Bem vindos à Era do Espírito de Xangai!

Crédito: http://portuguese.people.com.cn/

O fatídico ano de 2001 é conhecido no ocidente por dois grandes eventos, o Atentado de 11 de Setembro em Nova Iorque e a invasão do Afeganistão. Devido a isso, o nascimento da Organização para Cooperação de Xangai (OCX), o mais importante acontecimento na Ásia daquele ano é pouco lembrado, mesmo nos presentes dias. Um dos princípios desta organização presente na Carta de Fundação naquele período era o: ’’Desejo de contribuir conjuntamente para o fortalecimento da paz e a garantia da segurança e estabilidade na região (Ásia Central), em um ambiente de desenvolvimento da multipolaridade política e da globalização econômica e da informação.’’

Duas décadas depois, os Estados Unidos não apenas foram incapazes de vencer os Talibãs no Afeganistão, como de maneira cinematográfica, tornaram boa parte dos países da região, contrários a suas posições políticas de qualquer tipo. A própria outrora poderosa Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) perdeu sua força política e mesmo coesão. Não por acaso um dos lemas da nova doutrina de guerra da OTAN aprovada em 2020 seja: OTAN 2030- Unida por Uma Nova Era. E o que aconteceu com a OCX neste período?

Os seis membros iniciais, Rússia, Cazaquistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Uzbequistão e China, já são oito permanentes com a entrada de Paquistão e Índia em 2015. Afeganistão, Bielorrússia, Irã e Mongólia, ganharam assento como países observadores, e Armênia, Azerbaijão, Camboja, Nepal, Sri Lanka e Turquia tornaram-se parceiros de diálogo. Ou seja, de um bloco de países que compartilham fronteiras na Ásia Central, a OCX tornou-se um ator geopolítico de natureza continental e importância mundial. Ator que não tem a tendência de competir com a OTAN, mas de suplantá-la enquanto uma organização de parceria estratégica de caráter político e diplomático. Isto é, muito além do caráter militar!

Fotografia da base aérea de Bagram evacuada pelos EUA. Crédito: https://www.businessinsider.com/

O Afeganistão é o fato sintomático disso, pois quando os Estados Unidos resolveram invadir militarmente o país e estabelecer uma base permanente enquanto caçava o terrorista Osama Bin-Laden, toda a OTAN acabou refém desta aventura. Reféns por responsabilidade como países membros, que era o caso de boa parte dos europeus; ou por interesses geopolíticos, como é o caso dos turcos e britânicos. No entanto, quando ficou claro que permanecer no Afeganistão era custoso, e que os Talibãs já tinham forças e condições políticas e militares de expulsar as tropas da OTAN, a decisão de fuga foi tomada de maneira unilateral por parte dos Estados Unidos.

Este não é um detalhe pequeno, pois a vergonhosa saída da base de Bagram, a poucos quilômetros de Kabul, capital do Afeganistão, foi efetivada sem nenhum aviso para os aliados e mesmo o governo afegão. O tão aclamado forte e coeso exército afegão, segundo o presidente estadunidense Joe Biden, já se dissolve com a deserção e rendição das tropas nas fronteiras e principais cidades provinciais. Que tipo de organização multilateral e de cooperação trabalha desta forma? Que países colaborariam com este tipo de organização?

É aí que o papel da OCX é fundamental para a ocupação deste campo e posição de cooperação e multilateralismo nas últimas duas décadas. O combate coordenado ao terrorismo na Ásia Central trouxe importantes frutos, onde grupos sediados no Uzbequistão, Quirguistão, Tadjiquistão, Turcomenistão e Xinjiang, que causaram diversos distúrbios durante as décadas de 1990 e 2000, perderam espaço. Combate que não apenas passa por ampliação de inteligência e força ostensiva, mas sobretudo por projetos econômicos de integração, como é o caso da União Econômica Euroasiática (UEE), capitaneada pela Rússia, e as Novas Rotas da Seda, liderada pela China, cujo ponto de encontro é a Ásia Central e o Oriente Médio.

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O desenvolvimento regional da Ásia Central, e sua integração em ambos os projetos passa pela pacificação e estabilidade. Todos os situados pontos necessitam do combate à pobreza e desigualdade social de décadas com a criação de formas de rentabilidade alternativas ao tráfico de drogas e entrada nas fileiras do radicalismo islâmico. Portanto, a OCX trata a questão da segurança de maneira abrangente, em diferentes níveis e esferas, buscando na cooperação multilateral a saída para os problemas.

