O Princípio Imutável e a Não-Ação em Liezi e Laozi

Lie Yukou ou Liezi, oi um filósofo taoista chinês e autor de Tratado do Vazio Perfeito. Crédito: reprodução da internet.

No seu “Vazio Perfeito”, com a tradução de Chiu Yi Chih e publicado pela Editora Mantra, o pensador taoista Liezi concebe um Princípio de Unidade que rege, ordena e unifica todos os fenômenos do mundo. Esse Princípio conhecido como Princípio do Dao é imutável, inengendrado, inesgotável e autopoiético. Imutável porque é capaz de transformar as coisas sem que ele mesmo seja transformado.

Por essa razão, ele é considerado por Liezi como sendo o Espírito do Vale ou o próprio Ser do Vazio, cuja bela expressão “O Espírito do Vale nunca morre” (谷神不死 – gǔshénbùsǐ) já foi mencionado pelo seu mestre Laozi no capítulo 6 do livro clássico “Dao De Jing”, também com tradução de Chiu Yi Chih e publicado pela Editora Mantra. Assim, o Princípio do Dao ou o Espírito do Vale é, em sua condição originária, a essência da imortalidade e, por essa razão mesma, a essência da imutabilidade. Qual é a implicação fundamental de sua concepção ao sustentar que esse Princípio é imutável?

De acordo com Liezi, podemos observar que todas as coisas do mundo são dotadas de formas. 有形者(yǒuxíngzhě) é a expressão que significa “o que é possuidor de forma”. Em Liezi, essa expressão refere-se à toda forma fenomênica passível de transformação e que, portanto, jamais escapa do processo de degeneração e morte. Ou seja, estão submetidas às mudanças, alterações, aos processos de crescimento e deterioração. Entretanto, poderíamos postular algo que nunca seja submetido a tais mudanças?

É evidente que qualquer coisa que possua as características da forma, da cor, do sabor e do som estará sujeito a toda espécie de mutação (化-huà) e, com o desenrolar progressivo das mudanças ao longo do tempo, sofrerá a sua completa aniquilação. Porém, podemos nos perguntar se haverá algo que escape desse processo destrutivo? Com efeito, na hipótese de existir algo que possa escapar disso, ele só poderá fazê-lo se puder ser transcendente a esse processo de mutações sem que seja destruído. Em outras palavras, terá de ser necessariamente imutável e imperecível. Como diz Liezi no início da Primeira Parte do seu Vazio Perfeito chamado Céu Auspicioso:

As coisas que são transmutadas jamais escapam da Mutação. Por isso, há sempre a Constante Geração e a Constante Mutação. Os fenômenos do mundo estão a todo instante sendo gerados e transmutados, seguindo a alternância dos Sopros Yin e Yang e das quatro estações, porém somente o Inengendrado permanece uno e idêntico consigo mesmo. Tal como o Imutável jamais se esgota com os seus movimentos infinitos de avanço e retorno, da mesma maneira, o Princípio do Caminho (Dao), em sua unidade, permanece inesgotável. Como diz o livro do Imperador Amarelo: O Espírito do Vale nunca morre. É a Fêmea Misteriosa. A porta da Fêmea Misteriosa é a raiz do Céu e da Terra. Incessante existência. Inesgotável eficácia. Por essa razão, aquilo que gera os seres jamais será gerado e aquilo que transmuta os seres jamais será transmutado.

生者不能不生, 化者不能不化。故常生常化。常生常化者, 无时不生,无时不化。阴阳尔,四时尔,不生者疑独,不化者往复。往复,其际不可终;疑独,其道不可穷。 《黄帝书》曰:「谷神不死,是谓玄牝。玄牝之门,是谓天地之根。绵绵若存,用之不勤。」故生物者不生,化物者不化。

Cf. Liezi, Vazio Perfeito, p.11. Minha tradução baseia-se no chinês antigo de Liezi e no chinês moderno de Zhuang Wan Shou (莊萬夀). O título em chinês é《列子讀本》(Lièzǐ dúběn). Taipei: Sanmingshuju, 2009.

É nesse momento que somos levados a pensar na noção taoista de Vida Imortal, cuja essência é representada pelo “Espírito do Vale que nunca morre”. O Espírito do Vale que nunca morre é o próprio Princípio do Dao que transmuta os seres sem ser jamais transmutado. É que na sua imortalidade absoluta essa quintessência resguarda em si a plenitude da vida infinita. Por meio dessa característica de imutabilidade do Espírito do Vale, somos levados a contemplar a presentificação da potência do Dao, força latente e infindável que transcende as nomeações, os rótulos, os sentidos e as limitações de nossa compreensão ordinária. Não é por outra razão que Liezi relembra essa imagem incorpórea e transcendente do Espírito do Vale já utilizada por Laozi para simbolizar a imutabilidade, pois o que é imutável só poderá ser espiritual, quintessencial, incorpóreo, informe, o que não implica necessariamente que seja inexistente, fictício ou abstrato. O Espírito do Vale é o Vazio, a saber, a potência incomensurável do Dao.

Nesse sentido, se é Espírito (神-shén), então é Informe ou Sem-Forma (无形-wúxíng). Aquilo que não possui forma é o próprio Vazio (无-wú) que simbolicamente é representado pelo centro do vale no meio das montanhas. Portanto, o Vazio é o Espírito do Vale, porque é só devido à sua presença que haverá a geração e o crescimento das plantas. Em outras palavras, a existência de cada ser só será possível se houver esse vazio-plenitude-de-potência, esse vazio de incessante existência, imorredouro e gerador de formas vivas. O Vazio não se refere a uma qualidade atribuída ao espaço físico-geográfico e tampouco a uma qualidade meramente abstrata. Trata-se de uma realidade experienciada em dimensão profunda. É por essa razão que esse Vazio não é negativo no sentido de falta e carência. Ao contrário, possui uma eficácia inesgotável, uma concretude de manifestação real que gera, nutre e sustenta a vida. (用之不勤(yòngzhībùqín). Leia o capítulo 6 do “Dao De Jing” na minha tradução, CHIU, 2017,p.18).

