O órgão de Stalin: lançadores de foguete “Katyusha” e a revolução na artilharia

Katyusha é uma série de lançadores múltiplos de foguetes desenvolvido e utilizado pelo Exército Vermelho durante a Segunda Guerra Mundial. Crédito: https://defencyclopedia.com/

Imagine-se sendo um soldado alemão nos arredores da cidade soviética de Orcha pelos idos de 1941. A madrugada gelada é cortada apenas pelo som do vento que sacode as pesadas lonas do acampamento militar. Em um segundo, tudo está tranquilo e uma paz pouco convincente parece tomar conta daquele palco de batalhas ferozes. A guarda noturna toma conta da chegada de possíveis invasores. Mesmo estando a milhares de quilômetros de sua casa, aquele parece ser um momento de tranquilidade existente pelo necessário descanso de ambos os lados.

No outro segundo, centenas de sons agudos e altíssimos, seguidos de explosões monstruosas e clarões pelo céu. A terra voa para todos os lados, companheiros gritam de dor, enquanto novas explosões ocorrem, parecendo uma verdadeira chuva infernal caindo do céu. Ao fim de dois ou três minutos, o acampamento está arrasado: o fogo tomou conta de vários veículos, crateras foram abertas, centenas de soldados foram arremessados a metros de distância e muitos deles sequer podem ser identificados. O cheiro de carne queimada é de enojar.

A arma perigosa mais famosa da Segunda Guerra Mundial, Katyusha, é um lançador de foguetes múltiplos (LMR). Crédito: National Technical University of Ukraine
“Igor Sikorsky Kyiv Polytechnic Institute”.

Alguns minutos após o ocorrido, a guarda tenta recompor-se, os oficiais que sobraram tentam organizar as tropas e você pega seu fuzil. Entretanto, até onde os postos de vigilância podem enxergar, não existe nada. A tempestade de fogo parece ter vindo do inferno, sem nenhuma explicação lógica. Obviamente o resto da noite é usado para inventariar prejuízos, contabilizar mortos e organizar o que sobrou da divisão. Na manhã seguinte, as equipes enviadas para investigar de onde viera – e o que era – o ataque, trazem apenas as notícias de que existem marcas de pneus a alguns quilômetros da área atacada. Este era o retrato daqueles que conheciam da pior forma possível os lançadores BM-13, os lendários Katyusha.

Devido ao seu som ensurdecedor, esta arma recebeu o apelido de “Órgão de Stalin”. Segundo um relatório soviético, um cabo alemão testemunhara que “houve muitos casos de pessoas enlouquecendo devido aos disparos do lançador de foguetes soviético“. Semion Timochenko, ministro da Defesa na época da apresentação da arma, teria dito aos engenheiros: “por que você não me contou sobre termos uma arma dessas?”. Foi desenvolvido entre 1938 e 1941, a partir das pesquisas para um míssil ar-terra. BM-13 é o acrônimo de Boyevaya Mashina, que significa “veículo de combate”.

O número 13 designa o calibre os foguetes lançados. Indicados inicialmente para equipar a Narodniy komissariat vnutrennikh diel (NKVD) (Serviço secreto soviético, cuja sigla significa “Comissariado do Povo para Assuntos Internos”), foi depois enviado para todas as unidades especiais de artilharia e também usado pela infantaria em operações de apoio. Os foguetes inicialmente foram montados sobre os caminhões Zis-6, de tração 6×4, fabricados desde 1933 na indústria moscovita Zavod Imeni Stalina. O BM-13 possuía 16 foguetes com 13mm de calibre cada um. Posteriormente, uma nova versão com 24 foguetes também surgiu.

Chamado pelos soviéticos de flauta, Katyusha (canção popular da época, referência a “Pequena Catarina”) ou canhões Kostikov, sua mobilidade rápida fazia com que seus projetistas não tivessem desenvolvido sistema giratório, bastando para isso apenas manobrar o caminhão. O veículo não era blindado, tinha apenas painéis removíveis para proteger o para-brisa durante os lançamentos, pois corria-se o risco da quebra dos vidros. Sua principal tarefa era a destruição por área, e não por objetivo, daí a utilização sempre de muitos lançadores ao mesmo tempo em cada missão.

Sua produção foi muito valorizada devido à facilidade de montagem, pois diferentemente dos canhões tradicionais, várias fábricas poderiam produzir o armamento, mesmo aquelas que não dedicavam-se à indústria bélica. A mobilidade era o seu grande trunfo, pois caso fosse necessário, os foguetes poderiam ser disparados e a evasão das tropas ser feita de forma imediata, afastando-se do alvo rapidamente em alguns minutos. A desvantagem era a recarga mais lenta em relação aos canhões tradicionais, levando de 5 a 10 minutos para isso.