O melhor modelo desta política é a Região Autônoma do Xinjiang na China, que desde 1999 tem sido alvo de uma série de megaprojetos de investimentos que a tornam um gigantesco complexo econômico petroquímico e tecnológico. Outras ’’vitrines de sucesso’’, Cazaquistão com várias cidades piloto, mesmo o próprio Uzbequistão e Tadjiquistão, que modificaram completamente o modelo urbano soviético de Tashkent e Dushambe, respectivas capitais dos países citados. O próprio Paquistão na última década enxergou o gigantismo deste projeto e passa a estar cada vez está mais implicado- e por isso vem sendo agredido com cada vez mais constância por grupos terroristas financiados pelos Estados Unidos.

Mapa das Rotas da Seda na Ásia. Crédito: https://www.onthemosway.eu

Os Talibãs têm profundo interesse no projeto das Novas Rotas da Seda, pois realizaram uma transição desde uma organização terrorista, composta por aquilo que o especialista Ramez Maalouf define como “Esquadrões da Morte do Oriente Médio’’ para um movimento político conservador, porém que atua como força libertadora da ocupação estadunidense. Mudança tão rápida quanto importante, pois reflete o novo ambiente geopolítico que emerge na Ásia Central como um todo, mas que também se espalha com força pelo Oriente Médio e o próprio continente africano.

A cultura do ópio e seu tráfico, organizadas pelas atuais autoridades afegãs em cooperação com as agências de inteligência e membros do exército estadunidense, é rejeitada e denunciada pelos Talibãs. A confusão e instabilidade causada por traficantes e cada vez mais grupos armados estrangeiros como o Daesh- Estado Islâmico- dentro do país desde a invasão estadunidense tem causado crescente apoio da população do interior do país. Além do mais, a ’’grama verde’’ que cresce na vizinhança- Xinjiang, Uzbequistão e outros países-, é um importante modelo alternativo para a construção de um novo Estado Afegão oferecido por Rússia e China. Podem os Talibãs recusarem uma oferta dessas?

Delegação do Talibã em Moscou durante entrevista coletiva para mídias internacionais. Crédito: https://www.mei.edu

Este espírito de diálogo e cooperação multilateral tornou-se realidade, e hoje já abrange boa parte do continente asiático. Ele foi enfatizado por Xi Jinping durante a celebração recente do 20º aniversário do Fórum de Boao no presente ano. A terminologia dessa ambiciosa política externa chinesa, e que abrange a Rússia, é Comunidade de Destino Comum com Futuro Compartilhado. Paz e prosperidade com o desenvolvimento e cooperação conjunta em infraestrutura, vacinas, tecnologia, energia e outros. Tudo o que os Estados Unidos são hoje incapazes de oferecer. Há exemplos disso em andamento.

Embora não implicada diretamente na Guerra Civil Síria, a OCX tem forte presença ali, pois a Rússia contribui de maneira militar e humanitária para manter a frágil estabilidade do país, enquanto a China ampliou sua presença econômica, solidificada com os acordos assinados no sábado, 17 de julho, que oficializam a entrada síria nas Rotas da Seda. Um outro detalhe fundamental sobre isso é que os principais temas sobre a Síria discutem-se hoje em Nur-Sultan (Antiga Astana), capital modelo do Cazaquistão, e o país está na fila daqueles que desejam o ingresso na OCX, sendo já membro observador da UEE.

Outro exemplo, que representa um passo ousado, mas necessário no futuro, é a resolução da questão da Península Coreana. A contínua ocupação militar dos Estados Unidos do sul da Coreia permanece como uma ameaça a paz e estabilidade na região, problema reconhecido por parte da sociedade sul-coreana, e que é presente no atual diálogo trilateral entre Vladimir Putin, Xi Jinping e Kim Jong Un. Nunca é demais relembrar que o líder socialista coreano apenas viajou como chefe de Estado para o Vietnã, China e Rússia. Em 2019, Kim Jong Un esteve pessoalmente no anual Fórum Econômico do Extremo Oriente, realizado na cidade de Vladvostock, reunindo diversos líderes políticos e empresários do mundo asiático.