O paradoxal nessa metáfora é que tanto Liezi como Laozi não se referem a uma entidade empírico-material. É por isso que ambos nos dizem que é o Espírito do Vale, e não o Corpo do Vale, ou simplesmente o Vale. O Espírito é a quintessência absoluta e transcendente na sua natureza, e por isso mesmo, é o Vazio. Daí ser a máxima indeterminação, a plena ausência de limitações, mas, ao mesmo tempo, a reserva ilimitada de potência. É apenas sob esse modo de ser indeterminado que podemos conceber algo contendo em si a potência de transmutar sem ser abalado pelas transmutações que venha a desencadear no plano das manifestações fenomênicas. Portanto, esse Vazio ou Espírito do Vale é algo que permanece imutável e idêntico na sua condição inabalável, visto que carrega consigo a potência da eficácia vital e transformadora.

Nesse aspecto, Liezi reconhece o caráter de imutabilidade da potência vital que engendra e transforma os fenômenos, mas que de forma alguma é passível de ser modificado por qualquer deterioração. Embora haja mudanças e transitoriedades a todo momento, esse Princípio permanece sempre estável e constante. Embora esteja nesse mundo contingente repleto de impermanências, ele sempre conserva a sua identidade e unidade. No entanto, mesmo sendo imutável, ele nunca interrompe os movimentos múltiplos de sua produtividade dinâmica, as atividades de seu fluxo genésico e criador de transmutações. Daí por que abrigando em si a inesgotável eficácia de geração, ele seja Inengendrado (Liezi emprega a expressão不生者 (bùshēngzhě) que significa o “Não-gerado”, “Inengendrado”, “Incriado”.  Veja pág.10-11 do livro Vazio Perfeito na minha tradução, Mantra-2020), um princípio de potência acima do qual não existe outro princípio, uma vez que é a essência da Vitalidade Absoluta responsável pela manifestação dos diversos seres que nascem e morrem nesse mundo.

Trata-se da força do ilimitado (不可穷 (bùkěqióng). Cf. Veja pág.10-11 do Vazio Perfeito) que possui a potência de fazer vir à existência as diversas formas latentes do mundo imanifesto. É como uma mãe, uma Fêmea Misteriosa (Laozi no capítulo 6 do Dao De Jing exprime com a expressão玄牝  – xuánpìn), uma matriz energética virtual, uma fonte infinita que gera todas as criaturas, sempre onipresente, constante, nutrindo e alimentando todas as instâncias do mundo fenomênico. Por essa razão, Liezi nos diz ainda que é o Princípio de Autogeração e de Automutação (自生自化 (zìshēngzìhuà) é a formulação de Liezi) que tem a potência de gerar a si mesmo sem ser gerado por um outro. Em outras palavras, ele é autopoiético nesse sentido em que cria a si mesmo e aos outros fenômenos sem depender de nenhuma instância alheia. Daí o motivo pelo qual podemos chamá-lo de Autogerador, inteiramente autossuficiente, já que como potência absoluta criadora é independente, isento de quaisquer determinações de limite, nome e forma.

Ora, o mais paradoxal é que tal Princípio do Dao pode ser considerado tanto transcendente como imanente. Embora esteja continuamente presente em todas as coisas, ele transcende e escapa às nossas tentativas de defini-lo. Assim, devido ao seu aspecto de transcendência, nunca poderemos esgotar a compreensão de sua essência através de nossos órgãos sensoriais ou de nossa linguagem conceitual. Sendo independente e indestrutível na sua dimensão transcendente, ele é o Informe do qual se originaram todas as formas concretas do mundo.

“Vazio Perfeito”, com a tradução de Chiu Yi Chih e publicado pela Editora Mantra. Crédito: divulgação.

独立不改(dúlìbùgǎi) é a expressão que encontramos no capítulo 25 do “Dao De Jing” de Laozi, quando vemos que o Dao é solitário (independente) e indestrutível. O professor e filósofo Chen Gu Ying no seu livro de explicação, tradução e comentários ao “Dao De Jing” (YING, 2012, p.160) explica que essa expressão “independente e indestrutível” qualificando a essência do Dao refere-se, do ponto de vista filosófico, ao seu caráter absoluto/transcendente e à natureza de sua incessante existência (道的绝对性和永存性-dàodejuéduìxìnghéyǒngcúnxìng). Nesse caso, evidenciam-se as semelhanças entre Liezi e Laozi na medida em que ambos concebem o Princípio do Caminho como um Princípio Absoluto de contínua existência, livre de limitações e completamente independente. Já o Informe concebido por Liezi é a mesma expressão empregada por Laozi: 无形 (wúxíng). Veja Zhuang Wan Shou (2009, p.4) para o texto de Liezi e Chiu Yi Chih (2017, p. 106) para o texto de Laozi na expressão: “a grande imagem não possui forma”.

