Esposas, Concubinas e Lanternas: o encontro do cinema de Zhang Yimou com a obra do aclamado escritor Su Tong

A atriz Gong Li em “Lanternas Vermelas” (1991), dirigido por Zhang Yimou. Crédito: IMDb.

A literatura e o cinema são duas formas de expressão artísticas distintas, mas que sempre tiveram, ao longo dos anos, uma relação bastante profunda, influenciando-se, sendo base de inspiração mútua e promovendo formas diversas de contar uma história, ou provocar alguma reflexão, ou emoção nos indivíduos. A complexidade desta conexão é tão ampla que existem diversas linhas de pesquisa científica, nos mais diversos países, tentando compreender melhor a interação entre estes dois campos artísticos. Há diversas obras literárias e cinematográficas, cujo interesse semelhante de seus autores levou a que ampliassem o alcance de ambas as obras para outros públicos, outros países, como também impulsionassem a atenção para temas que, provavelmente, passariam desapercebidos.

O escritor Tong Zhonggui, mais conhecido como Su Tong, e o cineasta Zhang Yimou acabaram por dividir o mesmo interesse de observar e pensar a sociedade chinesa através da perspectiva de seu público feminino. Algo que os diferencia em uma sociedade de raízes patriarcais. Em especial, foi a obra premiada de Su Tong “Wives and Concubines” (Esposas e Concubinas – 1990), ainda não traduzida para o português, que levou Zhang Yimou a realizar um de seus maiores trabalhos “Raise The Red Latern” (Lanternas Vermelhas – 1991).

“Wives and Concubines” (Esposas e Concubinas – 1990), obra que depois resultou no filme “Lanternas vermelhas” de Zhang Yimou. Crédito: Amazon.

Esta produção cinematográfica já ocupa espaço importante na cinematografia chinesa, obtendo diversos prêmios em vários festivais e com indicação ao Oscar de melhor filme estrangeiro. A história do romance de Su Tong passa na década de 1930 e tem como personagem principal a jovem Lotus, que resolve casar com o rico mercador Chen Zuoqian, tornando-se sua concubina. Após experienciar a dura realidade da família Chen, Lotus acaba enlouquecendo. O filme atraiu o interesse de espectadores e pesquisadores de várias nações que acabaram por conhecer também Su Tong e sua narrativa única, densa e contestadora.

Ao retratar a China pela via dos indivíduos que não ocupam lugar de poder dominante, pode-se compreender outras faces históricas da estrutura social e cultural do país. Tanto o mundo íntimo das mulheres, quanto a influência que exercem no enredo, nas situações a que são submetidas nas narrativas de Su Tong e Zhang Yimou apresentam um cenário bastante complexo de uma sociedade que apresenta uma estrutura altamente hierarquizada, e cujas relações de poder por séculos consumiu a vida de muitos.

Certamente que desde a Revolução de 1949, a China passou por transformações não apenas políticas, econômicas, mas sobretudo sociais e culturais que provocaram mudanças significativas. No entanto, é certo que no presente muitos destes desafios ainda estão para serem vencidos, em uma linha que apenas a dialética dos acontecimentos históricos pode melhor explicar. Aqui vamos conhecer um pouco das trajetórias destes dois ícones da literatura e da cinematografia chinesa e como a versão fílmica de Zhang adaptou a obra de Su ao ponto de traduzir aquele cenário correspondente ao contexto social e histórico chinês para o mundo.

A vida e a obra de Su Tong

Su Tong nasceu em Suzhou, China, em 1963. Escreveu sete romances e mais de duzentos contos. Suas obras foram traduzidas para o inglês, o francês, o alemão e o italiano. Em 2009, venceu o Man Asian Literary Prize, a versão asiática do Booker Prize, com o livro “The Boat to Redemption” (O barco para a redenção). Segundo a autora Hua Li, professora associada, coordenadora do programa chinês da Montana State University e pesquisadora de literatura moderna e contemporânea da China, as obras do autor retratam uma ampla gama de tipos de personagens e “…são caracterizadas por enredos dramáticos, imagens exuberantes, linguagem lírica e uma variedade de técnicas literárias. As obras narrativas de Su Tong podem ser agrupadas em quatro grandes categorias: ficção neo-histórica, narrativas sobre a vida das mulheres, ficção sobre o amadurecimento (bildungsroman) e ficção sobre espaços urbanos modernos da China”.

