
O marujo que, no porto de Calicute, foi o primeiro a avistar no horizonte a chegada de uma “cidade flutuante” não deve ter entendido bem o que via – e, se entendeu, custou a acreditar. Àquela distância, ele talvez quantificasse os barcos com alguma palavra que em sua língua queria dizer “miríade”. Pelo azul do Índico, vinham chegando 317 embarcações de tamanhos variados. Muitas delas eram maiores do que qualquer nau já vista até aquele longínquo ano de 1405.
Cidade Flutuantes
Um olho viajado reconheceria ali o mesmo feitio dos barcos que frequentavam as rotas das especiarias para além de Malaca e Java, um ouvido antigo lembraria-se dos relatos de quem voltava de Zaiton (Quanzhou, veja quadro), falando de enormes barcos com velas de bambu que pareciam esteiras, quatro conveses, cabines sem conta e capacidade para mil tripulantes. Os 宝船 bǎochuán (“navios do tesouro”) impressionavam pela tecnologia e pelas dimensões. E tinham sido criados exatamente para isso: impressionar. A julgar pelos relatos, os navios podiam medir cerca de 130 metros de comprimento por 55 de largura.
Há estimativas mais “empolgadas”, que chegam a afirmar algo em torno de 180 metros de comprimento para essas embarcações e que apenas um de seus conveses seria capaz de conter todos os navios de Colombo e Vasco da Gama somados. Já estudiosos modernos, mais comedidos, estimam as dimensões dos barcos maiores em até 125 metros de comprimento por 50 de largura.
Ainda assim, o objetivo de impressionar foi plenamente atingido – e ainda está sendo, pois até hoje nos espantamos com o esplendor do poderio naval chinês. Pode-se dizer que nenhuma frota, de nenhuma outra nação, pode ser comparada a essa até a Primeira Grande Guerra (1914–1918). Já a frota inteira, com 62 baochuan e mais outros tantos navios de guerra, de abastecimento, de transporte de animais e escoltas, causava a impressão de uma cidade flutuante, termo que passou a ser corriqueiro para se referir a essa a às demais expedições de Zheng He, o notável comandante do auge das grandes navegações chinesas.

O almirante dos montes
As origens desse futuro grande navegador estão bem longe do mar, na região montanhosa de Yunnan, uma das últimas zonas de influência da dinastia Yuan (de origem mongol). Nascido provavelmente no ano de 1371 em uma família muçulmana. Seu nome original era Ma He – 马 Ma é um sobrenome comum entre os muçulmanos da China, originado da abreviação de Muhammad (Maomé). Aos 10 anos, viu sua província natal ser tomada pelos Ming, a dinastia chinesa que subia ao trono.
Seu pai morreu no processo, o garoto foi capturado e, em seguida, enviado à corte para servir como eunuco. Era comum que os meninos capturados fossem submetidos à castração, que visava a preservar a pureza da linhagem imperial, uma vez que muitos desses garotos iriam se tornar funcionários de confiança, privando da intimidade do imperador e de suas concubinas. Ou seja, se é que serve de consolo, os eunucos costumavam ocupar altas posições e cargos no Império e desfrutar de prestígio e influência consideráveis, compensando o infortúnio passado com um futuro promissor.
Ma He agarrou a oportunidade com unhas e dentes. Consta que era extremamente inteligente e com extraordinária capacidade estratégica e diplomática, além de guerreiro valoroso. Era um dos principais conselheiros do príncipe Zhu Di e, quando este tornou-se imperador em 1402, inaugurando o reinado Yongle, seu braço direito recebeu o nome Zheng He, provavelmente em referência a seu maior feito até então: a vitória na batalha de Zhengcunba (1399). Com esse mesmo nome entraria para a História anos mais tarde, ao comandar as sete expedições que confirmariam a China como soberana dos mares e das fronteiras conhecidas de seu tempo.
O périplo do oceano ocidental
Sem desmerecer o valor de Zheng He, não deve ter sido por acaso que o imperador escolheu alguém de origem muçulmana para explorar os mares do Índico (chamado de Oceano Ocidental pelos chineses), afinal, essas rotas estavam sob controle dos árabes, também muçulmanos. Ao que tudo indica, era pela força do comércio, não da espada, que os chineses procuravam estabelecer relações com outros povos, desenvolvendo uma eficiente “diplomacia mercantil-econômica” que levaria a influência da dinastia Ming (1368–1644) até o continente africano e consolidaria a China como potência naval.
Figura central dessa conquista dos mares, Zheng He realizou suas sete expedições entre 1405 e 1433. Nessas quase três décadas, a atuação do navegador foi fundamental para a criação de uma extensa rede de exportação de produtos materiais e intelectuais chineses: as cidades flutuantes iam carregadas de bronze, porcelanas, sedas, jade, chá, arroz e inovações tecnológicas. Na volta, traziam outros tesouros, como especiarias, pedras preciosas, novas técnicas e materiais, animais exóticos, além de presentes oferecidos por outros povos.