Ao escapar de quaisquer limitações formais, esse Dao Informe dificilmente será demarcado pelas categorias mentais de nossa construção intelectual e tampouco poderá ser completamente apreendido pelos nossos sentidos físicos. Isso traz uma implicação filosófica importantíssima para a compreensão da visão taoista. Em virtude de sua independência e de seu caráter de ser absolutamente ausente de determinação, esse Princípio jamais poderá ser fixado e delimitado por uma forma ou nome particular, e por isso, sua essência mesma consiste em ser uma incógnita inominável, uma Fêmea Misteriosa que se subtrai a todas as nossas capacidades de mensuração e racionalização. Essa caracterização incógnita inominável sublinha precisamente o aspecto transcendente do Dao em relação às limitações da linguagem. O inominável, ou seja, 无名 (wúmíng), aparece na expressão “Dao oculto e inominável” no capítulo 41 (minha tradução) e também no capítulo 1 do Dao De Jing em algumas traduções como as do Mario Sproviero (Editora Hedra).

É por isso que ele é o Vazio (道冲 (dàochōng), p. 14 da minha tradução do Dao De Jing, cap.4) o Abismo ancestral de todos os seres (渊兮似万物之宗 (yuānxīsìwànwùzhīzōng), idem, p.14 – cap.4), de cujas profundezas obscuras emerge toda a Existência. Com efeito, o Dao, sendo tão indistinto e insondável (惟恍惟惚 (wéihuǎngwéihū), idem, p. 54, cap.21), parece como se nem existisse no mundo. Apesar de ser o estado informe, a imagem do não-existente (无物之象 (wúwùzhīxiàng), idem, p. 36, cap.14), onde, ao confrontá-lo, não vemos seu rosto e, ao segui-lo, não vemos seu dorso (迎之不见其首,随之不见其后 (yíngzhībùjiànqíshǒu), idem, p.35, cap.14), ainda assim ele tem a potência transcendente de desdobrar-se nas inúmeras formas imanentes por meio da sua eficácia inesgotável.

O livro clássico “Dao De Jing”. de Laozi. Crédito; divulgação

Nesse sentido, ele não é apenas o Vazio como também é a Existência de todos os fenômenos. Tanto o Vazio (Transcendência) como a Existência (Imanência) constituem esse mesmo Princípio do Dao. Em outras palavras, o Dao possui essa ambivalência de ser a dimensão imanifesta e virtual da Essência, e a um só tempo, a dimensão manifesta e fenomênica da Existência. Todavia, se quisermos percebê-lo na sua imanência, precisamos nos desprender dos limites fixos de nossa identidade, assim como também dos hábitos e dos condicionamentos de nossa mente. Somente desse modo penetraremos pouco a pouco na vastidão de sua potência ilimitada e contemplaremos o devir imperceptível de sua existência.

Decerto, observamos um fenômeno ambiguamente extraordinário: possuindo uma face invisível e informe, o Dao nunca deixa de revelar também sua face concreta, imanente e visível. Num primeiro momento, ele pode ser o Caos Primordial onde todos os seres estavam misturados e ainda não tinham sido separados um do outro. (浑论者,言万物相浑论而未相离也  (húnlùnzhě, yánwànwùxiānghúnlùnérwèixiānglíyě). Cf. p.13 do Vazio Perfeito) Em sua condição de virtualidade insondável, ele nos parece ser oculto-ausente, pois, é olhado sem ser visto, escutado sem ser ouvido e tocado sem ser alcançado (Lemos o mesmo trecho 视之不见,听之不闻,循之不得 (shìzhībùxiàn, tīngzhībùwén, xúnzhībùdé) tanto no Vazio Perfeito, p.13) como no Dao De Jing (p.35).

Essa última frase de Liezi é uma citação do início do capítulo 14 do Dao De Jing de Laozi, o que só indica que ambos os mestres concordam a respeito da ambivalência ontológica do Princípio do Dao. Ou seja, poderemos apreendê-lo parcialmente com os nossos sentidos sensoriais, mas ainda assim ele continuará elusivo na sua opacidade, irredutível às nossas tentativas de capturá-lo em toda a sua inteireza. Todavia, ele jamais permanece confinado na sua virtualidade imanifesta, pois, segundo o comentador antigo e filósofo neo-taoista Wang Bi (226-249 d.C.) da Escola do Mistério, embora pareça difuso e indeterminável, ele ainda manifesta sua eficácia, criando, nutrindo e sustentando todo o universo fenomênico.

O filósofo neo-taoista Wang Bi (226-249 d.C.) da Escola do Mistério. Crédito: reprodução da internet.

Mesmo que não possamos analisá-lo, conhecê-lo e mensurá-lo devido à sua indeterminação, o Dao mantém-se perpetuamente vivo e onipresente a ponto de ser o sustentador de cada aparição concreta. Disso não temos consciência, porém ele permanece desde os primórdios sendo o princípio ancestral e a lei eterna de toda criação. É na sua condição de indeterminibilidade (无状无象, 无声无响, 故能无所不通, 无所不往。(wúzhuàngwúxiàng, wúshēngwúxiǎng, gùnéngwúsuǒbùtōng, wúsuǒbùwǎng). Assim exprime-se Wang Bi no seu comentário ao capítulo 14 do Dao De Jing . Veja o livro chinês “A sabedoria do Dao De Jing” (道德经的智慧-Dàodé jīng de zhìhuì,2016, p.46) com comentários de Wang Bi e Su Zhe) e de onipresença que o Dao manifesta sua ambivalência.

É evidente que estamos circunscritos ao plano sensível e somos limitados pelas nossas capacidades de percepção tanto como pelas nossas faculdades mentais. É por isso que nesse processo de vivência do Dao, precisamos aprender a vê-lo, considerando seus paradoxos, seus aspectos contraditórios e suas ambiguidades inefáveis. Dentro dessa tessitura complexa e ambígua, parece que se torna difícil a compreensão integrada dos aspectos múltiplos e díspares. É que estamos mergulhados numa realidade fragmentada, parcializada e dividida. A Unidade (一-yī) que Liezi propõe é a Unidade da complementaridade dos opostos. No Dao, as oposições, ao invés de se excluírem, se complementam. O dia e a noite como fenômenos mutuamente interdependentes tornam-se indissociáveis. É por esse motivo que se torna tão espinhosa a compreensão da essência da Unidade.

