Das catacumbas de Washington, a OTASE ressurge como Quad

Crédito: The Diplomat.

As reuniões do G7 (Grupo das 7 maiores economias do mundo), as cúpulas da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), e a recente reunião entre as chefias das relações exteriores entre China e Estados Unidos no Alaska, recebem poderosos holofotes midiáticos frenéticos com a chegada de Joe Biden à Casa Branca. Nos portais midiáticos tupiniquins da bem formada mídia verde amarela, continua a ocorrer uma reprodução maquiada do atual presidente como estadista, escondendo a saúde de um rei a beira da morte como era tradição em várias monarquias de séculos passados, na Europa das casas reais.

Entretanto, o fato curioso é que nem tudo o que este ’’valioso estadista’’ está realizando sai a público. Exemplos disso são manutenção das sanções contra Cuba, a tentativa de intimidar o Irã para que retorne ao acordo nuclear- que eles mesmos não querem-, bem como a silenciosa ingerência recente na Europa com a volta do ’’Super Mário’’- Mario Draghi, ex-presidente do Banco Central Europeu e amigo de Silvio Berlusconi–  à política italiana. No extremo oriente, isto é, no Oceano Pacífico, o roteiro é semelhante, ainda que em termos bem mais complexos para o atual governo estadunidense.

Em 2017, assim que chegou ao Salão Oval, uma das primeiras atitudes de Donald Trump foi o cancelamento do Acordo de Parceria do Transpacífico (TPP), que durante anos foi a articulação política de Washington para a contenção da China. A origem deste acordo é datada de 2011, quando a então Secretaria de Estado Hillary Clinton publicou na revista Foreign Policy o famoso artigo, America’s Pacific Century” (O Século Pacífico Americano) que passou a guiar o então presidente Barack Obama para a condução de uma política externa de maior projeção no extremo oriente. E este é um dos pontos menos mencionados nos últimos meses sobre a presidência Trump, o outrora unânime TPP desapareceu.

Em janeiro deste ano, Grant Newsham, um fuzileiro naval da marinha estadunidense reformado, diplomata e pesquisador do Fórum Japonês para Estudos Estratégicos, e membro do Centro para Políticas de Segurança publicou o artigo “Trump’s Indo-Pacific policy wasn’t all wrong” (A Política do Indo-Pacífico de Trump não estava completamente errada) no site do Asian Times ainda em janeiro do presente ano. Embora no escrito citado, seu autor busque da maior peso aos méritos da política trumpista para o pacífico, não deixa de ser curioso que também tenha lançado ideias ao atual governo que dá prosseguimento a este caminho. A ideia é trocar o santo, mas segurar o milagre.

Este é um dos motivos pelos quais a abordagem militar estadunidense para com a China ainda não desapareceu, e nem dá sinais de que isso ocorrerá. As cenas midiáticas de Washington na busca de um acordo com a China para celebrar o fim da guerra econômica de Trump não são parte de uma tentativa de ressuscitar o TPP- algo que nem está presente no vocabulário-, afinal como disse o próprio Joe Biden, Beijing é uma ’’competidora estratégica’’. Portanto, trata-se de pura propaganda de dissuasão pública, que por sua vez não funciona mais com a China, bem como com sua aliada estratégica, a Rússia. Uma espécie de Big Stick 2.0, agora chamada de Humility and Confidence (Humildade com Confiança).

A única maneira de entender este movimento é sabendo que o TPP deixa de ser interessante aos empresários estadunidenses em razão da aliança estratégica sino-russa e a construção de uma gigantesca zona econômica que vai de Manilla nas Filipinas até Dakar no Senegal, coordenada pela China, as margens da estratégia estadunidense. O documento mais importante da administração Trump a este respeito, e que pautará os próximos anos, mesmo décadas, é o Plano de Segurança Nacional de 2018, que destaca a relação entre a China e a Rússia como a maior ameaça ao poder global dos Estados Unidos no século XXI.

A solidificação do projeto One Belt One Road (As Novas Rotas da Seda), cujo ano primeiro de funcionamento já é 2021, torna a China um ator econômico tão poderoso e articulado nos países do Sul Global- que concentra a maior parte da população e recursos no planeta- que com o tempo pode virar as próprias instituições e acordos existentes contra os Estados Unidos. Um cenário que torna a frente estratégica construída pelo TPP no Pacífico inútil, e força a passagem da abordagem econômica para a abertamente militar ou não, em todas as frentes, e não apenas no extremo oriente.

