
A região conhecida como Chifre da África é composta pelos países membros da Autoridade Intergovernamental para o Desenvolvimento (IGAD), cujos membros são: Djibuti, Eritréia, Etiópia, Quênia, Somália, Sudão, Sudão do Sul e Uganda. Uma das características desta região, segundo o autor Cardoso (2016), é a alta incidência de guerra interestatais e o alto grau de penetração de potências extrarregionais na agenda de segurança regional, com alto grau de polarização. Pode afirmar-se que tanto a incidência de guerras, quanto a penetração de potências extrarregionais justificam-se pela localização geográfica e geopolítica da região, o que a transformou em uma área de disputa e de interesse internacional das grandes potências (Estados Unidos, China Rússia, França, Inglaterra).
Entre as guerras interestatais que marcaram a região no final do século XX início do XXI, pode-se citar as rivalidades entre Etiópia e Eritreia (1998-2000); Etiópia- Somália, iniciado durante a Segunda Guerra Mundial (1940), na esteira dos movimentos de independência e de autodeterminação dos povos e vai marcar a região até 2009. Obviamente, estas rivalidades são históricas assim como a cobiça da região por potências europeias (Inglaterra, França, Itália). Por isto, entender o atual conflito da Etiópia requer uma análise histórica além de considerações geopolíticas.
Do ponto de vista histórico, é muito importante lembrar que a Etiópia foi um dos únicos Estados africanos que não foi colonizado pelos europeus, além de ser um dos mais antigos Estados cristãos (desde do século IV depois do cristo). Segundo Berhe (2008), no século passado, nem a “política de integração nacional” do imperador Hailé Sélassié (1930-1974), nem o lema “Etiópia Primeiro” da junta militar comunista Derg (1974-1991), que misturou o nacionalismo etíope com o marxismo, ajudaram a deter a maré crescente de rebelião etnonacionalista.

O país foi confrontado por movimentos armados com identificação étnico-nacionais e regionais em Tigray entre 1942 e 1943; na região de Bale entre 1963 e 1968 e Gojjam em 1967, além da Eritreia que reivindicava sua independência desde da década de 1960. Portanto, como bem observa Cardoso (2016), a dinâmica regional de segurança, verificada ao longo período da Guerra Fria e após o fim da bipolaridade, reconfigurou o mapa do continente africano com a criação de dois novos Estados na região, Eritréia (1993) e Sudão do Sul (2011). Mas além disso, esta dinâmica vai fortemente enfraquecer o Estado Etíope, enquanto incentiva as lutas separatistas como as reivindicadas pela Frente de Libertação do Tigrai (Tigray People’s Liberation Front).
No entanto, vale lembrar que este desmembramento, é o resultado de séculos de tentativas e agressões externas ao país, que, até então, conseguiu defender-se e preservar sua unidade nacional e sua grandeza somente com a ajuda de “Deus”, como mostra a afirmação do imperador Menelik II, em 1893 segundo a qual: “a Etiópia não precisa de ninguém: ela estende as mãos para Deus” (BOHEN, 2010). Preocupado com a preservação do território etíope, Menelik, em uma carta enviada a rainha da Inglaterra, Vitória, em 1891, definia primeiramente as fronteiras que eram então as da Etiópia e – expressando ambições expansionistas pessoais – declarava a intenção de restabelecer as antigas fronteiras da Etiópia até Cartum e o lago Niza, aí incluídos todos os territórios de Galã, afirma Bohen.
A Libéria, outro Estado africano independente da época, compartilhava a mesma percepção principalmente no que tange às ambições das potências externas sobre o continente. Neste sentido segundo o autor supracitado, o presidente da Libéria, Arthur Barclay, teria declarado em 1907 que:
“Nunca antes se fez tão evidente que vivemos numa época de uma nova diplomacia, a diplomacia que não leva em conta princípios fundamentais do direito internacional, do direito natural e da equidade quando se trata de pequenas nações. As grandes potências reúnem-se e partilham os pequenos Estados sem os consultar; e estes ficam sem defesa, já que não possuem exército, nem marinha que possam responder à força com a força.
Com a África diante do desafio colonial, não tenho a menor intenção de ser um espectador indiferente, caso ocorra a potências distantes dividir a África, pois a Etiópia há quatorze séculos tem sido uma ilha cristã num mar de pagãos. Dado que o Todo-Poderoso até agora tem protegido a Etiópia, tenho a esperança de que continuará a protegê-la e a engrandecê-la e não penso sequer um instante que Ele permita que a Etiópia seja dividida entre outros Estados.
Antigamente, as fronteiras da Etiópia eram o mar. Não tendo recorrido à força, nem recebido ajuda dos cristãos, nossas fronteiras marítimas caíram em mãos dos muçulmanos. Não abrigamos hoje a pretensão de recuperá-las pela força, mas esperamos que as potências cristãs, inspiradas por nosso Salvador, Jesus Cristo, as devolvam a nós ou nos concedam pelo menos alguns pontos de acesso ao mar“, (BOHEN, 2010, p. 304).
