenizados pelo tom cômico, salientam a crueldade de um governo que foi capaz de torturar crianças em nome da proteção à influência marxista, comunista no país.

A interpretação primorosa Song Kan Ho faz com que o espectador tenha um sentimento dúbio quanto ao personagem, pois ao mesmo tempo que se pode criar simpatia por aquele individuo tão simplório e inocente, é possível vê-lo como responsável por ser tão facilmente influenciado, submisso e passivo ao sistema. Mesmo após a sua família sofrer com as ações do governo, ele continua a prestar o seu serviço como barbeiro ao presidente. Talvez como forma de sobreviver, ou talvez porque aprendeu de tal forma a aceitar as situações ao seu redor, não encontrando outra forma de agir, ou não sabendo rebelar-se, nada disso parece aliviar a parcela de culpa deste cidadão tão humilde.
O seu filho Seong Nak Han (Jae Eung Lee), ainda criança, é quem curiosamente apresenta a audácia infantil, portanto pouco consciente da maldade mundana, de enfrentar as situações e as pessoas que lhe ameaçam. Ele também é desprovido de idolatrias que vemos em personagens secundários como o barbeiro que trabalha com Han Mo, Jin Gi (Ryu Seung Soo). Este é fã da cultura dos Estados Unidos, assim como de seus cidadãos, e sonha visitar o país ocidental. Tal desejo não se concretiza na realidade, mas ele tem a chance de finalmente estar com seus “ídolos” após ser enviado para a Guerra do Vietnã e lutar lado a lado com seus supostos “amigos” norte-americanos. Na prática, ele experiencia não apenas o desprezo destes por ele ser um asiático, mas também os horrores de uma guerra sangrenta.
Na mesma linha, o personagem Mr. Choi (Yun Ju-Sang), que serve quase como um mestre para Han Mo e afirma estar o governo sempre certo, sendo necessário acabar com os comunistas do norte do país, também vai ter um final bastante triste. Ele é acusado de ser comunista, ou de estar “infectado com a influência marxista” pela paranoia governamental.
Tais dualidades que vemos nos personagens e nos acontecimentos que são decisivos para as suas vidas, também são observadas na cenografia e fotografia que trabalham de forma interessante ao promoveram um contraste do ambiente tranquilo e da vida cotidiana daquela vizinhança com a crueldade e turbulência da situação histórica por qual passava a Coreia. O filme é ambientado em grande parte em um bairro calmo, cujo cenário parece mais o de uma cidade do interior, em que o tempo passa mais devagar.
A fotografia, em parte, lembra um agradável fim de tarde, com uma luz solar que aos poucos vai sumindo no horizonte. Por fim, pode-se concluir que “O Barbeiro do Presidente” é uma elegante e mordaz crítica social ao indivíduo e suas escolhas e o quão decisivas estas atitudes particulares podem ser para a vida prática da sociedade em geral.
Fonte: Texto originalmente publicado no site do Koreapost
Link direto: https://www.koreapost.com.br/destaques/o-barbeiro-do-presidenteuma-elegante-e-mordaz-critica-social-ao-individuo-e-sua-passividade-politica/
Direção: Lim Chan Sang
Roteirista: Min Seok Jang, Chan Sang Im
Elenco: Kang Ho Song, So Ri Moon, Jae Eung Lee
Lançamento: 5 de maio de 2004
Idioma: coreano
Legendas: português
Deixe seu comentário