Conforme a especialista, Su Tong é proveniente de família modesta. Seu pai era um escrivão do governo, enquanto sua mãe trabalhava como operária em uma fábrica de cimento. De acordo com a pesquisadora, o nome original do escritor, Tong Zhonggui significa “meio dourado” e “honra”, expressando assim a tradicional esperança familiar de um futuro repleto de sucesso para o filho. Contudo, o pseudônimo que o autor iria adotar Su Tong, significa, de acordo com o próprio autor, “filho de Suzhou”.

Ele recebeu seu diploma de bacharel em literatura chinesa pela Universidade Normal de Pequim em 1984 e vive em Nanjing desde então. Conforme Hua, ele começou a escrever criativamente quando era estudante universitário, mas só foi publicar seu primeiro trabalho de destaque em 1987, o conto “Memories of Mulberry Garden”. Nas palavras do articulista do jornal The Guardian Rick Gekoski: “Su é um mestre das implicações, e uma leitura cuidadosa de seu trabalho revela mais sobre o estado da China moderna do que muitos escritores chineses muito mais explícitos (geralmente expatriados)”.

A trajetória do cineasta Zhang Yimou

Já Zhang Yimou nasceu em 14 de novembro de 1951 na cidade de Xiam, na província de Xianxim. Está entre os cineastas que tiveram seu trabalho amplamente reconhecido por importantes profissionais do cinema em diversos países. Além de cineasta, é produtor, escritor, tendo também trabalhado como diretor de fotografia em várias produções, como no filme “Old Well” (1987), de Wu Tianming, em que também atua em papel principal, o que lhe rendeu o prêmio de melhor ator no Festival Internacional de Tokyo.

Faz parte da Quinta Geração de cineastas chineses, no período que alguns autores denominaram de ressurgimento artístico na China, tendo feito sua estreia na direção em 1987 com o filme “Sorgo Vermelho”. O diretor teve três indicações ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por “Ju Dou” em 1990, “Lanternas Vermelhas” em 1991 e “Herói” em 2003, além de receber prêmios como o Leão de Prata e o Leão Dourado no Festival de Cinema de Veneza, Prêmio do Grande Júri no Festival de Cinema de Cannes e o Urso de Ouro no Festival Internacional de Cinema de Berlim. Zhang dirigiu ainda as cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Pequim em 2008, aclamadas internacionalmente.

Entre os temas mais abordados em seus filmes estão a resiliência do povo chinês diante das adversidades, em especial das mulheres chinesas, protagonistas em muitas das suas histórias. Os filmes de Zhang Yimou também apresentam características marcantes quanto à técnica cinematográfica. Particularmente é sempre salientado o uso rico de cores, como pode ser visto em alguns de seus primeiros filmes, como “Lanternas Vermelhas”. O pai de Zhang, foi um dermatologista e oficial do Exército Nacional Revolucionário sob o comando de Chiang Kai Shek, durante a Guerra Civil Chinesa. Já sua mãe foi médica em um hospital, afiliado à Universidade Xi’an Jiao Tong. Nas décadas de 1960 e 1970, durante a Revolução Cultural, Zhang trabalhou no campo e depois em uma fábrica de tecidos.

Neste período, iniciou seu interesse por pintura e fotografia amadora. Estes trabalhos garantiriam sua vaga para a Academia de Cinema de Pequim, onde se formou em 1982, tendo como colegas os também diretores Chen Kaige, Tian Zhuangzhuang e Zhang Junzhao. Zhang tem hoje diploma honorário da Universidade de Boston e da Universidade de Yale. Após a graduação trabalhou na Guangxi Film Studio como diretor de fotografia. Os filmes que participou “One and Eigth”, de Zhang Junzhao e “Terra Amarela” (1984) de Chen Kaige tiveram sucesso no Festival de Cinema de Hong Kong, propagando o surgimento do novo cinema chinês em todo o mundo.

As esposas e concubinas de Su Tong na perspectiva fílmica de Zhang Yimou

 O romance “Esposas e concubinas” escrito por Su Tong tem como temáticas principais: a tragédia de uma mulher, a corrupção de um sistema e a luta por alguns desejos, segundo Guannan E do Instituto de Tecnologia da Moda de Pequim e Jing Yi da Academia de Cinema de Pequim. Na análise entre o livro e o filme “Lanternas Vermelhas” de Zhang Yimou, ambos autores observam que: “de acordo com os princípios de adaptação de criatividade e alegorização, Zhang Yimou dissociou o tempo e o espaço da narrativa literária, a partir do contexto histórico social, construiu em sua cenografia uma área onde tempo e espaço permanecem delimitados e estáveis e reescreveu uma versão alegorizada da obra original sob um contexto pós-colonial … O sucesso desse filme não reside apenas na conotação fornecida pela obra original, mas também na percepção aguçada do diretor para o contexto cultural, bem como o posicionamento preciso do público e do tema. Por meio da adaptação criativa, o diretor construiu um figurino folclórico bizarro em nível perceptivo e uma alegoria nacional em nível racional, para mostrar a hostilidade inata e a competição feroz entre as mulheres de uma grande família tradicional, formada por esposas e concubinas, para refletir sobre a cultura tradicional e a natureza humana”.