Especificamente na Ásia é possível observar não apenas o reaparecimento de uma confrontação geopolítica regional, mas sobretudo a emergência de um cenário militarizado que não se observava desde a década de 1970. Naquela época, a Organização do Tratado do Sudeste Asiático (OTASE) direcionava-se contra a China e a União Soviética. Fundada na década de 1950 pelo presidente D. Eisenhower, e arquitetada por George Kennan e John Foster Dulles, ela deixa de ter sentido após o então Secretário de Estado, do presidente estadunidense Richard Nixon (1968-1974), Henry Kissinger, visitar a China e pacificar as relações entre os países. Um processo concluído com a dissolução da OTASE em 1977, levando ao fim da Guerra Fria no sudeste asiático.

O fim da OTASE não foi uma derrota para os Estados Unidos, ainda que tivesse sido um triunfo estratégico para os chineses. Washington permaneceu como um ator relevante na região com bases no Japão, Coreia do Sul, Malásia e outros países, e abriu condições para a pressão em outras frentes de batalha contra a União Soviética no Oriente Médio (Afeganistão e Cáucaso), e também no leste europeu. Portanto, a recente militarização do Mar do Sul da China em face do poderio crescente de Beijing é um rearranjo político regional desfavorável e que aponta para uma derrota estratégica estadunidense. E isso inclui o próprio Quad (Diálogo de Segurança Quadrilateral) enquanto instrumento de sua orientação de ação local.

Ainda que nas declarações públicas dos membros do Quad, o caráter militar não fique claro, mais do que palavras, são os gestos que importam na política. Por uma coincidência ’’mágica’’, desde que este grupo retomou o contato iniciado em 2004, e solidificou os laços em 2017, já sob a presidência de Trump, a Índia esvaziou sua presença no grupo BRICS (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul) e passou a uma política agressiva contra a China. A Austrália também aderiu a campanha anti-China de Trump a despeito de ser membro do tratado da Parceria Econômica Regional Abrangente (RCEP)– envolvendo a China, a Associação dos Países do Sudeste Asiático (ASEAN), Japão, Coreia do Sul, Nova Zelândia e a Austrália. E em tempos de Guerra Híbrida, onde as leis da guerra do clássico pensador Clausewitz, que separa o período de guerra e de paz, já não servem, também deixa de existir a fronteira entre o militar e o político.

Eufóricos, os ’’falcões’’ nos Estados Unidos, já ’’soltam seus fogos’’ e anunciam a recente reunião do Quad- que teria ocorrido com Trump já em 2020 não fosse a pandemia da Covid-19 e as eleições- como evidência da capacidade de estadista da nova presidência. Ainda que dessa reunião não tenha saído nenhuma novidade significativa, a principal mensagem é o fortalecimento de um cordão Indo-Pacífico de contenção da China que busca trazer atores como Indonésia, Tailândia, Filipinas, Singapura, Malásia, Coreia do Sul e Taiwan. Inclusive a importância deste momento está presente em um dos artigos em destaque na já citada revista Foreign Policy, “Getting the Quad Right Is Biden’s Most Important Job” (Consolidar o correto Quad é o mais importante trabalho de Biden). Escrito por ninguém menos que o ex-Secretário de Defesa de Trump, general James Mattis, o analista político Michael Auslin e o Deputado Assistente da Secretaria de Defesa para o Sul e Sudeste Asiático, Joseph H. Felter– todos associados ou funcionários do Pentágono.

A ressurreição da OTASE, chamada agora de Quad, embora publicamente posta em outro nível que não o militar, é claramente direcionada a China como ocorreu durante na década de 1950 quando se forjaram as alianças estadunidenses na região. Boa parte dos pontos da breve declaração final dos membros do Quad situam questões que se relacionam com China, como por exemplo, a ideia de fortalecimento dos valores universais, segurança do ciberespaço, tecnologia crítica, vacinação no sul e sudeste asiático, e segurança e liberdade de navegação na região Indo-Pacífica. Contudo, o pós-Cúpula do Quad também oferece um bom sintoma com as visitas do Secretário de Defesa Lloyd Austin e o Secretário de Estado Anthony Blinken ao Japão, Coreia do Sul e Índia para assegurar a lealdade política e militar.