Os BM-13 foram também montados em outros caminhões, como Ford, Chevrolet e Studebaker a partir da chegada de materiais vindos do ocidente. Além disso poderiam ser montados em tratores e carros de combate, trens e embarcações. Seus foguetes possuíam 1,40m, 42kg de peso e alcance de até 8500m. Sua velocidade era enorme, 355m/s, e com a vantagem de deixar poucos vestígios durante o voo, dificultando o rastreamento e localização dos artilheiros.

Artilharia de foguetes. Tropas soviéticas carregando foguetes em um lançador de foguetes BM-13-16 ‘Katyusha’ em 1945. Crédito: Sputnik/Science Photo Library.

O lançador e o caminhão pesavam juntos 4,5t, com 6m de comprimento, 2,23m de largura e 2,20m de altura. A velocidade máxima do caminhão era de 55km/h, com autonomia de 260km e a possibilidade de instalação de um tanque extra de combustível. Seu disparo total ocorria rapidamente, de 10 a 12 segundos. Outra grande vantagem era a rapidez para a instalação do mesmo, já que estava pronto para atirar de 2 a 3 minutos depois que chegava no local designado. Por meses a fio os nazistas tentaram capturar um Katyusha para copiá-lo, mas um sistema de autodestruição impedia que isso ocorresse: sob a suspeita de perder a peça, o artilheiro era orientado a explodir o caminhão em pedaços.

Com o passar da guerra, foram desenvolvidos outros tipos de foguetes, como os pontiagudos, indicados para furar formações de carros de combate. Modelos incendiários também foram produzidos. Através de novas pesquisas, foram colocados em uso os M-13DD, com propulsão dupla e que alcançavam 11800m. Posteriormente, já em 1944, desenvolveu-se o foguete M-30, com 300mm de calibre e seis vezes mais potência de fogo, mas com apenas 3000m de alcance devido ao peso. Outra variante foi o M-13UK, que usava gases propulsores para a estabilização, o que reduziu seu alcance, mas ampliou sua precisão, o que possibilitava seu uso em missões mais específicas.

Soldado do exército soviético carrega um foguete M-13 em um trilho lançador BM-13 Katyusha. Crédito: https://defencyclopedia.com/

Seu batismo de fogo foi em junho de 1941 sob o comando do capitão Flerov, na cidade de Orcha, atual Bielorrússia. Foram disparados aproximadamente cem foguetes em apenas vinte segundos. Seu sucesso foi total, causando enorme pânico no inimigo. Segundo relato do Franz Halder, chefe do Estado-Maior do exército alemão, sua destruição foi devastadora: “os russos usaram uma arma desconhecida até agora. Uma tempestade de bombas queimou a estação ferroviária de Orcha, assim como todas as tropas e equipamentos militares. O metal derretia e o solo queimava”.

O mesmo capitão Flerov, juntamente com seus comandados, protagonizou uma cena heroica alguns meses depois na cidade de Viazma. Sem mais condições de resistir ao avanço nazista, as tropas de Flerov dispararam a totalidade dos mísseis disponíveis e acionaram o dispositivo de autodestruição que todos os caminhões tinham.

Resultado: nenhum homem capturado, nenhum vestígio da arma para ser copiado. Flerov foi condecorado postumamente. Já em agosto do mesmo ano, iniciou-se a produção em massa do modelo. Por ordem de Stalin, foram criados oito regimentos especiais para o BM-13, perfazendo um total de quase mil peças somente para a produção imediata. Se no começo da produção, o exército soviético tinha dezenove Katyushas, ao fim do conflito, calcula-se que existiam dez mil dessas peças de artilharia por toda a URSS.

Produzida até hoje em outras versões, essa família de lançadores de foguetes foi consagrada pela posteridade graças ao seu baixo custo de manutenção e muitas vezes foi símbolo da resistência de povos inteiros contra a expansão de exércitos mais bem equipados, como os guerrilheiros chineses e vietnamitas. Assim, a “Pequena Catarina” mostrava para o mundo um pouco da inventividade e capacidade de improviso do povo soviético.

Bibliografia

O’MALLEY, T.J. Artillery, guns & rockets. Londres: Greenhill military manuals, 1996.

OSINSKI, Albert. BM-13N – Katyusha. Lublin: OW Kagero, 2005.

PRENATT, Jamie. Katyusha: russian multiple rocket launchers (1941- present). Oxford: Osprey Publishing: 2016.

Sites Consultados

https://br.sputniknews.com/

https://br.rbth.com/

2 comentários em “O órgão de Stalin: lançadores de foguete “Katyusha” e a revolução na artilharia

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  1. Obrigado pelo comentário. A ideia é sempre fazer textos claros e objetivos.

  2. Parabéns, como sempre uma leitura de fácil entendimento para que todos possam entender o que aconteceu realmente na história

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por Anders Noren

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