
A humanidade tem como base de seus princípios morais a produtividade sistêmica. Alguns irão argumentar que não, que se trata de uma questão apenas da sociedade contemporânea, ou do capitalismo em si. Certamente, o capital é um dos grandes protagonistas desta história milenar dos humanos, mas aqui estamos ampliando a ideia de produtividade. Não são apenas artigos materiais que indivíduos produzem. À esta lista pode-se incluir a produção de ideias, de ideais, de modelos civilizacionais, de heróis, de deuses, de regras de conduta, e, enfim, de mais humanos.
A grande maioria consideraria esta questão algo digno de orgulho, e exaltaria o poder criador do humano e sua superioridade sobre os outros seres, a natureza e até a pretensiosa ideia de ser superior ao universo… Contudo, nas entranhas desta estrutura social voltada à produtividade estão os diversos jogos de poder, de controle, de submissão, de violência, de opressão que o humano exerce sobre si mesmo e sobre os demais seres terrestres.

Nas vísceras deste sistema social está a prisão que, ironicamente, um dia, almejou-se escapar, durante toda a existência. Àqueles que se atrevem a tentar fugir desta engrenagem produtiva, só restará a condenação e o desprezo de seus pares. Porém, é possível que neste mundo paralelo ao produtivo, seja, de repente, possível experimentar a paz e a felicidade genuína. “Querida Konbini” (2018), de Sayaka Murata, lançado no Brasil pela Estação Liberdade, e que só no Japão vendeu mais de 700 mil exemplares, discute esta questão profunda e de extrema importância em um romance sarcástico, ácido, explícito ao apontar os problemas da sociedade japonesa, e, assim, também, retratar o lado violento e grotesco do dito “progresso”.
“A protagonista e narradora é Keiko Furukura. Aos 36 anos, Keiko nunca se envolveu romanticamente e, desde os 18, trabalha numa konbini (loja de conveniência em japonês) — todos insistem que ela arranje um trabalho sério ou, pior ainda, um marido. Keiko, no entanto, está satisfeita consigo mesma. Deslocada desde a infância, é na loja, com regras estritas para os funcionários e dinâmica precisa de funcionamento, que ela consegue pela primeira vez sentir-se uma peça no mecanismo do mundo. O livro é ganhador do prêmio Akutagawa e Sayaka Murata vem sendo louvada como uma das vozes mais originais e talentosas da ficção de seu pais“.
Editora Estação Liberdade
Como a descrição acima aponta, Keiko Furukura é a personificação do ponto de interrogação para os membros da sociedade produtiva. Como poderia alguém nos seus 36 anos contentar-se com tão pouco? Como seria possível ser feliz e encontrar a felicidade, ou até a liberdade, em uma vida diária como uma simples funcionária de uma Konbini? Como pode não ter tido qualquer experiência sexual, neste idade? Para muitos, ela seria o quadro da pessoa sem ambição e que necessita de tratamento. Porém, estariam as pessoas que a julgam tão felizes e livres como acreditam ser? Mesmo com uma família, ou com vários amantes, ou como uma carreira promissora, ou sendo uma celebridade com uma conta bancária milionária, seria ela realmente o que se chama de bem-sucedida? E, talvez o mais importante, qual o significado de tudo isso? A existência humana perante o universo é algo bastante insignificante, uma realidade de difícil assimilação, quando sempre se acreditou ser, ou estar no centro de tudo.
No romance de Murata, encontram-se todos os clichês universais possíveis da descrição dos indivíduos, descritos de tal forma que é possível ter pena de tamanha mediocridade, típica daqueles que julgam ver o mundo do topo, ou que fazem todo tipo de esforço para lá chegar. Obviamente, há um desenho crítico da considerada sociedade japonesa “exemplar” e a explicitação do lado opressor das chamadas civilizações milenares da Ásia, consideradas por muitos como dotadas de extrema sabedoria. Ser antigo realmente pode dotar algumas culturas de maior sabedoria que outras? E ainda, o modo civilizacional capitalista que o ocidente produziu realmente é saudável do ponto de vista filosófico para os humanos? Murata parece acreditar que não.
Sim, como já exposto por diversos críticos, o livro de Murata fala de questões atuais que falsamente se acredita serem peculiaridades do Japão, como jovens adultos virgens que acabaram por desenvolver uma total aversão a ideia não apenas de casamento, mas de manter qualquer tipo de relacionamento, ou experiência sexual. Em 2020, uma pesquisa do governo japonês, conforme noticiou a Revista Trip, apontou que na geração dos millennials (jovens nascidos entre as décadas de 80 e 2000) 70% sãos solteiros, 40% são virgens e 35% vivem sozinhos. Os Hikikomoris, termo japonês para pessoas que escolhem viver em reclusão em suas casas, isoladas de todo mundo. Elas totalizam, conforme pesquisa do governo nipônico, em torno de 541 mil no país. O que faz estas pessoas almejarem estar longe da vida em sociedade?
Pode-se ainda falar de uma população empobrecida intelectualmente e culturalmente, que vive de aparências ao exibir uma pretensa produtividade bem-sucedida ao formar uma família e ter sucesso profissional. Contudo, todos parecem prestes a submergir na frivolidade existencial para simplesmente cumprir a tarefa de ser uma pecinha da engrenagem produtiva.
Mesmo àqueles que aparentam ser rebeldes, como o jovem que Furukura acolhe e estabelece um acordo para exibir a imagem de alguém normal, que está em um relacionamento, demonstram ser, na realidade, o papel um tanto ridículo do homem jovem preconceituoso, que verbalmente diz ser avesso às regras sociais impostas e a forma de conduta que a sociedade espera de um homem. Porém, na prática, incorpora as atitudes que refletem os preceitos sociais que odeia. Obviamente, nestas linhas estão expressas os problema de gêneros com as mulheres tendo de escolher ou serem mães e donas de casa, ou carreiristas solteiras com uma vida sexual ativa, ou até de mães que trabalham. Mas, e se a escolha for nenhuma destas?

Por fim, ser uma pacata funcionária de uma loja de conveniência (konbini) tem algo muito significativo nesta história. Quem sabe a felicidade genuína é a chave para estar livre do contexto escravocrata que a sociedade produtiva impõe. Para alcançá-la basta simplesmente aceitar e viver do simples prazer e da paz que se encontra ao apreciar, amar aquilo que se faz, sem perpetrar qualquer resultado negativo a outro ser vivo. Furukura entende o mundo funcional de uma konbini, lá ela encontra o seu lugar.
Muitos acreditam que se exemplo representa a capitulação da humanidade, pois o que sobrou a jovem protagonista foi este pequeno espaço idílico que está longe do jogo canibal humano do dia a dia. Mas seria apenas isso? Ora, não há nada mais banal que a vida humana, que pode acabar em um segundo. Quem sabe nesta simplicidade, nesta real normalidade toda, não esteja a resposta para o início de algo diferente, melhor e realmente evoluído.
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