Engenho e arte
As expedições de Zheng He foram apenas o apogeu em uma longa história de esforços para dominar os mares. Quatro séculos antes da ousadia dos Ming, o povo que inventou a bússola já dispunha de portentosas embarcações, buscando disputar com os árabes o domínio das rotas comerciais do Índico. No século 13, a imponência e a engenhosidade das naus chinesas impressionaram Marco Polo, que dedicou a elas algumas páginas famosas.
Na dinastia Song (960–1279), anterior à Yuan (1271–1368), iniciou-se um pujante desenvolvimento da engenharia naval e da arte da navegação que alcançaria o auge no século 12. A China já era detentora de uma sólida tradição marítima quando os Yuan entraram nas rotas para os portos mouros no Oceano Ocidental. Ou seja, se os Song investiram na tecnologia, os Yuan ampliaram o comércio e o intercâmbio marítimo em níveis inéditos até então.
Finalmente, durante o domínio dos Ming, a grande preocupação da China era manter sua posição nas rotas comerciais com o Sudeste Asiático, reprimindo o comércio marítimo privado em seus portos por meio de uma política bastante restritiva. O imperador Yongle, que acumulou outros grandes feitos – como a reinstalação da capital em Pequim e a construção da Cidade Proibida – concebeu a mais exuberante das frotas como um modo de consolidar esse domínio.

O fim de uma era
Em 1433, com a morte de Zheng He durante ou logo após sua última expedição, o esplendor das navegações chinesas teve um final abrupto, cujos motivos ainda são controversos. Parece difícil compreender por que o imperador Xuande (que reinou entre 1425 e 1435) decidiu pôr um fim à empreitada após séculos e dinastias de incentivo ao desenvolvimento da arte naval. Não faz sentido atribuir esse abandono a questões financeiras – por mais dispendiosas que fossem, as expedições cabiam com folga no “orçamento” da China, que já se tornara a nação mais rica do Oriente.
É mais provável que uma conjunção de fatores políticos tenha levado o soberano a essa decisão. Os eunucos vinham sendo alvo de desconfiança (e de algum ciúme, talvez) por parte dos conselheiros de Xuande, que acabaram por convencê-lo de que valia a pena empregar os recursos na área da defesa ao norte do Império, abandonando, assim, a exploração marítima do sul. Fato é que a brilhante odisseia chinesa teve um fim melancólico.
As embarcações que renderam tantas glorias e riquezas foram abandonadas e o conhecimento acumulado por tantos séculos e dinastias, pouco a pouco esquecido. Chegaram até nossos dias três relatos em primeira mão, escritos por dois oficiais e um intérprete que navegaram com Zheng He. Esses documentos têm grande importância para o estudo dessas expedições e para a compreensão do intercâmbio entre a dinastia Ming e os povos de ultramar.
Além da Taprobana
Setenta anos após a última expedição de Zheng He, quando Vasco da Gama aportava em Calicute, ainda circulavam relatos sobre os navegadores que chegavam do Oriente em seus barcos colossais. Esses relatos atiçaram a curiosidade d’el-rei, que mandou a Malaca um emissário encarregado de perguntar pelos tais “chins”. A partir de então, os navegadores portugueses se tornariam os primeiros europeus a frequentar regularmente a costa chinesa. Mas esse já é o começo de outra história.
Quanzhou, a cidade das árvores-de-coral
Como uma idosa muito sábia e experiente, que nada mais tem de provar a ninguém, a hoje pacata cidade portuária de Fujian tem um ar discreto. Ainda lhe persistem traços da antiga beleza, afinal, apenas Xi’an (capital da opulenta dinastia Tang) se compara a ela em quantidade de tesouros históricos. Quanzhou abriga 12 dos 20 maiores sítios arqueológicos de toda a província e um sem-número de museus, templos e pátios antigos.

Um dia ostentou avenidas inteiras ladeadas de flores encarnadas, o que lhe rendeu a alcunha de 刺桐城 Cìtóng chéng, cidade das árvores-de-coral. Do apelido Cìtóng veio o nome Zaiton que os árabes deram ao porto e que ficou registrado narrativas de Marco Polo. O mesmo nome nos legou a palavra “cetim” para designar um tipo especialmente lustroso de seda. A cidade era o ponto de partida da Rota da Seda Marítima. De lá zarparam também as sete expedições de Zheng He no século 15.
Nos seus áureos tempos, era cosmopolita e “hiperconectada”, tinha bairros persas, indianos e judeus. Jacob D’Ancona, um judeu italiano, teceu loas a Quanzhou/Citong em Cidade de luz, livro supostamente escrito no século 13. No século seguinte, o explorador marroquino Ibn Battuta visitou a cidade e voltou apostando que se tratava do “maior porto do mundo”. Fato é que, já na dinastia Tang (618–907), Quanzhou estava entre os quatro maiores portos da China. Em seu zênite, nos períodos Song e Yuan, abrigava religiões, mercadorias, idiomas e costumes de todos os cantos do mundo conhecido e, ao que consta, permitia que convivessem em harmonia.
Em 1974 foi encontrado em Houzhu, a 10 km de Quanzhou, um navio da dinastia Song, ainda carregado de mercadorias – e peças de xadrez chinês. Trata-se da embarcação mais antiga já encontrada na China. O casco tem 24,4 metros de comprimento por 9,15 de largura, com capacidade estimada de 200 toneladas – dimensões modestas se comparadas às descrições da frota de Zheng He. Entretanto, o achado permite um vislumbre da antiga supremacia marítima chinesa.
Fonte: Texto originalmente publicado no site da Revista do Instituto Confúcio na Unesp.
Link direto: https://revista.institutoconfucio.com.br/uma-odisseia-chinesa/
Amilton Reis e Janaina Rossi Moreira
Colaboradores da Revista Confúcio
Deixe seu comentário