Contudo, em oposição a década de 1950, a situação hoje é bem diferente. A China é a principal economia do mundo em termos de produção, crescimento, distribuição, consumo e investimento. Seu único problema é a área de inovação tecnológica, cuja dependência de países como Coreia do Sul e Taiwan a torna vulnerável a recente guerra de chips e propriedade intelectual movidas por Washington. Em oposição a 1950, Beijing possui atrativos econômicos, sociais e políticos muito maiores que os Estados Unidos para boa parte do mundo. Um exemplo disso é que com exceção de Brasil- que passou por uma poderosa Guerra Híbrida desde 2013-, Índia- rival histórica da China- e Grã-Bretanha- histórica potência-, todos os demais ditos aliados dos Estados Unidos estão sob ocupação militar direta de tropas e bases. Este não é o caso dos aliados da China.

Curioso é observar quem são e como estão posicionados a nível internacional os membros do Quad. Diferente do que ocorreu no passado quando a OTAN foi fundada, e a própria OTASE, este é um bloco com algumas fragilidades. Neste caso excetuaremos os Estados Unidos por questões de interesse particular óbvias, parcialmente expostas e plenamente públicas. O caso da Austrália é um exemplo típico de muitos países ocidentais.

Dirigida pelo espelho de Bóris Johnson, Scott Morrison, ela está amarrada ao Commonwealth (Comunidade Britânica das ex-colônias fiéis a Grã Bretanha) e impossibilitada de tomar quaisquer decisões soberanamente sem consultar o Palácio de Buckingham, consequentemente o Império Britânico mais a OTAN, porém sua principal parceira econômica é a China. Uma dualidade de discursos ’’agradando gregos e troianos’’ é impossível, em especial porque é signatária do RCEP, é impossível. Portanto, ao optar por uma parceria militar com os Estados Unidos, a Austrália não apenas abre mão da única opção capaz de oferecer-lhe prosperidade econômica conjunta, como também a inclui em uma aventura militar que trará custos com os quais não terá capacidade de arcar por si.

A situação do Japão é a mais grave, a despeito dos delírios no ocidente de que do gabinete de crise do Primeiro-Ministro Ioshihide Suga pode vir a ser o Líder da Ordem liberal na Ásia– título de um artigo em destaque na revista Foreign Affairs. Suga não apenas aparece e apresenta-se como um bombeiro de um gigantesco incêndio na política japonesa, como apenas dispõe de uma única mangueira cheia de furos para apagá-lo – como o chefe do Comitê Organizador das Olimpíadas de Tóquio, Yoshiro Mori. Inclusive é importante ser destacado que desde a hendaka japonesa na década de 1990, o país encontra-se em crescimento econômico praticamente zerado e conta com índices sociais terríveis, onde as altas taxas de suicídio e infecções por Covid-19 são alguns exemplos. Para o governo japonês, encontrar inimigos externos como a Coreia do Norte e a China pode até ser uma estratégia de camuflar a crise social, mas ela tem prazo de validade, e o próprio passado do país já mostrou isso durante a Segunda Guerra Mundial.

Antony Blinken e Lloyd Austin ao lado do Primeiro-Ministro Yoshihide Suga, em Tóquio. Crédito: POOL / REUTERS.

Por fim, a Índia possui muitas vantagens, e bem pouco a perder dentro desta estratégia política indo-pacífica em razão de seu isolamento político atual, porém este caminho tem um futuro bem imprevisível em oposição aos países anteriores. Em primeiro lugar porque ela não é um país ocupado militarmente como o Japão e nem amarrada a nenhuma aliança estratégica, econômica ou militar com o ocidente, o que lhe da liberdade para entrar e sair, conforme a sua vontade. Isso ajuda a esclarecer o porquê desta posição agressiva indiana contra a China, cujas origens não estão apenas em questões políticas e econômicas, mas históricas.

