
Falar sobre a “alma russa” é um desafio, principalmente quando quem escreve não é russo. Os elementos que compõem a “alma” dos russos são tantos que é impossível traçar todos num breve artigo como este. Neste sentido, com imensa admiração pela cultura russa, vamos falar de alguns tópicos. A configuração moderna que o país Rússia tem hoje é consequência de todo um processo histórico de batalhas e conquistas. O povo russo formou-se da confluência de diversos povos, como os eslavos e teve também influência dos povos vizinhos. Então, as tradições diversas foram assimiladas e ao mesmo tempo deram vozes as expressões genuinamente da Rússia.
A alma para este autora é aquilo que expressa a vida, que sustenta a existência. Ao falar do povo russo, a primeira palavra que nos vem à cabeça é tradição. São costumes, lendas, dizeres que sobreviveram aos séculos de lutas. Ela resistiu a destruição provocada pelas guerras e permite, através dos provérbios passados de geração em geração, identificar elementos que passam pelo viés da educação, da religião, do folclore… enfim, costumes da vida diária do povo camponês que teve que vencer o frio intenso, a escassez de alimentos, a vida em locais afastados cercados de florestas e vida selvagem. O povo russo foi perspicaz ao absorver culturas estrangeiras.
Quando se vê os grandes monumentos e prédios modernos pelas grandes cidades da Rússia hoje, é preciso lembrar que, antes de surgirem os grandes arranha-céus, palácios e catedrais feitos de argamassa e pedra, a tradição arquitetônica russa surge primeiramente em construções feitas de madeira. Para sobreviver ao inverno rigoroso, os russos tornaram-se mestres em construções de madeira, que ao mesmo tempo protegia e aquecia. Na Rússia antiga, havia floresta em abundância, portanto era um material barato e fácil de conseguir. Os antigos construtores russos erguiam prédios de madeira sem a utilização de pregos. Os pregos poderiam enferrujar devido à umidade, além de serem caros. Por isso, eles trabalhavam a madeira de forma a fazer encaixes perfeitos. Catedrais inteiras forma erguidas sem usar um único prego. Além dessa habilidade, consideravam a beleza. Um exemplo disso pode ser visto na ilha de “Kiji” (Кижи).
As casas dos camponeses também eram feitas de madeira. Indo além da questão arquitetônica, é preciso compreender a importância da casa, do lar russo. É um local considerado sagrado e permeado de regras e misticismos que são tão peculiares que podem parecer estranhas para a cultura ocidental. Não se deve esquecer que a cultura eslava permeia a cultura russa e muitos misticismos russos tem origem nessa antiguidade. Na decoração externa das casas russas de madeira é possível ver uma moldura entalhada nas janelas “nalitnik” (наличник). Nestes entalhes costumam ser feitas as imagens de: sol, pássaro e leão. E isto tem o seguinte significado: o sol aquece o lar; o pássaro é símbolo da sorte e o leão guarda a casa.
A casa russa é o lugar mais importante. A primeira sociedade vai ter na existência do lar o sentido da sua vida. E dentro da casa russa o “fogão/forno de lenha” (печь) é o elemento tradicional mais significativo. Pertinho do fogão de lenha dormiam os velhos e as crianças, para aquecerem-se do frio. Nos provérbios o “fogão/forno à lenha” é considerado a “mãe da pátria”, porque ajudou a esquentar e a preparar os alimentos para os russos. Tradicionalmente, o “fogão/forno à lenha” ficava ou à esquerda ou à direita da entrada da casa, em um canto. No canto oposto onde estava o fogão, ficava o lugar de trabalho manual da dona da casa. A rotina da casa girava em torno do fogão.

Era costume nas famílias de camponeses russos saírem para trabalhar sem tomar o café da manhã. Para comer era preciso começar a trabalhar primeiro. Sentar à mesa e servir-se com comida também obedecia algumas regras. Primeiro sentava o pai, o dono da casa, depois o filho mais velho, os mais novos e por último a mãe, a dona da casa. Essas regras de etiqueta tradicionais eram entendidas como expressão de respeito, talvez muitas delas foram compiladas num manual que circulou na antiguidade russa chamado “domostrói” (домострой). Se alguma criança desobedecesse a ordem era dito para ela: “saiba seu lugar”.
Segundo algumas fontes históricas russas, o Domostroi foi percebido pela sociedade russa de formas diversas, dependendo da época, do século. Formulado no século 16, foi um conjunto de regras domésticas, instruções e conselhos relativos a vários assuntos religiosos, sociais, domésticos e familiares da sociedade russa. Por anos, o Domostroi foi reverenciado como um conjunto útil de regras sociais e culturais. Entre os valores centrais do Domostroi estão a obediência e a submissão a Deus, ao czar e à Igreja Russa. No entanto, com o passar do tempo e as mudanças nas relações sociais e nos costumes da sociedade russa, ela foi percebido como um livro ultrapassado e bastante conservador, tendo de ser readaptado para os diferentes tempos por alguns e, posteriormente, descartado por outros. Seu autor é desconhecido, mas a versão mais difundida foi editada pelo arcipreste Silvester, um influente conselheiro de Ivan IV.

