Ásia no Festival do Rio: “Uma mulher alta”, “O lago do ganso selvagem” e “Son-Mother”

Crédito: Festival do Rio

Neste ano de 2019, a Revista Intertelas teve a oportunidade de participar e acompanhar algumas obras exibidas durante o Festival do Rio. Com uma vasta gama de opções optou-se por seguir a linha da publicação eletrônica e acompanhar algumas obras produzidas em países da Ásia, ou que abordam conteúdo envolvendo questões desta região. São 10 filmes que abarcam temáticas do Oriente Médio, Sudeste Asiático, Sul da Ásia, Rússia, China e Japão. Serão três postagens onde se realizará uma breve resenha das obras.

Esta primeira parte inicia com o filme “Uma mulher alta”, do diretor russo Kantemir Balágov; que trata o período inicial do pós Segunda Guerra Mundial, na Leningrado (hoje São Petersburgo) que após o fim do cerco imposto pelos nazistas, seus habitantes tentam aos poucos voltar a vida normal, com os traumas de quem recentemente acabou de experienciar o inferno da tentativa de destruição e eliminação de outro país invasor.

Após o chinês “O lago do ganso selvagem”, de Diao Yinan que também acaba por abordar a busca pela paz e a reparação, mas através da perspectiva de um criminoso. Por fim, o título iraniano “Son-Mother” da diretora Mahnaz Mohammadi, fecha esta primeira série com uma temática que exprime como os valores sociais e religiosos de uma sociedade acabam impactando uma das relações humanas mais profundas que é a conexão entre mãe e filho.

“Uma mulher alta”: o retorno à vida após sobreviver a tormenta de uma guerra genocida

Crédito: Festival do Rio.

Durante a Segunda Guerra Mundial, as baixas humanas, entre civis e militares, de cidadãos da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) chegaram em torno de 20 a 35 milhões. O chamado exército vermelho, o primeiro e único a permitir a participação de mulheres nas frentes de batalhas foi a chave principal para a derrota da Alemanha nazista, eliminando 80% das forças de Hitler, com a estratégia implementada e o condicionamento psicológico de sociedades soviéticas que objetivaram sobreviver ao genocídio que o nazismo impôs às populações habitantes desta região do mundo.

O filme de Balágov é inspirado na obra da escritora e jornalista bielorrussa Svetlana Aleksandrovna Aleksiévitch, “A guerra não tem rosto de mulher”, traduzido diretamente do russo para o português e lançado no Brasil pela Companhia das Letras. A autora que também ganhou o prêmio Nobel de literatura em 2015, neste trabalho propaga ao conhecimento do público internacional os relatos de veteranas soviéticas que até então eram desconhecidos de todos.

Crédito: Leia para viver.

Na história de Balágov, Iya Sergueeva (Viktoria Miroshnitchenko) e Masha (Vasilisa Pereligina) são duas ex-combatentes de guerra que buscam retomar suas vidas na Leningrado recém liberta após um cerco nazista que teve a duração de 900 dias e resultou em torno de 1 a 2 milhões de mortos. O cenário histórico que se desenvolve ao telespectador é de uma população exausta, com os mais diversos traumas físicos e psicológicos, mas que aos poucos tenta sair de um ambiente humano cuja violência impunha-se como regra, assim como a luta pela sobrevivência.

Percebe-se que mesmo em um contexto tão amplo de destruição ainda há espaço entre as pessoas para a caridade, a solidariedade, o afago entre amigos, ainda que todos continuem sendo humanos com seus defeitos morais que já lá permaneciam mesmo antes da guerra chegar. Talvez esta seja o grande elemento presente na trama de “Uma mulher alta” a dualidade humana, o seu lado bom e ruim que permanece, independente do decorrer dos acontecimentos.

Crédito: Festival do Rio.

Em específico, às duas heroínas impõe-se duas dificuldades maiores: a de voltar à condição de mulher, após diversas batalhas que lhes arrancaram do íntimo características que vão desde o prazer de usar um vestido ao poder gerar uma nova vida, ou se relacionar com o sexo aposto; e o retorno à vida civil, o qual todos esforçam-se para conquistar, após tornarem-se soldados, ou melhor máquinas de matar. Contudo, a volta ao dia-a-dia e à normalidade, certamente, não é uma tarefa que todos conseguem atingir. Ilya, que tem alta estatura e é chamada pelos demais de “grandona” sofre de uma espécie de estupor que a paralisa e a deixa por minutos incapaz de qualquer reação. Ela que cuida do filho de Masha, enquanto esta retorna do front. Porém, sua saúde resulta em um desastre, o que leva a uma transformação da amizade para uma batalha entre as duas por reparação.