Esta longa citação mostra a longa duração do conflito etíope e, principalmente, salienta o fato que há muito tempo forças internas e externas tentam fragmentar, dividir e enfraquecer a Etiópia. Isto se deve basicamente a importância civilizacional da região (Nubia, Egito, Etiópia), que são de alguma forma o berço da humanidade, da civilização e da globalização (DIOP, 1955; CHANDA, 2011).
Em relação às rivalidades, pode-se destacar conflitos e guerras envolvendo atores locais como a Etiópia, Somália, Eritreia, Sudão e estrangeiros, a exemplo de França, Inglaterra, Itália e mais recentemente Estados Unidos e China, que supostamente estão na região para combater a pirataria. A importância geoeconômica e geopolítica da região, a presença dos piratas que ameaçam a segurança do comercio internacional e alta incidência de conflitos nesta área justificariam a presença de bases militares das potências ocidentais (EUA, França), mas também desde 2017 da China.

En soma, o movimento pelo “direito à autodeterminação” liderado pela Frente de Liberação do Povo do Tigrai começou nas colinas do oeste de Tigrai (BERHE, 2008). Segundo este autor, a origem desse movimento não foi espontânea, nem pelo ato de alguns membros descontentes da elite, mas po fatores objetivos e subjetivos bem fundamentados que deram origem a isso.
Portanto, é um conflito, como tantas outras guerras africanas, que pode e deve ser compreendido a partir da apreensão dos processos históricos de longa duração, mas também desde dos recentes processos de formação do Estado e das medidas de poder que os acompanharam, marginalizando o povo de Tigrai e sua elite. Considerando que Tigrai foi o centro de poder e influência na evolução do Estado Etíope, sua elite política utiliza-se da mobilização étnica para capturá-lo.
Quais os elementos geopolíticos no atual conflito etíope?
A atual guerra da Etiópia, equivalente à grande maioria dos conflitos africanos, pode ser caracterizada como doméstica, pois ela surge da rivalidade interna das elites do poder. Contudo, ela também é internacionalizada, devido a fatores geopolíticos que vão desde de revalorização da geopolítica do Mar Vermelho, passando pelos novos interesses dos Estados do Golfo em busca de hegemonia no Chifre da África à “investida dos impérios” em termos de patrocínios internacionais (ROLAN, 2018).
Do ponto de vista interno, o atual conflito etíope envolvendo a região do Tigrai, nada mais é que a continuação de outros gerados pelo processo de formação e de gestão do país pelas elites, principalmente militar, que governaram a Etiópia desde a década de 1970. Portanto, pode-se afirmar que se trata, de certa forma, da continuação da Guerra iniciada pela Frente de Libertação do Povo Tigrai (TPLF) contra os sucessivos governos do comitê militar (Dergue) etíopes que chegou ao poder em 1975, através da considerada única revolução que a África moderna já vivenciou (CLAPHAM, 2001).
Nilton Cardoso (2016) argumenta que a Revolução Etíope de 1974 teve transformações profundas na estrutura social, econômica e política interna do país, bem como importante impacto regional e sistêmico, apesar da mesma acontecer em plena Guerra Fria e logo depois da crise do petróleo de 1973. Estes dois últimos eventos influenciaram o início e a prolongação do conflito (1975-1991), que é interrompido somente no fim da Guerra Fria com a derrubada do regime militar e a tomada do poder em Addis Abeba, capital do país (BERHE, 2008).

Data 12 de setembro de 1974 – 4 de junho de 1991. Crédito: Wikipedia.
Desde então, a Etiópia foi governada por uma coalizão de partidos/grupos liderados pela Frente de Libertação do Povo Tigrai, que vale lembrar chegou ao poder graças à colaboração com as forças da Eritreia. Durante os trinta anos que a TPLF esteve no comando do Estado foram marcados, paradoxalmente, pela ausência de liberdade e um aumento vertiginoso da corrupção no país, gerando grandes frustrações na população Etíope. Ocorreram manifestações antigovernamentais neste período, que culminam no pedido de demissão do premiê Hailemariam, em fevereiro de 2018.
A chegada do novo premiê, Ahmed Abiy, consagra a perda de influência do TPLF no país. Segundo Roland (2018), ao assumir o poder, Abiy tinham como obsessão marginalizar o TLPLF, já que sabia o peso do movimento nos corredores de todos os ministérios, no serviços de inteligência e na polícia. Portanto, o movimento que vinha comandando o país há três década, de repente, está à margem da tomada de decisão, e muitos dos seus membros são acusados, processados judicialmente por corrupção.
O grupo vê-se obrigado a tonar-se oposição e, principalmente, volta às bases históricas do Tigrai, para recompor as suas forças políticas e reconquistar a confiança e a legitimidade popular. Em 2020, devido à pandemia do COVID 19, as autoridades federais decidiram postergar as eleições nacionais, estendendo o mandato dos governadores e prefeitos contra a vontade dos membros da Frente de Liberação do povo de Tigrai, que consideraram a decisão inconstitucional e decidiram organizar sua própria eleição regional em setembro. Assim, Abiy declara tal medida ilegal e decide intervir militarmente.