Em segundo lugar, esta posição política de Nova Delhi é fruto de uma luta política entre frações partidárias dentro do país, onde os militares, identificados com o projeto neoliberal do Primeiro-ministro Narendra Modi, usam esta direção para garantir o funcionamento do complexo industrial e militar do país, enquanto desviam o olhar da sociedade dos problemas concretos. No entanto, a questão rural, um destes problemas, explodiu em 2020 com a ocupação da capital por milhares de camponeses, assim como recentes protestos em consequência do preço dos combustíveis. Logo, a futura sustentação deste projeto neoliberal é incerta mediante as crescentes manifestações, o que enfraquece a viabilidade da base estratégica que justifica a presença indiana no Quad.

Estas breves pontuações nos levam a duas conclusões que apenas o tempo poderá responder com a devida eficiência. Uma é que o Quad pode vir a ser um poderoso instrumento político estadunidense de contenção da expansão da Eurásia (Rússia, China e Irã, parecido com o que se deu na Guerra Fria), pois possui uma forte capacidade de coesão entre os interesses destas nações, a partir de instrumentos ou situações que enquadram estes quatro atores. Porém, os países membros têm fragilidades e dependem da manutenção, quase que o congelamento das atuais condições políticas para que a organização prossiga existindo, o que é duvidoso a longo prazo, e permite afirmar que o Quad, da maneira como se apresenta, terá dificuldades de manutenção em um período futuro.

Crédito: facebook Casa Branca.

A outra conclusão possível é que mesmo que as condições na Austrália, Japão e Índia mantenham-se, inclusive no cenário regional, seria necessário que os Estados Unidos também preservem sua condição hegemônica no bloco ocidental, acertando as arestas existentes na OTAN, o que implicaria em implodir o Acordo Comercial China-União Europeia. Isso teria implicações sistêmicas para a própria União Europeia, pois Washington é incapaz de oferecer melhores vantagens econômicas que os chineses hoje.

Algo que tornaria os governos e burocracias do bloco europeu ainda mais impopulares, levando a mais cisões e aderências individuais ao projeto One Belt One Road. O reforço do chamado hardpower não seria suficiente para manter a vassalagem europeia sob controle, e a manutenção de duas frentes militares, uma na Europa e outra no sudeste asiático- sem contar a América do Sul que já está articulando o retorno da UNASUL-, tornaria impossível o financiamento de tantos aliados, que no caso do Quad, apenas a Índia tem capacidade de auto sustentação hoje.

No entanto, resta uma última ponderação. O que farão Rússia e China frente a este cenário? Bom, a cúpula realizada em Guilin, na região chinesa de Guangxi, foi o melhor termômetro da reação. Dela não apenas vieram respostas de alto nível relacionadas à União Europeia e aos Estados Unidos, mas sobretudo a oficialização da entrada triunfal de um novíssimo membro soberano neste círculo da parceria estratégica euroasiática de Rússia e China: A República Islâmica do Irã.

Fonte: texto originalmente publicado no site do Cotidiano.
Link direto: https://www.cotidiano.org/das-catacumbas-de-washington-a-otase-ressurge-como-quad/

Referências

AUSLIN, Michael; FELTER, Joseph H.; MATTIS, James. Getting the Quad Right Is Biden’s Most Important Job. In: Foreign Policy. 2021. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2021/03/10/getting-the-quad-right-is-bidens-most-important-job/.

HEYDARIAN, Richard Javad. Quad summit next step towards an Asian NATO. In: Asia Times. 2021. Disponível em:  https://asiatimes.com/2021/03/quad-summit-next-step-towards-an-asian-nato/.

NEWSHAM, Grant. Trump’s Indo-Pacific policy wasn’t all wrong. In: Asian Times. 2021. Disponível em: https://asiatimes.com/2021/01/trumps-indo-pacific-policy-wasnt-all-wrong/.

REJ, Abhijnan. In ‘Historic’ Summit Quad Commits to Meeting Key Indo-Pacific Challenges. In: The Diplomat. 2021. Disponível em: https://thediplomat.com/2021/03/in-historic-summit-quad-commits-to-meeting-key-indo-pacific-challenges/.

THE WHITE HOUSE. Quad Leaders’ Joint Statement: “The Spirit of the Quad”. 2021. Disponível em: https://www.whitehouse.gov/briefing-room/statements-releases/2021/03/12/quad-leaders-joint-statement-the-spirit-of-the-quad/.

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por Anders Noren

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