Organizações como a Associação dos Estados do Sudeste Asiático (ASEAN), Liga Árabe e a própria União Africana já sinalizam interesses de cooperar em assuntos como projetos infraestruturais, segurança e cooperação multilateral. A partir de setembro Egito e Arábia Saudita- aliados históricos dos Estados Unidos e Grã Bretanha no Oriente Médio- serão países parceiros de diálogo da organização. Ambos detentores de ambiciosos projetos modelados a partir das vitrines de sucesso na Ásia Central, como é o caso da cidade futurista no Egito que substituirá Cairo como capital do país.

Note-se que um dos grandes problemas presentes no continente africano é o terrorismo estimulado pelos Estados Unidos e países europeus, que resultam em graves ambientes de instabilidade, como existe hoje no norte do Moçambique e na região subsaariana. Rússia e China estão cada vez mais presentes e atuantes no continente africano em suas respectivas especialidades diante desses problemas. Enquanto isso, os exemplos de sucesso, como os citados dentro da Ásia Central, não irão faltar, e esvaziarão o espaço de ação da OTAN que cada vez mais irá se restringir ao Hemisfério Ocidental (Continente Americano) e os países do mundo anglo-saxão (Grã Bretanha e países satélites na Europa).

Chanceleres de países membros da OCX em Dushambe. Crédito: https://i2.wp.com

Mais do que uma derrota de caráter militar, ideológica e moral, o Afeganistão é o ponto de inflexão da crise dos Estados Unidos e da OTAN no século XXI. Após 20 anos de ocupação do país, Washington mostra que não possui nada a oferecer para qualquer que seja a entidade soberana existente no mundo. Apenas violência militar e rapinagem do nível mais criminoso possível como contrabando de recursos minerais e tráfico de drogas são a oferta. O atual chanceler russo, Sergei Lavrov, resume esta diplomacia estadunidense há alguns anos como incapaz de cumprir qualquer tipo de acordo.

Ainda que sedados por um ópio midiático, cedo ou tarde, como ocorreu durante a pandemia, o público ocidental, e daqueles que vivem sobre suas botas como é o caso brasileiro, irão/terão que acordar. Grande parte dos povos do Sul-Global já percebem isso e juntam-se ao espírito histórico do tempo presente. A Comunidade de Destino comum com Futuro Compartilhado é a chave que abre a porta de passagem para o fim da Era unipolar hegemônica ocidental/OTAN capitaneada pelos Estados Unidos. Bem vindos e Bem vindas à Era do Espírito de Xangai!

Referências:

CGTN. Wang Yi calls for closer SCO community with shared future. 2021. Disponível em: https://news.cgtn.com/news/2021-06-15/Wang-Yi-calls-for-closer-SCO-community-with-shared-future-117qQrsyBP2/index.html.

ESCOBAR, Pepe. Digam alô ao Diplo Talibã. In: Brasil 247. 2021. Disponível em: https://www.brasil247.com/blog/digam-alo-ao-diplo-taliba.

_______. Russia-China advance Asian roadmap for Afghanistan. In: Asian Times. 2021. Disponível em: https://asiatimes.com/2021/07/russia-china-advance-asian-roadmap-for-afghanistan/.

MORETTI, Anthony. Reasons to celebrate anniversary of Shanghai Cooperation Organization. In: CGTN. 2021. Disponível em: https://news.cgtn.com/news/2021-06-15/Reasons-to-celebrate-anniversary-of-Shanghai-Cooperation-Organization-117960ZMcMw/index.html.

THE ASTANA TIMES. 20 years of Shanghai Cooperation Organization: a View from Kazakhstan. 2021. Disponível em: https://astanatimes.com/2021/06/20-years-of-shanghai-cooperation-organization-a-view-from-kazakhstan/.

Matérias e documentários:

COTIDIANO NEWS. Pelo Mundo Ásia Especial: Afeganistão o novo Vietnã dos EUA? 2021

CGTN. SCO Trilogy: Is the SCO the NATO of the East? 2018

VALDAI CLUB. Dvizhuchkhie sily v rossisko-kitaiysikh otnosheniyakh (Matrizes das Relações Sino-Russas). 2021

 

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por Anders Noren

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