
Ao longo de mais de cinco séculos vem constituindo-se a civilização brasileira. Um processo ainda inacabado, permeado de violências e contradições, como todo grande capítulo da história humana. Mas também de criação própria, de um povo que teima em inovar, que não lhe apetece a repetição, a mesmice. Nós queremos sempre o novo, o inédito. Somente por meio das maiores atrocidades e perversidades consegue-se dominar gente de tamanho brio e criatividade.
Assim foi e assim é, das caravelas e engenhos, aos autoritarismos neoliberais, uma elite sádica e colonizada, subalterna aos interesses de fora e incapaz de pensar o Brasil, isola-se em seus condomínios e mansões, e tenta reduzir a Nação à varanda dos seus caros apartamentos. Em um dos seus mais intrincados movimentos de dominação, apropriam-se dos símbolos pátrios, do verde e amarelo, da camisa da seleção de futebol, determinando que a exaltação vazia desses ícones sob seu controle significaria o verdadeiro amor ao país. Falso.
Mas tão falso quanto a “privatização” da Pátria, é sua negação unilateral. Porque esta vem acompanhada, de maneira consciente ou não, da subestimação da capacidade popular de separar o sentimento de identificação nacional que carrega, justo e honesto, da tentativa de apropriação mal intensionada da Casa Grande. O nacionalismo não está na camisa da CBF, ou na saudação desonesta à bandeira feita por políticos corruptos e oficiais que vivem como sultões em um país de miseráveis. O povo sente a falsidade e sabe que estes batem continência à outra bandeira, de listras e estrelas (e cifrões).
No entanto, os símbolos nacionais estão em disputa – e são constantemente assediados e manipulados pela Casa Grande – justamente porque fazem sentido à população. Não é sábio, e tratando-se de luta de classes é até mesmo contrarrevolucionário, abandonar ao inimigo objetos (materiais e simbólicos) que fazem sentido ao povo. Abdicar de disputar o que é de massas significa tornar-se fechado e exótico. O “alternativo” e o “underground” podem fazer sentido em outros momentos da vida social, mas não na luta política. “Underground não disputa hegemonia”, diria um velho camarada meu.
No capitalismo dependente, o verdadeiro nacionalismo é revolucionário, pois os povos periféricos precisam realizar uma dupla e radical transformação: a revolução social e a libertação nacional. A primeira sem a segunda seria uma “colônia socialista”, a última sem a anterior seria a constituição de um capitalismo autônomo, quimera abandonada por nossas elites desde meados do século XX. Ambas, portanto, impraticáveis.
O capitalismo é, entre outras coisas, uma submissão histórica das maiorias da humanidade à supremacia ocidental, mimetizada pelas burguesias dos países dependentes. Nos embates do senso comum, nosso povo guarda com carinho o pertencimento nacional e é brutalmente penalizado por isso. As imposições culturais do colonialismo, do imperialismo, do racismo estrutural, manifestadas ao longo da nossa história pela marginalização e repressão violenta do elemento popular pela Casa Grande denota o sentimento de vergonha que esta sente frente às manifestações genuinamente nacionais, ao desejo de somar-se ao invasor e à necessidade deste último em destruir qualquer possibilidade de criação original dos povos periféricos. Como disse Darcy Ribeiro: “somos um povo impedido de sermos nós mesmos”.
A constituição do capitalismo enquanto um sistema mundial de Estados-nação, com divisão entre centro e periferia, revela também uma de suas mais voláteis debilidades: a reivindicação da liberdade entre os povos periféricos, coloca todo o sistema em xeque. E o socialismo como ferramenta de transformação radical adapta-se às condições encontradas em cada latitude, trazendo a história local da luta de classes conectada à mundial, onde o nacionalismo revolucionário é ingrediente fundamental para o avanço da consciência popular e do processo revolucionário. Não são profundamente nacionalistas as revoluções socialistas na China, em Cuba, no Vietnã, na Venezuela? De Martí a Lenin, de Marx a Bolívar, do socialismo com “características chinesas” à solidariedade internacional, o geral manifesta-se no particular, como todo bom marxista deveria saber.
A revolução brasileira é possível e realizável, mas não se assemelhará a nenhuma outra. Não seguirá nenhum manual. Guarda as características próprias da nossa gente, trabalhadora, criativa, festeira e informal. É dever das forças revolucionárias reivindicar a real Nação, a, como canta o samba da Mangueira, de “mulheres, tamoios, mulatos” que não estão no retrato. Que reivindica e ressignifica o hino, a bandeira, as cores de maneira revolucionária, e não formalista como quer impor a Casa Grande. Nossa gente é orgulhosamente brasileira e a disputa do nacionalismo e seus símbolos pelas forças populares é tarefa inadiável.
Nosso povo manifesta o verdadeiro Brasil nos adereços de um barracão de escola de samba ou nas cores de Parintins, na hospitalidade de uma cozinha mineira, nas notas dedilhadas em uma viola sertaneja, no “passinho” ensaiado sob a calçada de concreto de uma favela carioca, no preparo zeloso de um acarajé ou de um chimarrão. Mas também nas formas inventivas de luta política, da resistência quilombola e dos povos indígenas aos cartazes coloridos empunhados pela juventude nas avenidas das grandes cidades; é nessa construção cotidiana, muito mais do que em programas psedo-radicais, que repousa a capacidade de transformação revolucionária do nosso povo. Que nossos “7 de setembro” burocráticos sejam mais “2 de julho”, com nossa classe e nossa cor a construir com alegria e tenacidade o verdadeiro Brasil, aquele da utopia singela de Darcy Ribeiro: “A Utopia brasileira é uma utopia singela: comida, casa, escola e remédio. O resto – o espírito nacional, o orgulho de si mesmo como povo, a criatividade, a alegria – já foi feito”.
Fonte: Texto originalmente publicado no site do Brigadas Populares.
Link direto: https://brigadaspopulares.org.br/o-verdadeiro-nacionalismo-e-revolucionario/
Roberto Santana Santos
Doutor em Políticas Públicas e Mestre em História Política pela
UERJ. Professor da Faculdade de Educação da UERJ e Secretário-executivo da
REGGEN-UNESCO. Militante das Brigadas Populares
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