O cenário e a fotografia acabam por afastarem-se da lógica dos filmes de guerra russos, com locações que mostram metrópoles inteiras destruídas. Não, o objetivo maior aqui é focar o íntimo dos personagens, em especial as protagonistas. Por isso, também que os movimentos, planos e posicionamentos de câmera (assinados por Ksenia Sereda) escolhem uma aproximação das figuras humanas, onde se pode ter uma conexão maior entre o público e suas reações emocionais.

Crédito: Festival do Rio.

As cores escolhidas que vão de um leve amarelo ocre ao verde impulsionam uma atmosfera mais taciturna que se mantém ao longo da obra. Atmosferas que estão bastante presentes em filmes de Aleksandr Sokurov, e que se fazem presentes na obra de Balágov que foi seu aluno. A trilha sonora com músicas da época que lembram as vozes da época de ouro do rádio e a presença deste também em várias cenas traz um outro elemento marcante para a trama. Há de se destacar a atuação de Miroshnitchenko e Pereligina. A primeira encarna a figura mais introvertida, mas que nos momentos  dramáticos mostra-se combativa e perspicaz.

A segunda, além de mais extrovertida e capaz de seguir estabelecendo relações com todos os tipos de pessoas, mostra-se tão impositiva em suas vontades que chega a ser violenta e cruel. Ambas se sentem vazias e doentes e buscam pela cura em meio a uma sociedade que por razões óbvias está disfuncional. Porém, a situação que lhes é imposta ao retorno de uma normalidade e dentro de um contexto familiar padrão (filhos, pai e mãe) torna-se naquele momento histórico praticamente impossível, refletindo-se até nos dias de hoje, em períodos de paz.

“O lago do ganso selvagem”: o embate psicológico de um criminoso em uma China interiorana ainda em vias de desenvolvimento

Crédito: Festival do Rio.

Um dos maiores problemas de muitos críticos de cinema é, às vezes, ignorarem a situação política, econômica e social dos países, cujos filmes que analisam são provenientes. Isso é claro quando se fala de China. Não que seja necessário ser especialista em política internacional, mas ao promover uma reflexão sobre uma obra cinematográfica, às vezes, uma pesquisa simples sobre outras questões pode evitar erros grotescos. Muito diferente do que uma grande parte da população acredita, a China ainda não pode ser classificada como um país desenvolvido, mas sim emergente.

Isso até o seu governo faz questão de salientar. Isso significa que em localidades bem ao interior, vamos provavelmente encontrar uma situação de país de Terceiro Mundo, onde normalmente o desenvolvimento econômico e a presença do Estado tendem a ser fracos, estabelecendo um terreno fértil para a atuação de organizações criminosas. E este é o contexto social que se apresenta a nós em “O lago do ganso selvagem”, de Diao Yinan. Para além disso, o que é bastante interessante de observar é que Yinan apresenta uma China em transição, onde aos poucos as instituições vão sendo fortalecidas como é o caso da polícia que ainda não tem treinamento suficiente para enfrentar organizações criminosas e cujos policiais precisam aprender a manusear armas.

Crédito: Festival do Rio.

Aqui se tem um quadro do processo de desenvolvimento das forças de mercado que impulsionam forças contraditórias, como explica a própria lógica marxista. A construção de um parque industrial que em si promove evolução da situação econômica, mas traz também nas suas entranhas questões problemáticas como a prostituição, o crime e a violência.

O aspecto violento do processo de desenvolvimento econômico aqui é bastante retratado não apenas nas relações abusivas que ocorrem no mundo específico de organizações criminosas, mas entre os próprios cidadãos comuns que exploram uns aos outros, demonstrando a dualidade da condição humana em qualquer situação. A falta de sutilezas na trama, assim como situações bruscas constituem um quadro de um interior pobre que ainda não tem condições de promover complexidades maiores no seu formato social, assim como os valores e as emoções que os personagens expressam de forma crua, sem muito lirismo, sem muita expressão.

Crédito: Festival do Rio.

Trata-se de uma produção cinematográfica que ignora o tom policial, ou de suspense, ou de ação, perseguição que se encontra normalmente em filmes com esta temática. Em outras palavras, este é acima de tudo um filme intimista e que busca retratar uma China que em razão do seu poder econômico atual, poucos sabem que ainda existe. Na história Zhou Zenong (Hu Ge) é um assassino que está em fuga dos policiais e de seus colegas mafiosos. Em uma noite chuvosa, ele se encontra com uma bela jovem Liu Aiai (Gwei Lun-Mei), uma prostituta que exerce sua função perto da orla marítima, ou dos lagos da cidade.

Ela e praticamente todos, na realidade, estão sendo monitorados pela polícia. Aiai é encarregada por outros gângsteres de entrar em contato com Zhou e trazê-lo de volta. Enquanto isso, as autoridades tentam rastrear a ex-esposa de Zenon (Regina Wan) e seu filho, no intuito de encontrá-lo. A polícia mesmo claramente amadora na sua forma de atuar, é implacável, resultando ao criminoso em fuga apenas a tentativa de reparar seus erros ao possibilitar ao menos que sua esposa receba a recompensa estabelecida pela sua cabeça.