Assim, o Dao é essa Unidade, essa instância unificante que inclui os Sopros Yin e Yang, a escuridão e a luz, o frio e o calor. É essa Unidade Absoluta que subjaz a todas as manifestações. Por mais dissemelhantes que sejam entre si, todas as manifestações divergem apenas na sua superfície, na sua manifestação fenomênica. Ainda que se oponham e se diferenciem entre si, elas são suscetíveis à coexistência e integração numa Unidade mais profunda. Não há nada que não seja abarcado e unificado pelo Dao.

O livro chinês “A sabedoria do Dao De Jing” (道德经的智慧-Dàodé jīng de zhìhuì,2016, p.46) com comentários de Wang Bi e Su Zhe. Crédito: http://filosofiataoista.blogspot.com/

É nesse sentido que no capítulo 39 do “Dao De Jing”, Laozi enfatiza que desde os primórdios alcança-se a Unidade (昔之得一者 (xīzhīdéyīzhě). Cf. p.98, minha tradução do Dao De Jing) e todos os seres alcançando a Unidade, tornam-se viventes (万物得一以生 (wànwùdéyīyǐshēng).Idem, p.98). No capítulo 22, Laozi também observa que o Sábio abraça a Unidade e torna-se o modelo do mundo (圣人抱一,为天下式 (shèngrénbàoyī, wéitiānxiàshì). Idem, p.56-57). Ou seja, o Princípio da Unidade passa a ser a essência do caminho taoísta, a fonte originária e suprema da qual emergiram todos os seres e para a qual retornarão inevitavelmente.

De acordo com Laozi, o processo de reintegração à Unidade Suprema do Dao é concebido como o caminho de regresso à origem. Como diz o mestre Laozi, contemplo a manifestação e o retorno de todos os seres./ no florescer em profusão, cada ser retorna à sua raiz. (万物并作,吾以观复. 夫物芸芸,各复归其根  (wànwùbìngzuò, wúyǐguānfù, fúwùyúnyún, gèfùguīqígēn). Idem, p.40). O Dao é visto como a raiz profunda de uma árvore da qual nasceram todas as manifestações fenomênicas. Na analogia empregada por Laozi, o Dao é a raiz no sentido de ser essa essência ancestral, anterior e primeira (não no sentido cronológico, mas ontológico), essa mãe primordial que se constitui como a Unidade de todo o processo de criação. Como Unidade Transcendente-Imanente, é o princípio virtual/real de manifestação de todos os fenômenos.

É por essa razão que ela é a raiz e as suas manifestações são como ramos e galhos de uma árvore. No entanto, tal princípio originário não é concebido de maneira teleológica no sentido de uma meta, um fim a ser atingido, mas, ao contrário, é visto como a Vida (命 (mìng). Idem, p. 40) ou Destino para o qual todos os seres retornarão como para a sua morada essencial, originária, constante e imortal. Na medida em que retornamos à ela, nos reintegramos à Vida no sentido da Constância do Dao e, portanto, nos reconectamos com a dimensão sagrada e iluminada da existência vital.

Retornar à raiz é o silêncio. Diz-se que é o Retorno ao Destino. Retorno ao Destino é Constância. Conhecer a Constância é Iluminação. (Idem., p. 41)

归根曰静,是谓复命. 复命曰常. 知常曰明.

Com efeito, já somos o Dao em essência, essa raiz primordial根-gēn)que, segundo o filósofo moderno Wang Bang Xiong, é a fonte originária (根源-gēnyuán), a própria fonte da vida:

“[是谓復命],就從這一回歸生命根土的一體和諧的平静説 [復命],也就是朗現生命的美好。” (“[Shìwèifùmìng], jiùcóngzhèyīhuíguīshēngmìnggēntǔdìyītǐhéxiédepíngjìngshuō [fùmìng], yějiùshìlǎngxiàn shēngmìngdìměihǎo) – Traduzindo: “A expressão ‘Diz-se que é o Retorno ao Destino’ significa que retornamos ao terreno da vida a partir do regresso ao Silêncio da Unidade Harmônica, ou seja, significa que manifestamos a excelência da vida” (XIONG, 2016,p.84)

É a força do sagrado que está constantemente presente em diversos mitos e simbolismos religiosos. Ela já está presente em nós. A imagem da raiz e da árvore nos remete à ontologia vital e não podemos deixar de lembrar daquilo que falava Mircea Eliade a respeito do simbolismo do Centro no seu clássico “O sagrado e o profano”. O “Centro do Mundo” é essa raiz profunda, a passagem de um mundo a outro através da instauração de um eixo de ruptura atravessado por um pilar cósmico ou por uma Árvore Cósmica.

Esse pilar, esse eixo do mundo (Axis mundi) ou “Poste do Céu” constituía-se simbolicamente como uma rotura na homogeneidade do espaço, como uma espécie de abertura que permitia ao homem das sociedades arcaicas retornar à essência do sagrado transcendente. O fato de o “Centro do Mundo” ser representado também por outras imagens como escada, montanha e cipós nos permite entrever a possibilidade de comunicação entre a dimensão sagrada-transcendente e a dimensão profana-imanente. É devido a tal abertura verticalizante que surgem linhas comunicantes de um lado a outro, tornando possível a experiência da Iluminação (明-míng).