Outros elementos bem tradicionais são o pão e o sal. Ao chegar numa casa o visitante saudava o dono da casa assim: “Pão e sal para esta casa”. Esta saudação significava desejo de riqueza para a casa que se visitava. Esta saudação de “pão e sal” (хлеб и соль) persiste até os dias atuais. O pão traz o simbolismo do sagrado, não devendo ser desperdiçado nem uma migalha. E o sal, por ser um produto caro (antigamente), era considerado sinônimo de hospitalidade, quando oferecido ao visitante. Nas paredes ficavam os ícones, símbolos ortodoxos. Nas prateleiras as panelas, nos baús ficavam as roupas e sob a mesa ficavam o samovar. Toalhas bordadas e roupas de festa também ficavam guardadas nos baús. Mas a casa russa não era composta somente de elementos materiais. O subjetivismo tinha grande importância tanto que os provérbios russos falam sobre o “espírito da casa”.


Toda casa tem um “damavoí” (домовой), que simboliza a alma da casa russa. Esta figura folclórica representa o espírito que paira na casa e geralmente parece com o dono da casa. Frequentemente é um espírito bom que guarda a casa e ajuda na rotina. Mas se o “damovói” fica nervoso pode trazer mau agouro para a casa. No caso de mudança de casa o dono da casa precisa persuadir o “damovói” a mudar junto com ele.
Às vezes é colocado na casa nova um sapato de palha para que nele fosse transportada a alma da casa anterior. Para dizer que não era mais para o “damovói” ficar na casa era lançado lixo no fogo, porque o lugar do “damovói” era no canto atrás do fogão. Ao ver o lixo no fogo ele entenderia que não era mais para ficar ali.
O “domovoi” representava o espírito do dono da casa. Sua esposa, a dona da casa, era chamada de “kikimoroi” (кикиморой). Este era um espírito muito complicado que afetava as noites de sono, favorecia a bagunça na cozinha, estragava as costuras…Os provérbios diziam que onde havia uma “kikimoroi” não era possível fazer uma camisa. Era usual ter amuletos para proteger-se de espíritos ruins. Para evitar o mal-estar da “kikimoroi”, por exemplo, era usado um amuleto que era uma pedra com um furo no meio.
A “kikimoroi” atacada prejudicava o bom andamento do galinheiro. As galinhas ficavam nervosas e não colocavam ovos. E numa época onde os ovos eram importante fonte de alimento, ter o galinheiro perturbado não era nada bom. É possível fazer um paralelo deste espírito feminino com o que se chama hoje de TPM, ou seja, quando a dona da casa estava nervosa a situação da casa era prejudicada.

Outro personagem da mitologia pagã é o “vadianoi” (водианой), um velho sapo com pernas compridas e uma barba verde. Ele vivia nas águas, sempre disfarçado pela vegetação e também conseguia transformar-se em cachorro, gato, cavalo, gado… tudo com o objetivo de disfarçar sua presença. Ele era muito temido e costumava aparecer pela noite. Por isso, os camponeses evitavam sair à noite para evitar encontrar essa criatura. É possível entender esta criatura da água como uma justificativa para todos os acontecimentos que aconteciam “com água”, por exemplo, afogamentos, enchentes…
Quando uma pessoa era esperada em algum lugar e demorava para chegar, os camponeses perguntavam: Para onde o “lexi” (леший) te carregou?? De acordo com o folclore popular, o “lexi” era uma criatura da floresta parecendo ao mesmo tempo uma pessoa ou um animal. Ao ser visto, ele imediatamente muda sua aparência. Por isso, não é possível vê-lo. Assim como o “vadianoi” o “lexi” também grita e solta ruídos assustadores. Esses gritos deixam a pessoa perturbada e ela esquece o caminho de casa e perde-se na floresta. Para proteger-se do “lexi” era preciso vestir a roupa ao contrário. Aqui é possível entender o medo de perder-se na floresta.
Certamente que não se esgota aqui a pretensão de falar sobre a alma russa. Quando se fala em Rússia sempre nos lembramos de matrioskas, de balé Bolshoi, da Catedral de São Basílio, da literartura e das conquistas do período soviético… portanto, são inúmeros elementos culturais e históricos que compõem a “alma”, que fazem parte da identidade de um povo e é impossível esgotar essas características em texto apenas. Aguarde, pois logo voltaremos com mais curiosidades sobre o tema.
Andréa Suely Germanovix
Estudante de língua e cultura russa
Referência: “Отзвуки былых времен: из истории русской бытовой культуры”, Т.И. Мелентьева, Русский язык курсы, 2012
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