
Em diversas obras da literatura e do cinema mundial, algumas questões repetem-se, são semelhantes a todos. São características de caráter universal, visíveis em qualquer situação, independentemente da cultura, do idioma, do histórico de cada país. O processo de nascer, amadurecer é igual para todos, assim como as mudanças e as despedidas que vivenciamos ao longo da existência.
Por exemplo, ao mesmo tempo que temos nossas experiências particulares, todos dissemos um dia adeus à infância e à inocência e à pureza que este período da vida carrega consigo. Igualmente acontece quando nos afastamos de um parente, um amigo querido. Tais transformações não ocorrem apenas com os humanos, mas com todo o contexto social criado por eles. Como um país que a economia era essencialmente rural, não tecnológica, e, aos poucos, chegam os processos de urbanização, modernização e industrialização, promovendo modificações intensas a todos que passam por tal fase de transição.

É preciso ter em mente estes pontos argumentados anteriormente para melhor compreender a mensagem sensível e bastante profunda que o filme longa-metragem de estreia da diretora Wang, Lina, “O primeiro adeus” (2019), almeja transmitir. A história de Wang leva o espectador ao noroeste da China, especificamente, a um pequeno vilarejo, onde ainda existem campos de algodão e muito deserto. É a região onde predominantemente habita a minoria étnica Uigur e o jovem protagonista desta trama Isa (Isa Yasan).

Desde pequeno, ele tem uma vida atarefada, trabalhando na plantação dos pais, mas também realiza as tarefas que toda criança faz: ir à escola e brincar com os amigos nas horas vagas. Tudo segue seu rumo normal. Porém, um dia, a mãe do garoto, doente, precisa ser transferida para um asilo. Se não bastasse, sua melhor amiga Kalbinur (Kalbinur Rahmati) vai ser transferida para outra unidade educacional.
Ao longo do enredo somos transportados para o cotidiano de Isa, Kalbinur e o irmão mais novo da menina (Alinaz Rahmati), três crianças uigur, e suas famílias. Os cenários bucólicos auxiliam a belíssima fotografia desta obra cinematográfica que é praticamente um trabalho antropológico audiovisual, com traços autobiográficos. Wang, igual a seus jovens personagens, também nasceu em Xinjiang, cercada por campos agricultáveis. Como a própria realizadora salientou em uma entrevista para o site Cinemajove: “O filme é uma peça poética dedicada à minha cidade natal, Shaya, Xinjiang. Mais de cem anos atrás, o antropólogo Lewis Henry Morgan escreveu em seu livro ‘Ancient Society’, que o rio Tarim é o berço da civilização mundial. Quem encontrar a chave de ouro deixada para trás pelo velho homem no deserto de Taklamakan, abrirá a porta para a civilização do mundo”.

Durante os 86 minutos de filme, a trama desta produção também aborda os problemas de uma região que vive em depressão econômica e a necessidade de recorrer aos centros urbanos para ter uma vida melhor, com mais infraestrutura. Contudo, não significa que o mudar para as cidades seja um processo fácil, pois toda uma vida rural com seus aspectos positivos e negativos terá de ser abandonada.
A diretora, de forma bastante delicada, promove uma reflexão sobre o encontro da China economicamente mais desenvolvida e que fala mandarim, com a China de Xinjiang que fala Uigur e começa a absorver o idioma predominante do país. Há quem diga que se trata de uma situação puramente conflitante e que o lado “mais forte” tende a oprimir o “mais fraco”. Porém, a diretora apresenta um quadro bastante diferente e mais complexo: é possível promover transformações, sem necessariamente perder as tradições. É possível e preciso modificar hábitos antigos que pouco contribuíram para uma vida melhor.

Uma cena em especial exemplifica isso. A mãe de Kalbinur (Tajigul Heilmeier) é chamada na escola. Em uma reunião com a presença de outros país e alunos, ela é advertida pela diretoria da instituição educacional, precisando ter mais participação no processo educacional da filha que está com notas ruins. Percebe-se que saber mandarim e uigur é demanda clara da escola e a menina também encontra dificuldades para tanto. Sem uma boa educação, mais obstáculos serão encontrados futuramente.
Contudo, há razões para as dificuldades encontradas pelas crianças em ter um bom desempenho escolar. Entre eles é possível citar: o trabalho no campo, as constantes e demasiadas tarefas domésticas que necessitam realizar, a falta de infraestrutura do vilarejo onde moram. A mãe de Isa, por exemplo, precisaria de cuidados médicos especiais, coisa que apenas uma estrutura econômica e tecnológica desenvolvida pode proporcionar.
Outra questão que o espectador poderá contemplar em “O primeiro adeus” é a conexão intrínseca que esta região da China tem com outras grandes civilizações da Ásia Central. Os uigures têm origem turcomena e são uma das 56 etnias oficialmente reconhecidas pelo governo chinês. Alguns costumes, tão desconhecidos do ocidente, são apresentados de forma sutil e permitem ao público brasileiro conhecer uma parte da China ainda pouco abordada.
Outros dois destaques importantes da obra são a interpretação intensa e, ao mesmo tempo, leve das três crianças que não são atores profissionais, revelando um talento nato. A complexidade e simplicidade de suas atuações são integralmente captadas pelas lentes de Wang, revelando um também traço bastante sensível da diretora. E, por fim, a já mencionada fotografia rendeu o prêmio Urso de Cristal na geração KPlus da Berlinale de 2019 e o prêmio futuro da Ásia no Festival de Tóquio. O longa também passou pelo Festival do Rio ano passado e foi recentemente lançado na China, em julho de 2020. Por sua beleza, atuação e trama complexa, o trabalho de estreia de Wang é uma oportunidade para quem aprecia o cinema para além do entretenimento.
Fonte: Texto originalmente publicado em versão reduzida no site da Revista do Instituto Confúcio na Unesp.
Link direto: https://www.institutoconfucio.com.br/a-heterogeneidade-do-cinema-chines/?fbclid=IwAR39VoONY9H8UhojVqlBaqKvfw0sKaCzkNOlXATux_vMEDKnHsdynCNqAFA
Título: O primeiro adeus
País: China
Direção: Wang, Lina
Elenco: Isa Yasan, Kalbinur Rahmati, Alinaz Rahmati, Tajigul Heilmeier
Duração: 1h26min
Lançamento: 20 de julho 2020 (China)
Idioma: Uigur, Mandarim
Legenda: português/inglês
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