Nesse sentido, o que significa habitar no eixo cósmico senão, em última instância, retornar à fonte da vida originária? Morando no coração do cosmos, o homem arcaico é capaz de rememorar e reviver aquilo que se sucedeu no tempo da criação do mundo. Ele percebe que, fincando suas raízes no centro, poderá “imitar” a ação arquetípica divina responsável pela criação e fundação do universo. Com efeito, esse “umbigo cósmico” no qual se situava o homem arcaico passa a ser uma brecha que se abre no meio das contingências profanas, uma zona de abertura às outras modalidades de existência. Assim, sendo precisamente a imago mundi (imagem do mundo), essa raiz que é a nossa morada originária revela a potência sagrada da essência vital. Ao enraizar-se nesse centro, o ser humano aproxima-se da dimensão mítica dos deuses e abre-se a outros fluxos e devires sagrados.

Do ponto de vista simbólico, isso significa que ele satisfaz sua sede ontológica ao reviver o tempo divino/cosmogônico quando os deuses e os seres semidivinos haviam gerado o universo. Tal ação simbólica é arquetípica porque revela a essência do sagrado por meio de ritos que não são senão reatualizações ou representificações da essência da vida. Ora, se retornarmos ao Espírito do Vale e à nossa raiz sagrada tal como nos sugerem Liezi e Laozi, reatualizaremos a potência da nossa própria existência.

É assim que experimentamos a hierofania do regresso, da regeneração e da revivescência do sagrado por meio de ritos relacionados à cosmogonia. Retornando ao Tempo de origem, não somente experimentamos a hierofania, a irrupção do sagrado no mundo como também restabelecemos nossa ligação com o próprio Ser do mundo no sentido da ontofania, isto é, da manifestação do Ser. É por isso que recontando o mito cosmogônico – a história sagrada da criação do mundo – e reatualizando-o por meio de ritos e festas sagradas, o homem arcaico retorna à sua raiz, ou seja, retorna à sua verdadeira condição ontológica.

Nesse retorno ao tempo originário (illo tempore), ele rompe com a linearidade cronológica, ou seja, com a irreversibilidade profana do tempo histórico. Através dessa sacralização, revive existencialmente a fecundidade da vida a partir da dimensão da transcendência. Pois, na medida em que reatualizamos a essência sagrada da vida, transcendemos o espaço profano e viajamos pelos níveis cósmicos entre o Céu e a Terra. É nessa hierofania sacralizante do tempo e do espaço que nos unificamos com o Dao Constante e nos regeneramos por meio da iluminação sagrada.

(…) desejar restabelecer o Tempo da origem é desejar não apenas reencontrar a presença dos deuses, mas também recuperar o Mundo forte, recente e puro, tal como era in illo tempore. É ao mesmo tempo sede do sagrado e nostalgia do Ser. No plano existencial, esta experiência traduz-se pela certeza de poder recomeçar periodicamente a vida com o máximo de “sorte”. É, com efeito, não somente uma visão otimista da existência, mas também uma adesão total ao Ser. (Cf. Mircea Eliade. O Sagrado e o Profano, Editora Martins Fontes, 2018, p.84)

Esse desejo de retornar ao Ser Originário é mais do que nostalgia do tempo paradisíaco. É a manifestação genuína de nossa condição ontológica. Por isso, Laozi exprime-se numa linguagem mítica baseada no tempo cíclico e não-linear: há um princípio agindo como mãe do mundo. / quando se conhece a mãe, conhecem-se os filhos. / quando se conhecem os filhos, retorna-se para preservar a mãe. (天下有始,以为天下母. 即得其母, 以知其子. 即知其子, 复守其母. (tiānxiàyǒushǐ, yǐwéi tiānxiàmǔ. jìdéqímǔ, yǐzhīqízǐ. jìzhīqízǐ, fùshǒuqímǔ). Idem, p.128) Nessa passagem, a mãe é o próprio Dao e os seus filhos são as manifestações fenomênicas e múltiplas que se originaram da Unidade do Dao. Nessa analogia, se há o conhecimento da Unidade Transcendente (a mãe), haverá conhecimento das suas Multiplicidades Imanentes (os filhos).

Tanto Laozi como Liezi não separam o domínio transcendente daquilo que seria da ordem do sensível. Não há separação entre o transcendente e o mundano, ainda que haja em certo sentido a ideia de transcendência do Princípio da Unidade. Liezi não poderia ser mais claro e elucidativo nesse sentido. Quando descreve a formação cosmológica do universo, ele enfatiza que, apesar de ocorrer o desdobramento das multiplicidades no plano sensível material, todas as coisas do mundo retornarão ao Princípio da Unidade, ou seja, não haveria uma completa dissociação entre o Uno e o Múltiplo:

Informe e ilimitado, o Princípio da Mutação por meio das suas transformações gerou a Suprema Polaridade que é o próprio Princípio de Unidade. O Princípio de Unidade se transformou gerando os Sete Princípios, a saber, a união dos Sopros Yin e Yang e dos cinco elementos como madeira, fogo, terra, metal e água. Os Sete Princípios novamente se transformaram e se desdobraram até os Nove Princípios. Os Nove Princípios, sendo o desenvolvimento do Sopro Primordial, pereceram e retornaram à Suprema Polaridade, ou seja, ao estado do Princípio de Unidade que é a origem das transformações dos fenômenos materiais. (Veja pág.10-11 do livro Vazio Perfeito)

易无形埒,易变而为一,一变而为七,七变而为九. 九变者,穷也,乃复变而为一. 一者,形变之始也. 清轻者上为天,浊重者下为地,冲和气者为人;故天地含精,万物化生.

