“Insistente do sobreviver” – um relato em tempos de pandemia

Eu extenuado em mais uma madrugada de plantão. Crédito: Danilo Mandelli.

A pandemia COVID-19 incitou mudanças significativas nas vidas das pessoas ao redor do mundo. Os mais atingidos, não é novidade, foram àqueles com menos condições econômicas para permanecerem em casa e protegerem-se de forma adequada, no período de quarentena. Os médicos, enfermeiros e demais profissionais da saúde são os verdadeiros agentes na linha de frente do combate em pró da vida, ainda que muitos insistam em acreditar que tal doença não é grande coisa.

Foi pensando nesta questão, que a Revista Intertelas pediu a colaboração do técnico de farmácia, ativista e cronista Danilo Mandelli, para contar um pouco do seu dia-a-dia tanto de estudante em casa, tentando acompanhar os estudos, apesar das dificuldades, quanto de profissional, auxiliando aos médicos e enfermeiros em um hospital da zona oeste do Rio de Janeiro. Neste texto, o autor fala diretamente ao leitor que encontra seu relato por aqui. Mandelli tem uma inclinação para a poesia e também acabou por expôr parte de seus sentimentos durante este período de pandemia em verso. Confira abaixo.

“Uma doença solitária, muita desesperança. Já não temos mais o cavaleiro da esperança pra nos salvar. O que é infortúnio? Ápice do egoísmo? Descrença da ciência? Estupidez? Talvez. Fomos atropelados pela profecia de Nelson Rodrigues, os idiotas venceram”

Trecho do poema “O despertar do escárnio”, por Danilo Mandelli

É manhã de sexta. Estou atônito, aflito, em busca de meios para estudar para a prova do dia seguinte. Sou um jovem estudante, negro, periférico, resistente. Havia perdido tudo em uma enchente alguns dias antes. Me restaram os sonhos e a esperança, fiel aliada. Em rompantes de resiliência, meu interior gritava que a vida tinha de continuar, mas na casca, não era fácil. Olhava para o meu lar e me deparava com o vazio. Olhava nos olhos dos vizinhos, me confrontava com a tristeza. Andava pelas ruas e só via lama. Quando recomeçar? Por onde recomeçar? Como recomeçar? Rodeado por um mar de incertezas e lama.

Fui abraçado pela família após mais uma das aventuras inaugurais (o primeiro a nascer em casa, o primeiro a cursar uma universidade federal, o primeiro a ser vitimado por uma tragédia natural). Num breve suspiro de lucidez, consigo acessar a plataforma universitária através do telefone celular, e faço uma vã tentativa de absorver conhecimento. Exatamente, vã tentativa. Na TV, anunciavam o decreto sobre um tal de Coronavírus, uma pica qualquer lá do exterior, que acreditávamos que nunca chegaria aqui. De imediato, a faculdade suspende todas as atividades. Que baque! Enfurnar ainda mais a cara nos estudos, era a oportunidade de esquecer as mazelas dos últimos dias.

Sozinho (antes mesmo de se falar em isolamento social) em um imóvel da família, com a 
mente vagando por universos sombrios, resolvi comprar umas cervejas e mergulhar no pouco que se sabia sobre COVID-19. Em 7 anos morando sozinho e com uma rotina bem caseira, não me assustava muito essa coisa de ficar em casa. Mas me apavorava o fato de imaginar a ausência de militância política na rua, os jogos do Botafogo, a visita às pessoas queridas, a cervejinha no bar. Tremi. Passei a pirar diariamente com o bombardeio de notícias. Entrei na paranoia, passei a ter medo do contato humano. Revivi mentalmente o escárnio sobre o HIV no início dos anos 90, no qual nos orientavam a não tocar nos portadores. Pesado.

“As pragas permeiam o mundo, o caos não é mais exceção, é regra. Antes casa da resiliência, hoje solo de genocida. Tantas partidas, tantos desencontros, quanta gente sumindo. Uma multidão de desaparecidos pra nunca mais. Afinal, o que há do lado de lá? Não sei. Só sei que do lado de cá há falta de empatia, desamor, extermínio. Aliás, nunca foi tão fácil matar essa gente desprezível, esses loucos que vivem nas matas, atrapalhando os madeireiros e o crescimento econômico”.