Crédito: Festival do Rio.

Os cenários e a fotografia que apresentam um ambiente bastante sujo, pobre, repleto de fetichismos sexuais, que poderiam ser melhor desenvolvidos, uma ênfase no uso de sombras e cores escuras, em especial o cinza, contrastando com o neon bastante utilizado e que lembra localidades como a de um hotel barato, que se localiza perto de estações de transporte, normalmente usados para prostituição ou redes do crime realizarem suas negociações.

Contudo, a quantidade de figurantes, assim como o jogo de luzes, em contraposição às sombras, os posicionamentos de câmera diferenciados contribuem para retratar o cotidiano da cidade e dos cortiços e expressa de maneira bem clara a forma bastante sutil, até lírica, com que a cultura chinesa lida com questões polêmicas como prostitutas, que se disfarçam como moças belas que ficam ao redor do lago. Também ambulantes que na realidade são contrabandistas, entre outros. Neste aspecto, o diretor ganha e faz transparecer o seu estilo, porém, mesmo que seus personagens sejam pouco expressivos, eles poderiam serem munidos de maior densidade psicológica.

“Son-Mother”: o impacto social de valores religiosos e conservadores sobre a configuração de uma família monoparental

Crédito: Festival do Rio.

A diretora Mahnaz Mohammadi, nascida em Teerã, capital do Irã, é cineasta e ativista pelos direitos das mulheres, tendo já sido presa mais de uma vez em razão de sua contestação política. Neste filme, ela conta a história de Leila (Raha Khodayari), mãe solteira de dois filhos, que corre risco de perder o emprego, após a fábrica onde trabalha enfrentar uma grande crise. Kazem (Reza Behboodi), o motorista da fábrica, insiste em se casar com ela, mas impõe condições extremas. Ele tem uma filha com a mesma idade do filho de Leila, Amir (Mahan Nasiri), 12 anos. A tradição vê com maus olhos que um garoto seja criado sob o mesmo teto com uma garota, com a qual não tem qualquer relação parental. Leila tenta de todas as formas resistir a tal situação, mas a pressão perpetuada por seus colegas de trabalho e conhecidos, faz com que ela seja demitida e tenha de encontrar uma solução para o filho.

A narrativa desta produção é bem desenvolvida, assim como a profundidade de seus personagens, cujo psicológico lida com uma pressão social brutal. A fotografia segue uma linha padrão, sem grandes destaques, apenas com planos mais fechados e closes para detectar melhor a emoção dos atores. Contudo, não desmerece o conteúdo da narrativa que em si traz uma reflexão bastante interessante sobre esta questão e que poucas vezes é salientada pelo ativismo político raso. Pior que governantes religiosos e seus governos autoritários é a base social que os dá suporte e poder: o cidadão comum.

Crédito: Festival do Rio.

Muitas vezes a imprensa mundial, assim como analistas e ativistas encarnam o discurso bastante superficial de apontar para lideranças X, ou Y a culpa por tal violação aos direitos humanos. Em “Son-Mother”, o contexto apresentado ao espectador coloca de forma direta e bastante clara que as relações sociais estabelecidas em uma sociedade dependem em grande parte dos valores que a maioria dos indivíduos pertencentes a esta nação possuem. São eles que promovem sustentação aos governos que o regem. A máxima que um povo é o reflexo dos seus comandantes é a linha principal que conduz todo o processo narrativo desta obra.

Divido em dois atos, em um primeiro momento tem-se a luta constante de Leila para permanecer com o filho, no segundo ato, testemunha-se o protagonismo de Amir, que após separado da mãe, faz de tudo para se unir a ela. Salienta-se também a importância de Kazem e de Bibi (Maryam Boubani), uma senhora idosa que auxilia Leila na solução de fazer o filho passar por uma criança surda e matriculá-lo em um internato para crianças com esta condição, onde ela trabalha.

Crédito: Festival do Rio.

Kazem, diferentemente do se espera, não é um homem violento parece realmente gostar de Leila, ele também demonstra ter simpatia por Amir, porém, apesar de sua personalidade dócil, não teria ele atuado para fazer com que a mãe fosse demitida? Não estaria ele aproveitando a situação para não ter uma concorrência masculina em casa? São contextos possíveis dentro de uma situação tão extrema. Já Bibi mostra-se uma figura solidária, disposta a assumir riscos. Ela que já passou por todas as dificuldades e, por sorte, encontrou na velhice uma forma de sustento sabe que não há saída para mulheres solteiras com filhos, a não ser aceitar o que lhes é imposto.

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por Anders Noren

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