Sabemos que o Princípio da Unidade, apesar de permanecer integralmente  inalterável, ao mesmo tempo, se infiltra na multiplicidade das diferenças. Longe de negar a face concreta dos fenômenos com as suas diversas e riquíssimas variações, o Princípio da Unidade se transforma e se desdobra de maneira plurívoca em todas as formas do mundo. Daí por que o Sábio, compreendendo esse grande paradoxo, se unifica e se harmoniza com a dimensão originária da Unidade, considerando tanto a sua transcendência como a sua imanência.

Desse modo, sua visão permite-lhe contemplar as múltiplas manifestações fenomênicas tanto como os meandros latentes e invisíveis da Unidade Indiferenciada. Em outras palavras, alcançando a Unidade na Multiplicidade e a Multiplicidade na Unidade, ele não somente será capaz de absorver a dimensão transcendente do Princípio Informe, como também não deixará de assimilar a concretude visível das multiplicidades reais. Durante o processo de cultivo do Caminho, é possível expandirmos os limites de nossa percepção e, assim como o Sábio, alcançarmos a compreensão desse maravilhoso paradoxo: unificar o que é perceptível no plano dos sentidos com aquilo que é invisível, transcendente e inefável.

Assim, experienciando os múltiplos níveis de desdobramento desse Princípio Ilimitado, perceberemos que ele nunca esteve distante e apartado de nossa percepção. São nossos juízos limitados, nossas percepções condicionadas, nossas ideias subjetivas e parciais que nos impedem de vê-lo. Ampliando nossa percepção à luz da visão da totalidade, ficaremos sensíveis às variações, às gradações, aos nuances e inumeráveis fios de tessitura que se entrelaçam dentro da Unidade Indiferenciada. Isso porque há uma coexistência entre Unidade e Multiplicidade, pois o Princípio do Dao é simultaneamente uno e múltiplo.

É na contemplação dessa interdependência que transparece a singularidade da existência sábia. Daí por que seja preciso compreender a manifestação concreta do devir da existência sem deixar de contemplar o aspecto invisível da Unidade Indiferenciada e Transcendente. Na visão do Dao, o transcendente e o mundano, o belo e o feio, o bem e o mal e tantas outras oposições dicotomizadas são apenas meros produtos resultantes da interferência da mente humana. Assim, sem nos apegarmos a um dos polos da dualidade, reconheceremos a interrelação entre esses opostos e, ao invés de nos prendermos a um ponto de vista parcial, estaremos em busca de uma compreensão mais integralizadora, evitando a artificialidade dos juízos e das crenças limitadas.

Os homens desconhecem que tais oposições como o bem e o mal, o certo e o errado, o benefício e o prejuízo são somente aspectos mutuamente dependentes e relativos um ao outro. Laozi já dizia que a Existência e o Vazio geram-se um pelo outro; o difícil e o fácil se completam-se; o longo e o curto comparam-se; o alto e o baixo dependem-se; o som e a voz harmonizam-se; o antes e o depois seguem um ao outro. (有无相生; 难易想成; 长短相形; 高下相倾; 音声相和; 前后相随. (yǒuwúxiāngshēng; yǒuwúxiāng shēng; chángduǎnxiāngxíng; gāoxiàxiāngqīng; yīnshēngxiānghé; qiánhòuxiāngsuí). Idem, p.10)

Ou seja, um lado só existe em função do outro numa relação de mútua interdependência. Assim, quanto mais compreendermos a complementaridade dos opostos, mais estaremos precavidos contra as preocupações excessivamente supérfluas, pois são elas que, em última instância, desencadeiam uma série de apegos prejudiciais ao equilíbrio de nossa mente e corpo. Como o Sábio não se apodera de uma posição fixa, não se apega às posturas unilaterais. Pois o próprio ato de sustentar uma posição desencadeia em nossa mente um esforço, uma persistência em defender um ponto de vista, implicando sempre num apego que se empenha arduamente em preservar a nossa visão, que por sua própria natureza é parcial e suscetível de erro.

A atitude sábia é não nos envolvermos com essa espécie de ilusão, já que, para manter esse ponto de vista, somos induzidos a disputar com argumentações, o que requer de nós grande dispêndio de energia. Isso porque na medida em que permanecemos mais apegados, mais desgastamos nossa vitalidade energética. Ora, no fluxo dos acontecimentos, as oposições nunca permanecem imutáveis. Ao contrário, elas se interagem e até mesmo se transformam uma na outra, o que mostra claramente que seria equivocado nos apegarmos exclusivamente a um lado do fenômeno. Sem nos restringirmos a tais juízos parciais, como poderíamos agir de maneira menos contenciosa e com uma atitude mais condizente com a visão da Totalidade? Como sugere Laozi:

O Sábio age através da Não-Ação e pratica o ensinamento sem falar. Assim, todos os seres atuam sem nenhuma intervenção, geram sem se apoderar e realizam sem depender. Cumprida a obra, o Sãbio não se apega. Não havendo apego, nada se perde. (Veja página 10 do Dao De Jing, na minha tradução)

是以圣人处无为之事,行不言之教. 万物作而不辞,生而不有,为而不恃,功成而弗居. 夫唯弗居,是以不去.

Nesse aspecto, Laozi critica os pontos de vista subjetivos provocados pelo nosso apego a determinadas ideias. Tais apegos são construídos pelas nossas crenças e juízos cuja natureza é sempre humana, relativa e circunscrita aos caprichos pessoais. É por isso que se o Sábio não fala (不言-buyán), isto é, não disputa verbal e mentalmente, ele está atuando a partir da Não-Ação (无为-wúwéi). Significa que remove o apego às posições dualistas e evita a artificialidade das ações que só causam aflições. Assim, se pudermos tal como o Sábio cultivar o estado de Não-Ação alcançando a dimensão da não-interferência mental, realizaremos as coisas sem que sejamos limitados pelas nossas crenças e, sobretudo, sem aquela postura de obstinação.