Em termos geopolíticos não se pode negar o valor e a importância da região para as grandes potências ocidentais (Inglaterra, França, Itália), que historicamente buscaram estabelecer domínio na região, além de controlar e enfraquecer o milenário Estado etíope. A Rússia, que durante a Guerra Fria, como parte da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), aproximou-se da Etiópia e de outros países do continente africano, para posteriormente afastar-se com o desmatelamento da URSS, atulamente vem acelerando seu retorno ao continente através da celebração de acordos na área de defesa. Especificamente, tal cooperação baseia-se na venda de armas, equipamento militar, fornecimento de conhecimentos especializados russos nos domínios marítimo e espacial, o emprego de empresas paramilitares privadas e a formação das forças armadas locais (DUSOULIER, 2019) .
Outros elementos que podem ser considerados do ponto de vista regional e internacional são eclosão de crises como a Primavera Árabe em 2011 e a Crise do Golfo em 2017, que afetaram fortemente a região do Chifre da África. Em relação e esta última, Roland (2018), afirma que afetou profundamente os países do outro lado do Mar Vermelho, fazendo com que a região do Chifre da Africa reviva o que se poderia chamar de um “ remake” da Guerra Fria. Segundo este autor, a proliferação de crises internas, ecoa o anuncio da tomada dos portos da região pelas potências do golfo. Ou seja, além da presença das potências europeias, estadunidense e russa, temos uma ingerência dos países do golfo (Arábia Saudita, Irã, Turquia, Qatar), o que aumenta a militarização da política regional e reflete um desejo de redesenhar as áreas de influência, reforça Roland.
Por fim, e não menos importante, temos a presença chinesa na região, com a inauguração da primeira base militar do país fora do seu território em 2017, o que aumenta as tenções e as disputas de poder na região. Segundo os analistas (ROLAN, 2018; BERHE, 2008), a consolidação de uma presença militar no Djibuti, primeiro constitui uma ruptura fundamental com os princípios que guiaram a política externa chinesa no continente africano até então. Esta presença foi justificada pela necessidade de manter um dispositivo marítimo contra a pirataria; securitizar os cidadãos, assim como as exportações chinesas na zona e proteger a região pela importância do Mar Vermelho para a construção da Nova Rota da Seda.
Em resumo
A atual crise na Etiópia pode ser compreendida de forma resumida como sendo a continuação do histórico problema da formação, consolidação e gestão do atual Estado da Etiópia. Isto significa que ele é a manifestação de rivalidade interna protagonizada pelas elites do poder. No entanto, a exemplo de outros casos na África, o conflito etíope também tem uma dimensão regional e principalmente internacional. Regionalmente, pode-se perceber os interesses tantos de Estados vizinhos, como de potências regionais, a exemplo dos países do Golfo (Irã, Turquia, Qatar, Arábia Saudita), que desde das crises recentes buscaram influenciar tanto o Chifre da África, quanto o continente africano como um todo.
Considera-se ainda mais relevante a influência dos atores internacionais pelos diversos motivos: busca de mercados, controle de pontos estratégicos como os portos da região do Chifre, garantir a segurança dos fluxos comerciais, assim como o abastecimento de matérias e recursos energéticos como o petróleo. Enfim, se as causas iniciais da guerra são locais, a importância geopolítica, geoestratégica e geoeconômica da região, que influencia as forças internas em combate, tem um peso muito grande na intensificação e no prolongamento desta situação, assim como no seu possível alastramento para países vizinhos.
Mamadou Alpha Diallo
Doutor em Estudos Estratégicos Internacionais, docente da UNILA e pesquisador do Grupo sobre Tríplice Aliança (GTF/UNILA)
Bibliografía
BERHE, A. (2008). A political history of the Tigray People’s Liberation Front (1975-1991): Revolt, ideology and mobilisation in Ethiopia. Amsterdam.
BOHEN, A. A. (2010). A África sob dominação colonial. Brasilia: UNESCO.
CARDOSO, N. C. (Jul/Dez de 2016). CHEGURANÇA REGIONAL NO CHIFRE DA ÁFRICA: Conflitos, Agendas e Ameaças. Revista Brasileira de Estudos Africanos-RBEA, 1(2), 137-172.
CHANDA, N. (2011). SEM FRONTEIRA: Os comerciantes, missionarios, aventureiros e soldados que moldaram a globalização. Record: Rio de Janeiro.
CLAPHAM, C. (2001). From Guerrillas to Government: The Eritrean Peoples Liberation. Oxford: : James Currey – Athens, OH: Ohio University Press.
DIOP, C. A. (1955). A ORIGEM AFRICANA DA CIVILIZAÇÃO Mito ou Realidade. Paris: Presence Africaine.
Diop, C. A. (1960). L´Unité Culturelle en Afrique Noire. Paris: Presence Africaine,.
DUSOULIER, A. (2019). Le « retour » de la Russie en Afrique subsaharienne : sécurité et défense au service de la politique étrangère de Vladimir Poutine. Bruxelle: Institut royal supérieur de défense.
ROLAN, M. (2018). Mutations Géopoliques et Rivalités d´État: La corne de l´Afrique prise dans la crise du Golfe. Paris: SciencesPo, Centre de Recherche Internationales.
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