
O cinema é uma forma de arte particularmente interessada no futuro. E em um momento de profunda incerteza social e econômica, as mensagens que irradiam dos filmes que se lançam sobre o tema são, via de regra, sempre alarmantes e desoladoras. A radicalização das hipóteses construídas sobre a nossa caótica pós-modernidade, embaladas na mais desconcertante distopia, lançam sobre esse futuro uma lente de desconfiança e ceticismo.
O tema intersecciona gêneros e subgêneros cinematográficos. Vai da ficção-científica convencional ao universo Zumbi. E se nos anos 70 e 80 o medo do extermínio nuclear era real e concreto, pautando cenários pós-apocalípticos e selvagens (cujo exemplo maior destaca-se a série clássica “Mad Max” do gênio George Miller), os anos 2000 caracterizam-se por um maior inventário de temores.

No plano político, os ventos conservadores e nacionalistas que sopram do núcleo do sistema capitalista global (EUA e Europa Ocidental) e a onipresença do “grande irmão” tecnológico, em mãos governamentais cada vez mais distantes dos interesses populares, tornam nosso cotidiano potencialmente perigoso. A desconfiança que recai sobre as classes política e empresarial, nesse contexto tão incerto e amargo, transforma-se em oportunidade para cineastas interessados em criticar nosso cotidiano através das tintas da distopia. Nesse sentido, é um retorno da ficção e do fantástico para os temas explorados pelo grande George Romero e os seus ácidos filmes de Zumbis, que nos anos 60, 70 e 80 cumpriram esse papel de crítica às massas insonsas e consumistas do capitalismo total.
O cinema, recorrentemente, se volta para o fantástico como forma crítica de enxergar a nossa realidade. O antológico “Blade Runner” (1982), de Ridley Scott, oferecia um futuro com um vazio institucional e dominado por grandes empresas e um planeta consumido pelo caos ambiental e social. Podemos lembrar, no passado recente, de filmes como “Mad Max: Fury Road” de George Miller e “Elysium”, do jovem Neill Blomkamp, como bons exemplos dessa tendência.
O que na minha opinião difere os filmes dessa safra dos de outras épocas é a forte conotação social, que remete a uma luta de classes ressignificada, o que antes era algo restrito às entrelinhas de suas narrativas. Filmes como “Snowpiercer” (Expresso do amanhã), do sul-coreano Joon Ho Bong, ou “The Purge” (Uma noite de crime), de James DeMonaco, ambos de 2013, colocam o elefante na sala: a luta de classes reestilizada, redimensionada pela pulverização dos estados nação e a dramática crise de representatividade. Uma crise de ideias e de propósitos.
A indigesta realidade é extraordinariamente captada por esses filmes, assim como o pessimismo que exala dos mesmos. A analogia da sociedade classista e violenta vista através de um trem pós-apocalíptico em “Snowpiercer” (o fantasma do apocalipse ambiental) que comporta as classes sociais em seus respectivos vagões (com toda a sorte de privilégios para alguns e martírios para outros tantos) é tão direta e sem tergiversações como a sociedade americana futurista de “The Purge”, que elege um dia do seu calendário anual de “eventos” para permitir que as pessoas matem-se indiscriminadamente, sendo, dessa forma, uma oportunidade única para a exaltação de sadismo de suas elites, que caçam pobres e outros indesejáveis pela rua.
A nova classe social dos “super-executivos”, os verdadeiros condutores da vida moderna, também são retratados como indiferentes, arrogantes, violentos e profundamente individualistas. Segundo o economista Thomas Piketty, vivemos sob o julgo da “era dos executivos”, onde a moral meritocrática dessa classe dita um ritmo alucinante e fugaz para o moderno capitalismo.
No filme “Train to Busan” (Invasão Zumbi – a distribuidora brasileira deu um título idiota ao filme), do sul-coreano Yeon Sang Ho, uma crise Zumbi devasta o mundo. A história é narrada sob as perspectivas de uma garotinha e seu pai executivo, frio e distante. A evolução da trama deixa entender que um acidente em uma fábrica da empresa, onde o personagem do executivo trabalha, é a responsável pela crise.
Alienação destrutiva e inconsequente. Conforme avança o filme, somos deparado com outro executivo, transformado em vilão no ato final, que não pensa duas vezes em sacrificar qualquer um para que ele possa viver. Palmas para o inventivo e sempre surpreendente cinema sul-coreano, decerto um dos mais originais do cinema atual.

Lembro também do brasileiro Rodrigo Aragão e sua trilogia sobre o terror ambiental (“Mangue Negro” – 2008, “A noite do Chupa-Cabras” – 2011 e “Mar Negro” – 2013), que que usa o gênero Zumbi, com sotaque bem nosso, para denunciar os efeitos danosos da ganância do homem sobre o meio-ambiente. Quero falar mais sobre o cinema inventivo de Aragão em uma outra oportunidade.
O mestre Romero reclamou, dias atrás, da série “The Walking Dead”, por sua timidez em aprofundar questões urgentes, desperdiçando a catarse Zumbi em tramas esquemáticas e organizadas como um grande videogame, onde a superação de um terrível vilão indica o surgimento de um novo. No entanto, é certo que o alerta de Romero está sendo ouvido, nesse momento, por jovens e irrequietos diretores mundo afora.
Também é importante lembrar dos filmes e séries que usam a tecnologia como instrumento de terror e controle social. A série Black Mirror, de Charlie Brooker,adota um tom profundamente pessimista em relação à tecnologia, em especial aquelas que orbitam em volta das redes sociais e a sua onipresença nas vidas das pessoas. Terror psicológico, controle social e sadismo são sub-produtos da interferência cada vez mais abusiva e desmedida da tecnologia na vida das pessoas.

Porém, essa desconfiança já era percebida em filmes como Videodrome (1983), de Cronenberg (como bem lembrou um amigo…das redes sociais), ou mesmo Westworld (1973), de Michael Chrichton. A fetichização da tecnologia e sua inserção violenta e acrítica no mundo definitivamente acompanha o homem desde à revolução industrial.
A velocidade do progresso tecnológico e as inseguranças sociais provocadas por esse choque econômico e cultural continuarão a fornecer insumos para o cinema provocador. É o que se espera da arte: provocar. Divertir também…mas, sobretudo, provocar. E refletir…
Fonte: texto originalmente publicado no site do O Beco do Cinema.
Link direto: https://obecodocinema.wordpress.com/2016/11/15/distopia-e-pessimismo-social-no-cinema-atual-reflexos-de-um-presente-caotico/
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