
Por anos tenta-se promover uma imagem da sociedade japonesa desprovida, ou que contém poucos traços negativos. Criou-se uma caracterização de quase perfeição, onde os problemas não estão vinculados às questões sobre desvio de caráter, moral, ou problemas estruturais sistêmicos, decorrentes de falhas como disputa de poder, ganância por lucro e etc. Afinal, por exemplo, se algum japonês rouba, ao ser descoberto, ele comete um honroso suicídio… dizem muitos por aí. O Brasil é casa para a maior comunidade de japoneses e seus descendentes fora do Japão, de forma que muitas destas imagens promovidas ganham conotações mais profundas, tendo grande impacto na sociedade brasileira que, apesar de também ter seus preconceitos com relação aos asiáticos, ainda reproduz um discurso de que os japoneses do Brasil são uma espécie de minoria exemplar, modelo. Uma lógica que em si já é repleta de traços pré-concebidos…
Mas, tal imagem não poderia estar mais distante da realidade. A sociedade japonesa, como muitas outras, também tem sérios problemas de corrupção e racismo estrutural. Seus cidadãos podem ser tão pervertidos quanto o de qualquer outra nação e, mesmo as chamadas grandes tradições deste país milenar, que muitos adoram salientar estarem baseadas em um código de honra samurai, também apresentam uma série de vícios sociais problemáticos. E, nada melhor que um filme sobre a Yakuza, como são denominados os grupos pertencentes à famosa organização criminosa transnacional originária do Japão, mais antiga que a própria Cosa Nostra italiana (XIX), com fundação que data do século XVII, para desfazer estas construções ilusórias. “The Last of the Wolves 孤狼の血 Level 2” (Korou no Chi Level 2, “O último dos lobos”, em tradução livre), dirigido por Shiraishi Kazuya, de forma nada sutil, apresenta o quadro acima descrito.

Para os brasileiros que vivem em Nova Iorque, ou em outro estado dos EUA, este filme será exibido nos dias 15 e 16 de agosto, durante o Festival de Cinema Asiático de Nova Iorque 2021 (New York Asian Film Festival) (clique aqui), que ocorre de forma presencial e online (6-22 de agosto). Já para os demais espectadores no Brasil e fora dele, vale a chance de conferir esta história na primeira oportunidade possível.
Sua trama é bastante ousada e um pouco diversa da maioria dos filmes sobre a mundialmente conhecida organização criminosa que, por sinal, é atuante no Brasil também. O filme é uma sequência do premiado “The Blood of the Wolves” (“O sangue dos lobos”), lançado em 2018 e protagonizado pelo grande Yakusho Koji que viveu na trama o detetive Ogami Shogo, natural de Hiroshima. Uma figura policial japonesa nada convencional, que tem vínculos com a máfia e que não se preocupa em atuar fora das regras normais do jogo.
Para os que ainda não assistiram à primeira obra, vamos apenas mencionar, que, no ano de 1988, Shogo recebe em sua unidade investigativa o jovem Shūichi Hioka (Tori Matsuzaka). Durante o desenrolar do enredo, Hioka enfrenta gangues de bandidos implacáveis, enquanto se debate com os dilemas apresentados pela atuação de seu chefe. Porém, mais do que qualquer outra questão, estão expostos de forma direta e indireta os vínculos da polícia japonesa e do Estado com o crime organizado. A sequência inicia em 1991, em que Hioka assume o papel de liderança no processo investigativo e acaba aderindo à forma rebelde de seu mentor. Afinal, ele tem a dura tarefa de promover a paz entre as gangues de Odani e Itako que se encontram em guerra.
Baseado no romance de 2015 de Yuzuki Yuko, o conflito central da sequência está entre Hioka e seu oponente Uebayashi Shigehiro (Suzuki Ryohei), um gangster da Itako que sai da prisão, no intuito de destruir seus inimigos da Odani, em clara vingança ao chefe morto pelos oponentes. Totalmente oposto à figura do criminoso honrado, Uebayashi atua de forma fria e cruel com as suas vítimas, sentindo o prazer de torturar e causar dor ao próximo.

Trata-se de uma mente bastante doentia, lesada por um passado de abusos constante durante a infância, vivida em uma família completamente desestruturada. Aos que já assistiram “Graveyard of Honor” (Cemitério de Honra, livre tradução, 1975), de Kinji Fukasaku, diretor de cinema e roteirista que ganhou destaque com a Nova Onda Japonesa e seu remake realizado por Takashi Miike em 2002, é possível ver referências destas obras em “The Last of Wolves”. Alguns críticos de cinema como Mark Schilling, especialista em cinema japonês, também mencionam a série “Battles Without Honor e Humanity” (1973-74), de Fukasaku, que aborda as guerras de gangues em Hiroshima.
A jovem dupla principal que encena o conflito policial versus gangster, Tori Matsuzaka e Suzuki Ryohei, ambos com experiência suficiente e já tendo trabalhado com uma série de diretores da indústria japonesa, demonstram ampla capacidade de incorporar a psicologia de seus personagens, sem exageros. O personagem de Matsuzaka está diante de um desafio de grandes proporções, o que resulta em diversos momentos de fraqueza, dúvidas, despreparo e surpresas perante a maldade e a forma inconstante e única do adversário, levando a um certo desespero muitas vezes.
Já Ryohei consegue convencer com a perversidade de um criminoso que é, por mais psicótico que seja, bastante emocional. Nele está um Japão que poucos conhecem, ou que se tenta constantemente esconder, o Japão marginalizado, que sofre com a pobreza e as consequências dela: o alcoolismo, a violência perversa contra menores, nada muito diferente do que se testemunha e faz notícia no terceiro mundo.
O elenco de apoio traz nomes promissores e de peso, provenientes de diferentes safras de gerações de atores japoneses. O papel deles, diferentemente de outros filmes cuja existência desses pode ocorrer de forma solta, sem qualquer vínculo, é essencial para o desfecho e o andar da narrativa, especialmente entre a luta psicológica que Hioka trava com Uebayashi. Existem momentos cômicos, assim como de demonstração de ternura entre os personagens, porém não significa que estejam desprovidos de segundas intenções. As cenas de violência e de combate corporal são realizadas de forma bastante crua, sem muitos floreios ficcionais, ou cortes na edição.
Perverso, realista e provocador, “The Last of the Wolves” expõe as vísceras do mundo do crime, e que, diferentemente, do que se pensa, exibe nas entrelinhas uma realidade que poucos conseguem assimilar: a ausência de qualquer conduta honrosa e de que o sistema, o status quo, está intrinsicamente articulado e entrelaçado com o mundo dito ilegal, dos bandidos, em um nível que já não se consegue existir um sem o outro, quase como uma sombra. Por fim, o filme apresenta uma mensagem interessante de que em tempos de crise social, o combate que poucos ainda ousam travar com os criminosos mais ferozes só é possível por meios pouco convencionais e que, normalmente, podem resultar em uma explosão perversa de violência.
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