Trecho do poema “O despertar do escárnio”, por Danilo Mandelli

 

Àquela altura, a vida se mostrava um tanto pesada. O interior ansiava atitudes radicais, loucuras para quebrar a monotonia. Pensava ao mesmo tempo em coisas desconexas como andar sem rumo, promover surto coletivo, alterações da ordem. Mas na prática fui acometido pelo senso comum entre Raul Seixas e Vinícius de Moraes: o alcoolismo. Mergulhei de cabeça na mistura entre o álcool e os remédios controlados. Passava o dia bebendo para anestesiar o excesso de informações, o encarceramento social. De noite, quando todos os monstros (solidão, incerteza, falta de perspectiva) afloravam, era o momento de me afogar no mar negro da tarja preta. Foram muitos os dias nessa aventura alucinante. Os dias alucinantes findaram com a chegada de um novo desafio, a convivência com um familiar em tempos de confinamento. Loucura, pensei. Um turbilhão de coisas acontecendo ao mesmo tempo.

A ideia de conviver com alguém após anos de cotidiano solo, era assustadora. Perder a liberdade, o silêncio, a privacidade, eram ameaçadores. Tive de encarar a nova realidade com muita sobriedade e persistência. O confinamento com uma pessoa idosa, do grupo de risco, permeada por peculiaridades inegociáveis da personalidade, era super difícil, assim como minha rotina. Passei a me dividir entre a reestruturação de meu lar devastado pela tragédia natural, e a administração do lar com a idosa. Tinha de ter um cuidado extremo de precaução contra a doença, não só por mim, mas pela idosa, bem mais vulnerável. Não foi fácil. O Rio de Janeiro vive extremos na mesma cidade e, um deficit terrível de qualidade de prestação de serviços nas áreas periféricas.

O máximo de itens que conseguimos receber no lar, são medicamentos, água, gás, e serviços limitados de alimentação. Logo, surgia a necessidade de me dirigir ao comércio. Era uma via-crúcis. Falta de fiscalização por parte dos órgãos públicos, estabelecimentos sem respeitar determinações do decreto, aglomerações, pessoas sem máscara. Enfim, tudo errado. Os dias passavam e os desafios só aumentavam. A universidade a qual curso, resolveu retomar as atividades em modalidade 100% online. Por um lado me senti feliz em poder voltar a estudar, por outro, me senti temeroso por uma perspectiva de representante discente. Me senti um privilegiado por ter computador, celular e internet Wi-Fi à inteira disposição.

“Diria Caetano que, um dia, bem adiante, eu poderia morrer de susto, de bala ou vício. Não estou convencido. Todo dia mergulho em copos etílicos, um dia posso me afogar. Há dias em que sou espancado por um tal de desgosto, uma hora dessas posso sucumbir. Ou quem sabe pegar a tal gripezinha”.

Trecho do poema “O despertar do escárnio”, por Danilo Mandelli

Mas… e os demais alunos? Conhecia de perto a realidade de muitos alunos de meu curso. Muitos moram em áreas remotas de municípios como Nova Iguaçu, Belford Roxo, Duque de Caxias, São João de Meriti. Muitos são moradores de comunidades, com oferta precária de serviços mínimos. Muitos não dispõem de internet banda larga, muitos não dispõem de computador, celular e similares, e muitos não chegaram a ter acesso aos livros, uma vez que a distribuição destes não foi realizada devido à pandemia. A tentativa de promover a equidade me dava uma sensação positiva, um êxtase, um ânimo, uma coisa de renovação.

Em contraponto, o COVID-19 ganhava força e, infelizmente, em meu ciclo social, os números começaram a virar nomes. Uma saga de mortalidade estava em curso. Morreram vizinhos, morreram amigos, morreram conhecidos. As “Boas Novas” de Cazuza nunca tiveram tão atual. Toda hora relato de alguém vendo a cara da morte. Eu me encontrava muito assustado com tudo isso, mas, ao mesmo tempo, com vontade de ajudar as pessoas de alguma forma. Assim que voltei ao meu lar, minha benéfica solidão, resolvi me inscrever num programa de voluntários para atuar na linha de frente do combate à pandemia. Estava afastado do ramo da saúde desde 2017, mas me sentia como um revolucionário preparado para o combate. Devido ao grande número de voluntários inscritos, não precisei me dispor naquele momento.

Eis que numa tarde de sexta, durante o almoço, meu telefone toca. Era um chamado pra cobrir a licença de um profissional (afastado por COVID-19) em uma unidade pública de saúde, também referência em trauma. O processo era emergencial e, já teria de me apresentar na segunda feira sequente. Aceitei o desafio, mas desconhecia a magnitude da pandemia, que até então, via superficialmente pela TV. Apesar de já ter atuado na saúde, no primeiro dia senti um impacto profundo: houve grande alteração na própria rotina hospitalar. Novos e complexos procedimentos operacionais, novos protocolos, paramentação cinematográfica. Coisa de outro mundo, como diriam os mais antigos.