Então, o que seria agir pela Não-Ação? É simplesmente evitar a ação arbitrária e a possessividade decorrente do desejo de querer ocupar e dominar uma dada posição. Assim, a Não-Ação não implica na inércia, na passividade, no conformismo de nada fazer. Não se trata de uma renúncia à ação. Ao contrário, a Não-Ação tal como Laozi e Liezi a concebem é simplesmente uma ação baseada na Naturalidade (自然–zìrán) que é completamente distinta da Ação Forçosa (有为-yǒuwéi), visto que é uma ação isenta de artificialidades e que, portanto, não é orientada pelo desejo de intervir intencionalmente.

Portanto, trata-se de uma ação de desapego, isto é, um modo de agir apropriado e necessário que não se agarra aos resultados nem prende-se às expectativas. Ora, esse modo de agir considera cada coisa em sua esfera específica e harmoniza-se com o fluxo natural. Por isso, quando pensamos na ideia de “natural” ou “naturalidade”, referimos ao que Laozi e Liezi concebem como o agir próprio de cada ser em conformidade com sua essência sem que ocorra nenhuma ação de interferência. Daí por que seja tão essencial cultivarmos essa dimensão da Naturalidade para estarmos comungando com a essência do Dao.

Aqui a Naturalidade ou Natureza no sentido da totalidade do Dao – não meramente o que chamamos de ambiência natural ou espaço físico estudado e determinado pela visão científica – opera na imanência da eficácia do Dao, e isso quer dizer que aquilo que é natural atua e funciona de maneira eficaz sem interferência de nenhuma ação humana e por isso mesmo ela se chama zìrán, ou seja, “zì” quer dizer “si mesmo” e “rán” significa “assim tal como é”. Em outras palavras, quando as coisas são por si mesmas assim como são, elas se manifestam seguindo de acordo com a Naturalidade (顺其自然–shùnqízìrán).

Portanto, se cada ser possui sua natureza própria, isso implica que seu processo de crescimento, desenvolvimento, maturação e decaimento segue o fluxo constante da ordem natural e seria arbitrário/artificial qualquer intervenção ou esforço que desvirtue tal natureza. Talvez para os ocidentais seja difícil compreender que algo possa “ser” ou “agir” sem nenhuma intervenção ou intencionalidade. Dentro de nosso paradigma ocidental, afirmar que as coisas atuam por si mesmas pareceria um contrassenso absoluto, mas, no Taoismo, e sobretudo, na visão de Liezi e Laozi isso é perfeitamente concebível.

Como observa Laozi no capítulo 3, agindo na Não-Ação, não há nada que seja desgovernado. Ou seja, há uma plena compreensão de que a Não-Ação, ao invés de ser uma negação do agir ou de qualquer outra atividade, nada mais é do que a própria eficácia do Dao. Por isso, ao invés de olharmos negativamente pensando que ela é nada fazer, devemos compreender que é a plena manifestação do Dao na sua efetivação concreta. Na Quarta Parte do Vazio Perfeito, há uma fala esclarecedora de Guan Yin a esse respeito:

Se você não abrigar em si mesmo nenhum apego (无居-wújū), todas as coisas se manifestarão. Ao se mover, seja como a água. Ao permanecer em silêncio (静–jìng), seja como um espelho. Ao corresponder ao mundo, seja como um eco. Esse Caminho (道-dào) segue a existência das coisas. Embora todas as coisas possam se desviar do Caminho, esse último nunca se afasta delas. Desejar seguir o Caminho por meio da visão, audição, força física ou inteligência não é apropriado. Embora seja visto diante de nós, o Caminho pode repentinamente emergir por detrás. Contudo, ao ser utilizado, ele preencherá todo espaço. E, quando for abandonado, jamais saberemos o seu destino.

Assim, jamais poderá ser alcançado pela mente nem ser alcançado pela Não-Mente (无心-wúxīn). Somente poderá alcançá-lo aquele que, em silêncio, realizar a sua Natureza Originária (性–xìng). Conhecer e esquecer as emoções, agindo pela Não-Ação (无为-wúwéi), eis o que é o Verdadeiro Saber (真知–zhēnzhī) e o Verdadeiro Poder (真能–zhēnnéng). Assim, desabrochando-se o Não-Saber (无知-wúzhī), como seria possível se apegar às emoções? Desabrochando-se o Não-Poder, como seria possível agir forçosamente? Contudo, seria inapropriado agir pela Não-Ação se assemelhando a um montão de terra ou à poeira acumulada de silêncio mórbido.” (Leia a página 135 do Vazio Perfeito)

Desse modo, agindo pela Não-Ação e compreendendo o Princípio do Caminho, o Sábio realiza as ações e se adequa de maneira flexível à cada situação. Percebe que, apesar de existirem diversas circunstâncias contrárias e heterogêneas em constante mutação como sucesso/fracasso, vida/morte, ganho/perda, todos acontecimentos possuem sua razão de ser, seu “dever” intrínseco, já que cada parte dotada de sua natureza apropriada (宜–yì) (Na página 15 do Vazio Perfeito, Liezi diz que “quem ensina não pode violar a natureza apropriada de cada ser…”) manifesta-se e atua em conformidade com sua função dentro do Todo. Decerto, o Sábio já não atua pela mente nem age pela NãoMente, porque transcendeu as oposições dualistas do juízo ordinário.