Assim, os autores comparam cinco aspectos: mudanças de cenários, símbolos, mudanças no enredo, transformação da perspectiva narrativa e transformação da estrutura narrativa. No filme, o pátio da propriedade do rico Chen deixou de ser a área de Jiangnan, onde ficam as chamadas cidades aquáticas, como ocorre no livro, para tornarem-se o interior do seco noroeste. Para o leitor que não sabe, as cidades aquáticas são antigas, históricas e conhecidas por suas pontes, rios e canais. Essas cidades existem em muitas regiões da China.

Outra modificação significativa apontada pelos autores é o simbolismo das lanternas. Segundo eles, no romance elas aparecem apenas duas vezes, mas no filme são uma espécie de elemento simbólico central para a ritualização que aparece na trama, no intuito de captar a atenção do público, com o acender e apagar das lanternas. O que Guannan e Jing chamam de “Rito do espetáculo” foi deliberadamente desenhado por Zhang Yimou para melhor caracterizar o conflito interno entre as esposas e concubinas, na disputa pelo poder, favorecimentos e atenção do marido.

O filme também cria um espaço com intenso impacto visual e auditivo através de cenas fechadas, layout estático e depressivo, cores com contraste intenso e configuração de som especial. Assim, o espetáculo do figurino folclórico de ‘Lanterna acesa – lanterna apagada – lanterna de vedação’ é exibido bombasticamente. No filme, todos os arranjos possíveis que tornavam o espaço suave no livro foram removidos. Nenhuma planta verde pode ser vista, apenas uma grande área de edifícios cinzentos com paredes altas fechadas… Rigidez, severidade e proximidade dos edifícios da casa simbolizam o sistema de clã patriarcal que permanece separado do mundo exterior. Aos que violarem essa ordem, deve ser imposto o castigo de morte”. Desta forma, chegam à conclusão de que Zhang Yimou foi bem-sucedido em sua adaptação, ao combinar, por exemplo, tramas com conflitos intensos, para tornar a estrutura do filme compacta.

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Como resultado, com seus altos e baixos, o enredo cinematográfico resultou ter características notáveis. Para os autores, existem dois conceitos diferentes para adaptação: o primeiro é relacionado à “lealdade”, que considera necessário à adaptação ser leal ao trabalho original, mantendo o conteúdo e os estilos do trabalho original. Já a outra perspectiva apresenta o conceito de “criação”, que salienta ser a adaptação uma nova criação, um novo material, o que garante ao adaptador possuir total liberdade para ter diferentes explicações bem-sucedidas para o mesmo trabalho.

Zhang Yimou escolhe a última estratégia para adaptar romances, de forma extrema, alegorizada e abstrata, segundo os pesquisadores. Afinal, quando Yimou começou sua carreira como diretor a China passava pelo início do processo de globalização e descolonização, o cinema chinês era muito dependente e até submisso aos países ocidentais desenvolvidos, conforme salientam os estudiosos.

Por isso, usando de técnicas exageradas, o realizador acaba também fornecendo uma visão fácil da história para o consumo do ocidente, ao mesmo tempo que promove uma internacionalização eficaz, para preencher a lacuna entre a nação e o mundo, o conscientemente, ou inconscientemente, atendendo às expectativas estéticas exigidas no Ocidente. Ao considerar estas últimas colocações dos autores, é possível entender que mudanças futuras apenas ocorrerão quando o desenvolvimento da indústria cinematográfica chinesa formar um polo cultural capaz de equilibrar mais a influência exercida pelo ocidente no campo cinematográfico e de outras áreas do mundo artístico e cultural, comtemplando os anseios de outros públicos, que não apenas o de países ocidentais desenvolvidos, a começar pelo próprio espectador chinês.

Fonte: Este texto serviu de fonte para compor a publicação sobre o tema que foi originalmente publicada no site da Revista do Instituto Confúcio na Unesp.
Link direto: https://revista.institutoconfucio.com.br/esposas-concubinas-e-lanternas/

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por Anders Noren

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