Eu numa válvula de escape. Crédito: Danilo Mandelli.

Fico alocado em uma sala de cerca de 3 metros, com janelas para as salas vermelha, amarela e trauma, na qual tenho de dar pronto atendimento e soluções em materiais e medicamentos a médicos e enfermeiros. Há diversos momentos de loucura ao longo dia, na busca pela salvação de vidas. Vejo novos médicos entrarem em parafuso, surto, falta de experiência. Vejo o derramar de lágrimas das famílias ao anúncio do óbito. Passo ao menos 15 horas do meu dia vendo o ser humano em situação deplorável. Vejo pacientes de COVID com dificuldades de respirar, mesmo estando ligados a aparelhos. Vejo meninas novas, bonitas, glamourosas, usando fraldas, cena icônica. Vejo pessoas inertes, sedadas, como se a vida tivesse se transformado num ‘jogo em pause’.

Ouço gritos, clamor, vejo dor, vejo morte. Tudo isso parece ter fortalecido meu sentido de consciência. Me levanto às 05 da manhã, assisto a reportagem na TV enquanto tomo café da manhã, logo após, tomo banho, me arrumo, pego a mala e saio pra ir à luta. Mas a primeira luta vem antes do trabalho. Nessa região da cidade, são comuns os relatos de pessoas que são assaltadas na ida ou na volta do trabalho. Logo, tenho de parar no portão, observar o movimento na rua, e seguir ao ponto de ônibus em passos apressados. No trajeto, quase sempre tenho uma ‘mini depressão’. Vejo pessoas terminando a noitada em bares, vejo bares ainda cheios, casais se beijando na rua, como se estivesse tudo em plena normalidade. Sensação de impotência, de estar enxugando gelo.

Chego ao hospital cerca de 06:30 sob um clima já pesado. A entrada de funcionários é também ponto de peregrinação de familiares de pacientes por informações, uma vez que as visitas estão suspensas pelo risco de contaminação. Ao seguir para a reta dos vestiários, é possível notar a apatia de quem está saindo de serviço. Silêncio “sepulcral”, nenhum sorriso. Expressões de tristeza, de dor, e muitas marcas pelo corpo. Marcas dos elásticos e amarras do avental, marca da máscara e tela de proteção, marca dos óculos e de toda a paramentação. Nada nobre. Caminho rumo a minha posição e, dentro da normalidade, há sempre muito sangue ao chão. Com a flexibilização dos decretos, aumentaram em muito os acidentes automobilísticos, os ferimentos por arma de fogo, os acidentes de trabalho.

Mais um dia de arrancar estabilidade emocional, sabe-se lá de onde. Mas incrivelmente, por força desconhecida, tudo se torna normal ao longo do dia. As noites são dolorosas, frias. O silêncio é interrompido pelo urro de dor, ou pelo barulhinho do saquinho da morte, mas conhecido como cobre corpo (capa utilizada para embalar cadáver). Fim de plantão. Saímos emocionalmente e fisicamente destruídos. Não é fácil. No trajeto de volta ao lar, às 07:30, 08:00 da manhã, vejo pelo vidro do ônibus aglomeração pra entrar em banco; aglomeração em treinos funcionais, Crossfit; aglomeração pra entrar em supermercados; bares já abertos. Uma tristeza muito grande pela falta de conscientização das pessoas. Ninguém está imune mas, isso parece não assustar.

Sigo firme na tentativa de exercer meu papel de cidadão da melhor forma possível. Não só pelo medo de contrair a doença (risco da minha profissão), mas pela possibilidade de sair por aí, de forma assintomática, distribuindo a doença aos demais. Sofro bastante pelas privações. Sinto muita falta de tomar uma cervejinha com amigos e amigas, falta de beijar, de transar, de curtir uma festa, qualquer coisa. Mas me sinto com o dever dobrado, com a condição de dar o exemplo por ser da área da saúde. A fé em dias melhores, fé na pesquisa científica, e fé no amor ao próximo, são o que me mantém de pé.

Danilo Mandelli
“Nascido com sorte, em ano de cometa Halley, dividindo data com Lygia Clark, Lamarca e Carpinejar. Cronista, Articulador Político e Técnico de Farmácia. Militante ecossocialista, defensor da diversidade e dos direitos humanos.”

Escute o áudio do poema “O despertar do escárnio”, escrito por Danilo Mandelli na íntegra

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por Anders Noren

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