Essa visão lúcida e englobante ultrapassa as crenças mentais, os condicionamentos, os hábitos de pensamento, as noções subjetivas, visto que se trata de uma vivência profunda na imanência da Totalidade. Por isso, longe de ser fatalista ou negativista, a atitude do Sábio se mostra plenamente natural, harmônica e condizente com a Ordem Genuína (理–lǐ) (Na página 199, Liezi afirma: “Nutrir confiança na Ordem Genuína é não distinguir entre ser e não ser.”. Ou seja, busca-se aqui a transcendência da visão dualista que está baseada em distinções criadas pela mente humana.) das coisas, ou seja, ele possui uma compreensão ampla dos acontecimentos do mundo e, por isso, atua de acordo com a Naturalidade, aceitando e respeitando a Natureza Originária (性–xìng) (Na mesma página, Liezi ainda reforça a ideia de superação da visão dualista que decorre de nossas visões parciais e subjetivas: “Nutrir confiança na Natureza é não ser guiado pela paz e pelo perigo.”) de todo processo dinâmico da realidade.

Como comenta Wang Bi, as oposições dualistas são produtos da mente humana na medida em que ela julga e conhece os fenômenos de acordo com os seus juízos discriminativos. A mente distingue, separa e classifica. Com essa operação, ela acaba criando uma escala de valores e tende a se apegar a um dos aspectos da realidade. Nesse sentido, quanto mais cultivarmos o desapego, mais deixaremos a nossa possessividade, e por isso, evitaremos a artificialidade de nossas ações cuja tendência é sempre sobrevalorizar um dos lados em detrimento do outro. De maneira análoga, o comentador célebre taoista-budista Su Zhe (1039-1112 d.C.) (Veja o livro chinês A sabedoria do Dao De Jing” (道德经的智慧-Dàodé jīng de zhìhuì, 2016, p.7) com comentários de Wang Bi e Su Zhe.) esclarece que os homens geralmente desconhecem que tais oposições como bem/mal, belo/feio são apenas mutuamente dependentes e relativos um ao outro, uma vez que o conceito de “bem” só se sustenta porque existe o seu contrário.

Quando reconheço o bem, é porque também reconheço e identifico a existência do mal. Um só existe em relação ao outro. Não existe o conceito de bem isoladamente. Assim o bem não existe em si e por si. Da mesma maneira, o alto e o baixo, o longo e o curto, a Existência e o Vazio e as outras oposições. Portanto, não seria conveniente nos fixarmos num dos extremos se realmente compreendêssemos que os opostos não se excluem, mas se complementam entre si. Daí por que seria mais plausível que nos distanciemos daquela visão parcializante (偏见-piānjiàn) e, consequentemente, do espírito de rivalidade que essa última suscita em nossas mentes. Se cultivarmos o estado de Não-Ação que incorpora e aceita as oposições, estaremos agindo com a sabedoria do desapego.

Quando Laozi diz que o sábio age pela Não-Ação, isso significa que ele age sem aquela artificialidade de querer intervir no fluxo natural das coisas. No seu desprendimento, ele se desapega do próprio ato de ocupar-se (居-jū) de um ponto de vista no sentido de defender com teimosia uma determinada crença. Através desse desapego, ele diminui o apego excessivo da linguagem discursiva provocada pelo fluxo dos pensamentos limitantes. Na leitura de Chen Gu Ying, libertando-se das distinções dualísticas e removendo a interferência mental (干预-gānyù), ele realiza plenamente as ações de acordo com o princípio da Naturalidade.

Na medida em que evita as ações forçosas, desapega-se daquela possessividade causada pela mente, possessividade que se caracteriza pelo desejo de dominação. É que, na visão taoista, o Dao age – assim como a água que beneficia todos os seres sem disputa – através da eficácia da Naturalidade, atuando sem apego e possessividade: o próprio Dao é a própria Não-Ação que se desdobra na manifestação das coisas sem interferência excessiva.

Portanto, estamos diante de um desafio: como podemos nos desapegar dos condicionamentos limitantes que nos impedem de ver a complexidade e a unidade da existência do Dao? O Dao é o princípio da Unidade que engloba todas as oposições e todas as multiplicidades do mundo. Por isso, desprendendo-nos de certos juízos parciais, podemos retornar à visão da Unidade, compreendendo com mais Naturalidade as contradições dos fenômenos da vida, visto que o problema não está numa determinada experiência aprazível da beleza, mas no apego da mente humana a uma determinada ideia de “beleza”, fixando-se nessa identificação subjetiva, arbitrária e artificial.

Chiu Yi Chih (邱奕智) (clique aqui)
Professor de filosofia chinesa clássica no Centro Cultural de Taipei (São Paulo) e em cursos online. É chinês nascido em Taiwan e naturalizado brasileiro. Filósofo, tradutor, poeta, mestre em Filosofia Antiga Grega (USP), graduado em Letras Clássicas (Grego Clássico-Português/USP) e praticante de Tai-Chi. Publicou um livro de poesia “Naufrágios” (Multifoco-2011), um livro de ensaios filósoficos e poemas “Metacorporeidade” (Córrego-2016), “Caminho taoísta” (2021) e a tradução dos clássicos “Dao De Jing” (Mantra-2017), “Vazio Perfeito” de Liezi e “A arte da guerra” de Sun Tzu em versão bilíngue comentada. Em breve publicará o seu novo livro de poesia “Osso Vazio”. Atualmente vem pesquisando as obras de Zhuangzi, os Sutras do Budismo Chan e dando cursos de taoísmo online.

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por Anders Noren

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